Os três livros de não-ficção de Scott McCloud
Sobre o livro em si, apenas breves notas. No aspeto formal, McCloud nada arrisca, cumpre com o que de mais conservador podemos ter no meio, o que é em parte uma das grandes decepções da obra, tendo em conta tudo o que sempre defendeu quanto à renovação da BD. No campo das ideias McCloud não surpreende, mas leva-nos consigo, dá-nos a mão e deixa-nos ver o seu mundo, colocando no papel muito de si, do seu íntimo e do seu mundo. Os seus desaires, ânsias, desejos, medos e vertigens estão ali bem plasmados. Será fácil aos criadores, de qualquer arte, reverem-se no personagem principal, e o mais interessante é que apesar de nos apresentar o drama do criador artístico, McCloud foge totalmente ao cânone dos seus objetivos, algo que se liga claramente à sua concepção do mundo, e se podendo parecer vazio em certos momentos, acaba sendo o mais brilhante e relevante de todo o livro pela sua originalidade. E no entanto, apesar de conseguir criar algo particularmente interessante, não deixa de apresentar um trabalho com imensas fragilidades, nomeadamente no campo do storytelling, mesmo seguindo uma fórmula conservadora para o fazer, o que acaba sendo uma decepção.
Capa de "The Sculptor" (2015)
George Bernard Shaw cunhou uma das frases mais célebres da história sobre os teóricos e professores, "Quem pode, faz. Quem não pode, ensina." (1903), e que acabou passando a provérbio sob a forma ligeiramente adulterada: "Quem sabe, faz. Quem não sabe, ensina.". Esta visão da realidade poderia ser aqui facilmente evocada, já que McCloud apesar de reconhecido como um grande professor de BD, parece não conseguir depois na prática dar asas àquilo que define e defende quando passa ao ato de criar. Será então McCloud, e a grande maioria dos professores, como eu, meros frustrados das profissões de que falam? Mas como é que alguém que se torna respeitado mundialmente pela forma como desconstrói uma arte pode "não poder" ou "não saber" dessa arte?
A resposta encontrei-a num outro provérbio, de autor anónimo, apesar de erradamente surgir na net associado a Aristóteles: "Quem sabe, faz. Quem compreende, ensina.". E é exatamente isto, é absolutamente isto que temos em McCloud, alguém que compreende o meio como nenhum outro, não faz, antes ensina a fazer. Claro que isto não resolve a questão, porque se compreende como pode não saber?
Para responder a isto tenho de ir um outro conceito, o do "conhecimento tácito", definido por Michael Polanyi em 1958, que nos diz que "podemos saber mais do que aquilo que podemos dizer", e desse modo defende que existe muito conhecimento que não pode ser descrito, ou ensinado de forma alternativa à mímica, experiência e tentativa e erro. Os exemplos clássicos são o andar de bicicleta, tocar piano ou simplesmente martelar um prego. Estes casos envolvem competências que não podem ser aprendidas através da escrita ou qualquer meio que não seja a experiência concreta das suas ações. O processo de aprendizagem decorre por meio da incorporação somática, e uma vez apreendido não se torna por isso mais fácil de explicar.
Painel de Scott McCloud de "Understanding Comics" sobre a abstração da realidade.
E é isto que aqui temos. Na verdade não é possível explicar ou ensinar, de forma explícita, o processo criativo por detrás de qualquer arte. O que se pode fazer é abrir janelas para esse processo, nomeadamente desconstruir o processo, as suas perspectivas, os conceitos e objetivos, o resto advém pelo fazer, imitando e experimentando. Não estou a dizer que não se podem treinar pessoas, claro que podem, é isso que fazem os professores de instrumento musical, os treinadores de qualquer desporto, ou aquilo que os antigos mestres faziam nas guildas de cada profissão. Mas estes não fazem discursos sobre as qualidades do desporto ou instrumento, estes mostram como fazer, e atuam modelando o fazer com indicações diretas sobre a ação, em busca do que consideram o caminho a seguir. Tudo isto é limitado à ação, mas no mundo complexo de hoje não chega agir, a não ser que se seja uma estrela incontestável, é preciso compreender a ação e a razão da mesma, é preciso elaborar sobre a mesma, é preciso competências reflexivas sobre o meio em que se trabalha. Um artista não vive do que faz, vive do que consegue vender. Por isso precisa de aprender mais do que a simplesmente fazer, precisa de se compreender a si e aos outros, e para isso precisa de compreender aquilo que faz.
Página de "Understanding Comics" em que McCloud explica a economia do storytelling.
Ora para compreender aquilo que se faz não chega ter treinadores, são precisos professores, pessoas capazes de desconstruir a ação em blocos de informação e de exprimi-los num modo que seja entendida pelos outros. Não é alguém excelente a fazer, para o ser teria de dedicar todo o tempo a fazer em vez de passar todo o tempo a tentar compreender. No fundo, o professor tem de ser alguém excelente a desconstruir a realidade e a transformá-la em algo a que todos os outros possam mais facilmente aceder. O professor abre novas janelas sobre o trabalho dos outros ajudando todos os envolvidos a compreenderem melhor o que fazem e porque o fazem. É este o papel do professor, é isto que McCloud faz de modo brilhante nos seus livros de não-ficção.
Para terminar, e porque me envolvi pessoalmente acima no texto, tenho de deixar a minha visão particular do tema. Cresci a amar cinema, via muitas horas, entre os 12 e os 15 anos, passei fins-de-semana completos encerrado em salas de vídeo a ver filmes, em cada fim-de-semana conseguia ver entre 5 a 10 novos filmes, ao que se acrescentavam os 2 filmes semanais em sala de cinema. Antes de ter condições para começar a fazer cinema, comecei a ler sobre cinema, não só as revistas da altura — Premiere e Cahiers du Cinema, etc. — mas também obras de teóricos da arte — Mitry, Bazin, Sadoul, Metz, Henri Agel, Eduardo Geada, etc. Quando finalmente tive a minha primeira câmara pelos 17/18 anos fiz muitas experiências, mais tarde cheguei a fazer alguns filmes com colegas, mas quando olhava para trás, nada do que tinha feito me satisfazia (algumas obras ainda estão online). Preferia as obras dos meus colegas, sentia que eles eram melhores que eu. Eu sabia o que queria, tinha a noção teórica do que queria criar, mas não chegava lá. Hoje sei que não chegava lá porque precisava de ter experimentado mais, fazer, fazer, fazer, mas também sei que aquilo que falhou foi precisamente a motivação para continuar a fazer. O que eu gostava verdadeiramente era de desconstruir as obras, de as desagregar em elementos, de as autopsiar em busca de respostas e razões para o que de novo e original cada autor conseguia apresentar. Apreciar o modo como conseguiam reinventar-se a cada nova obra, como conseguiam superar os limites estabelecidos e surpreender-nos, tentar compreender como isso contribuía para a criação de novas formas de fazer, novas formas de compreender a realidade, novas formas de dar significado ao que somos. Porque a criação artística não é mero ato criativo, no meu modo pessoal de encarar a arte, a criação objetiva sempre à expressão humana, e fazê-lo de um modo diferente implica abrir novas potencialidades expressivas ao ser humano. Por isso sempre me movi pela compreensão do processo criativo e seus aspetos de inovação e originalidade, e talvez por isto tenha acabado por me tornar professor e não cineasta!
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