Tinha deixado para ler apenas após a visita o "Fala, Memória" (1951) porque nesse livro Nabokov recorda por várias vezes esta casa, mas talvez tenha feito mal. Contava sentir-me em casa dele, e isso não aconteceu. Pareceu-me apenas um espaço em que tinham assemblado alguns objetos que lhe tinham pertencido. Verei se quando ler o livro se estas memórias agora criadas me ajudarão a viajar pelas memórias de Nabokov.
abril 27, 2018
A casa dos primeiros anos de Nabokov
Depois de ter ontem visitado a casa dos últimos anos de Dostoiévski, hoje visitei a casa dos primeiros anos de Nabokov, em São Petersburgo. Ia com muitas expectativas, apesar de saber que a casa tinha sido quase completamente delapidada e destruída depois de abandonada pela família de Nabokov. Senti um certo amargo, apesar de Nabokov nunca mais ter voltado à Rússia, viveu ali quase 18 anos, toda a sua infância, e por isso merecia todo um museu, pelo menos ao nível de Dostoiévski, e no entanto temos apenas duas salas, com algumas fotografias, cartazes, edições inglesas dos seus livros, algumas borboletas e pouco mais. Para uma casa tão grande, e que era tão ricamente decorada, soube-me a muito pouco.
Tinha deixado para ler apenas após a visita o "Fala, Memória" (1951) porque nesse livro Nabokov recorda por várias vezes esta casa, mas talvez tenha feito mal. Contava sentir-me em casa dele, e isso não aconteceu. Pareceu-me apenas um espaço em que tinham assemblado alguns objetos que lhe tinham pertencido. Verei se quando ler o livro se estas memórias agora criadas me ajudarão a viajar pelas memórias de Nabokov.
Tinha deixado para ler apenas após a visita o "Fala, Memória" (1951) porque nesse livro Nabokov recorda por várias vezes esta casa, mas talvez tenha feito mal. Contava sentir-me em casa dele, e isso não aconteceu. Pareceu-me apenas um espaço em que tinham assemblado alguns objetos que lhe tinham pertencido. Verei se quando ler o livro se estas memórias agora criadas me ajudarão a viajar pelas memórias de Nabokov.
abril 26, 2018
Os últimos anos de Dostoiévski
São Petersburgo é uma das grandes capitais da arte e cultura europeias, muito graças a Pedro o Grande e aos que o sucederam na dinastia Romanov nos 300 anos seguintes, que sempre tiveram um enorme interesse pelo desenvolvimento destas áreas, ainda assim e no meio de tanta e tanta cultura que se pode por aqui encontrar, existe um talento que se destaca enormemente, Dostoiévski. Não nasceu cá, mas foi aqui que morreu e escreveu praticamente toda a sua obra. Por isso torna-se obrigatório visitar o museu que a cidade lhe dedica no qual podemos aceder ao apartamento em que viveu os últimos três anos da sua vida e onde escreveu o derradeiro, e profético, “Os Irmãos de Karamazov”.
O apartamento está imensamente bem mantido. Nele podemos ver o quarto dos seus filhos, o escritório da esposa, e o seu estúdio, e não deixa de ser impactante como estes três cómodos apresentam todos mesas com utensílios de escrita. Toda a família se dedicava à escrita, as crianças eram educadas desde tenra idade não apenas na leitura, mas também na escrita, e a esposa, à semelhança de tantas outras esposas de grandes escritores, era quem corrigia as provas de Dostoiévski. O autor nutria uma profunda admiração pelos filhos, considerando-os a razão para estar vivo, no quarto destes podemos ver também vários brinquedos da época. A sua filha, Lyubov Dostoevskaya, viria a publicar, em 1920, um livro com as recordações do seu pai — "Dostoyevsky as Portrayed by His Daughter" — que segundo os historiadores não é muito factual, devendo-se muito ao facto de Lyubov ter apenas 11 anos quando Dostoiévski morreu, ainda assim fiquei imensamente curioso por conhecer este relato.
Já tinha visto fotografias do último escritório de Dostoiévski, por isso não me surpreendeu propriamente, o que me tocou mais profundamente foi o relato, do sistema audioguia, sobre o último ano de vida, junto com os objetos ali mantidos. Falo especialmente da cigarreira, na qual podemos ver inscrita pela mão da filha, Lyubov, o dia da sua morte. Apesar de avisado pelos médicos, Dostoiévski fumou sempre até morrer, e de modo intenso enquanto escrevia pela noite adentro. O relógio do escritório foi também parado no dia e hora. Além disso, podemos ver várias fotografias da família, as mesas e cadeiras, espreitar a rua pelas janelas, sentir o espaço e a vida de quem ali terá vivido.
Talvez a maior novidade, para mim, tenha sido a descoberta do impacto gerado pelo seu “Discurso a Puchkin” (deixo o PDF, em inglês) para a inauguração do monumento dedicado ao poeta em Moscovo, em 1880. Dostoiévksi terá desejado enaltecer a obra de Pushkin a um ponto mitológico, fazendo dele o representante máximo da alma russa, mas ao fazê-lo, e tão perto da sua própria morte, estava já bastante doente, acabou sendo ele próprio elevado a profeta. Quando terminou, o público chorava e gritava — Profeta, Profeta, Profeta — levando-o em braços. É a apoteose de Dostoiévski, que ainda desejava escrever a segunda parte de ”Os Irmãos Karamazov” mas já não teria tempo para tal. No museu encontram-se fotografias do evento em Moscovo, e descrições do que se passou nesse dia, e tenho de dizer que aceder a tudo isto, pela primeira vez e no espaço em que ele viveu, produziu em mim um forte impacto.
Dostoiévski não foi apenas um escritor, não foi sequer mero criador de movimentos literários, seja o psicologismo ou o existencialismo. A sua forma de estar no mundo deveu-se a muitas variáveis, as quais não podemos simplesmente atribuir à sua família, à prisão na Sibéria, à perda de dois filhos pequenos (uma com três meses, outro com três anos), ou à política. O que o destacou dos demais foi o seu profundo humanismo, o qual soube tão bem utilizar para descrever o ser-humano e as suas entranhas psicológicas.
Obras analisadas no VI:
"Os Irmãos Karamazov" (1881)
"Os Demónios" (1872)
"O Idiota" (1868)
"Crime e Castigo" (1866)
"Memórias do Subterrâneo" (1864)
Estúdio de trabalho de Dostoiévski
O apartamento está imensamente bem mantido. Nele podemos ver o quarto dos seus filhos, o escritório da esposa, e o seu estúdio, e não deixa de ser impactante como estes três cómodos apresentam todos mesas com utensílios de escrita. Toda a família se dedicava à escrita, as crianças eram educadas desde tenra idade não apenas na leitura, mas também na escrita, e a esposa, à semelhança de tantas outras esposas de grandes escritores, era quem corrigia as provas de Dostoiévski. O autor nutria uma profunda admiração pelos filhos, considerando-os a razão para estar vivo, no quarto destes podemos ver também vários brinquedos da época. A sua filha, Lyubov Dostoevskaya, viria a publicar, em 1920, um livro com as recordações do seu pai — "Dostoyevsky as Portrayed by His Daughter" — que segundo os historiadores não é muito factual, devendo-se muito ao facto de Lyubov ter apenas 11 anos quando Dostoiévski morreu, ainda assim fiquei imensamente curioso por conhecer este relato.
À esquerda, a mesa do quarto das crianças (Lyubov e Fyodor). À direita, a mesa da esposa Anna Grigoryevna Snitkina
Já tinha visto fotografias do último escritório de Dostoiévski, por isso não me surpreendeu propriamente, o que me tocou mais profundamente foi o relato, do sistema audioguia, sobre o último ano de vida, junto com os objetos ali mantidos. Falo especialmente da cigarreira, na qual podemos ver inscrita pela mão da filha, Lyubov, o dia da sua morte. Apesar de avisado pelos médicos, Dostoiévski fumou sempre até morrer, e de modo intenso enquanto escrevia pela noite adentro. O relógio do escritório foi também parado no dia e hora. Além disso, podemos ver várias fotografias da família, as mesas e cadeiras, espreitar a rua pelas janelas, sentir o espaço e a vida de quem ali terá vivido.
A caixa de tabaco de Dostoiévski com a inscrição pela filha da data da morte do pai — 28 janeiro 1881. Data antiga que no nosso calendário gregoriano corresponde a 9 fevereiro 1881.
Talvez a maior novidade, para mim, tenha sido a descoberta do impacto gerado pelo seu “Discurso a Puchkin” (deixo o PDF, em inglês) para a inauguração do monumento dedicado ao poeta em Moscovo, em 1880. Dostoiévksi terá desejado enaltecer a obra de Pushkin a um ponto mitológico, fazendo dele o representante máximo da alma russa, mas ao fazê-lo, e tão perto da sua própria morte, estava já bastante doente, acabou sendo ele próprio elevado a profeta. Quando terminou, o público chorava e gritava — Profeta, Profeta, Profeta — levando-o em braços. É a apoteose de Dostoiévski, que ainda desejava escrever a segunda parte de ”Os Irmãos Karamazov” mas já não teria tempo para tal. No museu encontram-se fotografias do evento em Moscovo, e descrições do que se passou nesse dia, e tenho de dizer que aceder a tudo isto, pela primeira vez e no espaço em que ele viveu, produziu em mim um forte impacto.
Inauguração, em 1880, do monumento de homenagem a Pushkin em que Dostoiévski participou.
Dostoiévski não foi apenas um escritor, não foi sequer mero criador de movimentos literários, seja o psicologismo ou o existencialismo. A sua forma de estar no mundo deveu-se a muitas variáveis, as quais não podemos simplesmente atribuir à sua família, à prisão na Sibéria, à perda de dois filhos pequenos (uma com três meses, outro com três anos), ou à política. O que o destacou dos demais foi o seu profundo humanismo, o qual soube tão bem utilizar para descrever o ser-humano e as suas entranhas psicológicas.
Obras analisadas no VI:
"Os Irmãos Karamazov" (1881)
"Os Demónios" (1872)
"O Idiota" (1868)
"Crime e Castigo" (1866)
"Memórias do Subterrâneo" (1864)
abril 25, 2018
Pintura russa: realismo e ideologia
Aproveitando o facto de estar esta semana a dar aulas na Universidade de São Petersburgo fui ontem ao famoso Hermitage e hoje ao Museu Estatal Russo e tenho de dizer quão boa foi a surpresa de hoje. O Hermitage é o típico museu internacional, com obras de vários nomes sonantes da pintura mundial — Rembrandt, Da Vinci, Michelangelo, Raphael, Picasso, Van Gogh, etc. — mas o Museu Russo, ao ser completamente dedicado à arte russa, abriu-me portas para todo um mundo novo. Não vou fazer um relato da visita, até porque existe imensa informação online sobre o museu, incluindo a visita virtual pelo Google Art Project, mas quero deixar alguns dados e obras que adorei experienciar.
O Museu Russo está, de forma genérica, dividido em dois grandes pisos: o primeiro dedicado à Arte Antiga (séculos XIV a XVII) e Clássica (século XVIII); e o rés-do-chão dedicado ao Realismo (século XIX). Existe ainda um edifício adjacente que abriga uma terceira ala, denominada Benoit Wing, na qual são apresentados diferentes movimentos da primeira metade do século XX. Assim, se o Hermitage vale bem o tempo investido, se quiserem sentir uma experiência distinta dos restantes grandes museus internacionais, aconselho vivamente o Museu Russo.
Se tiverem pouco tempo, recomendo todo o piso dedicado ao Realismo, nomeadamente para quem gosta dos clássicos da literatura russa. Posso dizer que a experiência foi deslumbrante, exatamente por permitir ver algo que tinha apenas imaginado aquando das leituras. Existem obras menores que se socorrem da narrativa para agarrar o espectador, mas existem obras de enorme valor capazes de nos transportar no tempo, de nos fazer sentir a Rússia de Dostoiévski, Tolstói, Turgueniev ou Gogol. O realismo russo deixa para trás os ícones religiosos, a mitologia e a aristocracia para nos dar a ver o povo, os campos abertos, as condições de trabalho, acedemos assim ao pulsar de vida, algumas obras são mesmo capazes de apresentar marcas da impressão psicológica que parecia estar apenas ao alcance dos grandes mestres da literatura.
Já na área dedicada à primeira metade do século XX, temos imenso modernismo, cubismo, algum impressionismo e surrealismo, digo desde já que desconhecia a imensidão de obras aqui presentes que alargam os horizontes daquilo que se produziu no centro da Europa nesta época. Mas o que mais me tocou foi o sentir do impacto da Revolução de 1917. Aos poucos, enquanto viajamos pelas diferentes alas, vamos sentindo mais e mais o impacto político sobre a arte, não apenas nos conteúdos, mas intensamente nas suas formas e cores. É algo como se o tempo e seu significado passasse através de nós por meio das obras criadas pelos artistas. Refiro-me aqui apenas ao caráter da experiência de transformação, sem qualquer juízo sobre a qualidade das obras ou das ideologias defendidas por estas.
Por fim, para quem tiver tempo para percorrer todas as galerias, deixo um bónus que vale a pena procurar numa das salas deste museu.
"Guarda-chuva" (1883) de Marie Bashkirtseff
O Museu Russo está, de forma genérica, dividido em dois grandes pisos: o primeiro dedicado à Arte Antiga (séculos XIV a XVII) e Clássica (século XVIII); e o rés-do-chão dedicado ao Realismo (século XIX). Existe ainda um edifício adjacente que abriga uma terceira ala, denominada Benoit Wing, na qual são apresentados diferentes movimentos da primeira metade do século XX. Assim, se o Hermitage vale bem o tempo investido, se quiserem sentir uma experiência distinta dos restantes grandes museus internacionais, aconselho vivamente o Museu Russo.
"Meio-dia no campo" (1864) de Petr Sukhodolsky
"O Degelo" (1871) Fyodor Vasilyev
"No Campo" (1872) de Mikhail Klodt
"Rebocadores do Volga" (1870-73) Ilya Repin
"Na Floresta" (1883) Ivan Shishkin
"Escolhendo penas" (1891) de Aleksey Kivshenko
Se tiverem pouco tempo, recomendo todo o piso dedicado ao Realismo, nomeadamente para quem gosta dos clássicos da literatura russa. Posso dizer que a experiência foi deslumbrante, exatamente por permitir ver algo que tinha apenas imaginado aquando das leituras. Existem obras menores que se socorrem da narrativa para agarrar o espectador, mas existem obras de enorme valor capazes de nos transportar no tempo, de nos fazer sentir a Rússia de Dostoiévski, Tolstói, Turgueniev ou Gogol. O realismo russo deixa para trás os ícones religiosos, a mitologia e a aristocracia para nos dar a ver o povo, os campos abertos, as condições de trabalho, acedemos assim ao pulsar de vida, algumas obras são mesmo capazes de apresentar marcas da impressão psicológica que parecia estar apenas ao alcance dos grandes mestres da literatura.
"Lev Tolstói descalço" (1901) de Ilya Repin
Já na área dedicada à primeira metade do século XX, temos imenso modernismo, cubismo, algum impressionismo e surrealismo, digo desde já que desconhecia a imensidão de obras aqui presentes que alargam os horizontes daquilo que se produziu no centro da Europa nesta época. Mas o que mais me tocou foi o sentir do impacto da Revolução de 1917. Aos poucos, enquanto viajamos pelas diferentes alas, vamos sentindo mais e mais o impacto político sobre a arte, não apenas nos conteúdos, mas intensamente nas suas formas e cores. É algo como se o tempo e seu significado passasse através de nós por meio das obras criadas pelos artistas. Refiro-me aqui apenas ao caráter da experiência de transformação, sem qualquer juízo sobre a qualidade das obras ou das ideologias defendidas por estas.
"Trabalhadoras dos Têxteis" (1927) Alexander Deineka
"Mulher com Baldes" (1928) de Vyacheslav Vladimirovich Pakulin
"A Agricultora de Bicicleta" (1935) Alexander Deyneka
Por fim, para quem tiver tempo para percorrer todas as galerias, deixo um bónus que vale a pena procurar numa das salas deste museu.
abril 12, 2018
Eugénio Onéguin (1825)
Existe algo de brilhante neste texto a que não consigo aceder na plenitude. Tendo gostado bastante de ler e sentido por vezes que atingia um certo zénite, não consegui permanecer por lá todo o livro, apesar de o ter procurado já que o desejo por realizar esta leitura era bastante elevado. Pushkin é uma referência da história internacional da literatura, é o Camões, ou talvez melhor, o Dante do russo. Estranhamente no início do século XIX a elite russa usava mais o francês do que o russo, um pouco à semelhança da elite que só escrevia em latim quando Dante ousou escrever em italiano.
Creio que a minha leitura sofreu por três razões pessoais, que espero um dia ultrapassar: o meu desgosto com o romantismo; a minha fraca inclinação para a poesia; e o meu limitado interesse por novelas curtas. Começando pelo último, os textos curtos fazem-me sempre sentir que tudo passa demasiado a correr, sem espaço/tempo para um verdadeiro desabrochar dos personagens. Já a poesia perco-a na forma, por se dedicar mais à sintaxe que à semântica, é um pouco como se a literatura almejasse a ser música, sendo artes dotadas de tão distintas valências. Por fim o romantismo, já muitas vezes me queixei do mesmo, julgo que não adianta apontar os seus problemas, não foi por mero caso que a corrente desapareceu no tempo.
Por outro lado, agora refletindo e comparando com outras obras de contornos épicos, não que este seja um épico declarado mas pode ser encarado como tal pelo que disse acima, considero que fui provavelmente exigente demais. Aqui atribuirei as culpas ao brilhantismo de Pushkin. O modo como escreve é assombrosamente acessível, dotado de um ritmo de tranquilidade que faz tudo parecer tão fácil, quase como se estivesse ali no papel por zelo natural. Pushkin consegue fazer-nos esquecer que estamos a ler em verso, consegue fazer-nos esquecer que continua a obedecer aos parâmetros do romantismo, os quais ele obsessivamente persegue na forma do seu grande ídolo, Byron. Em certa medida, e depois de passar os olhos por algumas peças escritas por Pushkin, fico com a ideia que esta sua abordagem de simplificação, de facilitar o acesso, dar a ver e não esconder, no fundo uma certa fuga ao romantismo, se deve a uma sua outra obsessão, Shakespeare.
Uma obra para reler.
Mais uma belíssima capa da RA
Creio que a minha leitura sofreu por três razões pessoais, que espero um dia ultrapassar: o meu desgosto com o romantismo; a minha fraca inclinação para a poesia; e o meu limitado interesse por novelas curtas. Começando pelo último, os textos curtos fazem-me sempre sentir que tudo passa demasiado a correr, sem espaço/tempo para um verdadeiro desabrochar dos personagens. Já a poesia perco-a na forma, por se dedicar mais à sintaxe que à semântica, é um pouco como se a literatura almejasse a ser música, sendo artes dotadas de tão distintas valências. Por fim o romantismo, já muitas vezes me queixei do mesmo, julgo que não adianta apontar os seus problemas, não foi por mero caso que a corrente desapareceu no tempo.
Por outro lado, agora refletindo e comparando com outras obras de contornos épicos, não que este seja um épico declarado mas pode ser encarado como tal pelo que disse acima, considero que fui provavelmente exigente demais. Aqui atribuirei as culpas ao brilhantismo de Pushkin. O modo como escreve é assombrosamente acessível, dotado de um ritmo de tranquilidade que faz tudo parecer tão fácil, quase como se estivesse ali no papel por zelo natural. Pushkin consegue fazer-nos esquecer que estamos a ler em verso, consegue fazer-nos esquecer que continua a obedecer aos parâmetros do romantismo, os quais ele obsessivamente persegue na forma do seu grande ídolo, Byron. Em certa medida, e depois de passar os olhos por algumas peças escritas por Pushkin, fico com a ideia que esta sua abordagem de simplificação, de facilitar o acesso, dar a ver e não esconder, no fundo uma certa fuga ao romantismo, se deve a uma sua outra obsessão, Shakespeare.
Uma obra para reler.
abril 08, 2018
La Casa de Papel (2017)
No final da linha temos envolvimento completo, empatia absoluta. Roubar e fazer reféns menores é algo que só pode ser feito por pessoas más, pessoas dispostas a violar tudo o que de mais sagrado construímos enquanto sociedade e civilização, mas no final, por debaixo das máscaras dessa maldade — sejam Dali, Munch ou Warhol — são humanos que emergem, humanos como todos nós. No final, torna-se difícil se não impossível apontar quem são os vilões. Teremos sido manipulados?
O melhor deve-se sem dúvida ao criador e principal guionista, Alex Pina, e à restante equipa de guionistas — Esther Martínez Lobato, Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal, Esther Morales. A premissa por detrás do assalto ao banco consegue ser bastante original, todo o desenrolar, ainda que com pequenos problemas, agarra-nos, e o final, algo que desde o início acreditei estar condenado ao fracasso, já que os clichês se repetiam aqui e ali, atira-nos ao tapete convertendo-nos ao maestria de Alex Pina.
É preciso competências técnicas de excelência para pegar no melhor da máquina do storytelling americano, desenvolvido ao longo de um século por Hollywood e altamente aperfeiçoado nas últimas duas décadas pelas cadeias de televisão americana privadas, pô-la a rolar e mantê-la viva ao longo de quase 20 horas, mas para tocar o sentir dos espetadores desta forma, é preciso saber ler a contemporaneidade e apertar os botões corretos que agitam e fazem mexer as nossas crenças.
Assim, se a série conta com excelentes atores, muito boa cinematografia (para televisão) e ótima direção de arte, tudo é operado tecnicamente com um fim muito concreto: tornar o mais verosímil possível aquilo que o guião tem para oferecer. Ele é a estrela, é o guião que nos agarra e mantém tensos, em pulgas, continuamente a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir, e ao mesmo tempo consegue surpreender até ao final. A construção dos núcleos narrativos não segue a tradicional linearidade horizontal, está desenhada em 360º por meio de ganchos que enlaçam as ações e personagens num enorme labirinto de causas e efeitos que se vão desdobrando em camadas, gerando no espetador sempre a expectativa de existir algo mais por descobrir.
Tudo isto seria muito bom, diria até por descargo de consciência muito bom entretenimento, mas não o direi porque temos mais, temos genialidade. Alex Pina estabelece um paralelismo entre o que está a acontecer dentro da série e aquilo que está acontecer com os espetadores agarrados à série, indo ao ponto de desmontar na nossa frente tudo aquilo que está a fazer. Cedo começa a descortinar o síndrome de Estocolmo para descrever como se criam paixões em situações de refém, espelhando o nosso próprio lugar como reféns da série; depois toda a relação com os media, que vai sendo amiúde relatada atingindo o auge com a narrativa sobre os assaltantes — David contra Golias, ou no caso Camarões contra Brasil — na opinião pública, e em nós espetadores; todo o jogo entre os que se apaixonam por interesse e os que verdadeiramente caem na rede de Afrodite mas com todas as forças procuram escapar-lhe das malhas, tal como os espetadores; tudo e muito mais vai toldando a nossa própria sensibilidade, fazendo com que ao longo do tempo cedamos, mais uma vez como cedem os personagens dentro da série, colocando em questão as suas, e nossas, agulhas morais. Alex Pina é uma espécie de ilusionista que não se importa de mostrar os seus truques, porque sabe-se capaz de nos manter ainda assim sempre dentro da ilusão. No fundo, quem era o Professor se não o próprio Alex Pina.
CODA
Passar maus por bons não é algo novo, nas últimas décadas os videojogos foram imensamente atacados por o fazerem — o maior expoente foi "Grand Theft Auto" (1997-2013) — depois vieram as séries de sucesso repetir a fórmula — com casos como "Breaking Bad" (2008-2013) —, mas muito antes disso já tínhamos tido obras como "The Godfather" (1972), para não falar mais concretamente em "Bonnie and Clyde" (1967) (poderá existir a tentação de juntar aqui o mito de Robin Hood, mas são de ordens muito diferentes). Na verdade, falamos de um fenómeno emergente da segunda metade do século XX, marcando bastante bem os momentos em que o pensamento pós-modernista começa a emergir. Já não se podia ir para além do experimentalismo do modernismo, já se tinham destruído todas as noções estéticas do belo, por isso restava agora apenas quebrar as noções morais do bem. É isto que temos aqui, no fundo algo melhor entendível se definido como "pós-verdade". A realidade do mundo atual foi completamente transformada por uma sociedade muito mais formada, dotada de várias literacias que lhe permitem laborar mentalmente no abstracto, e assim compreender a constituição da Ilusão em que vive. Esta já tinha percebido que a verdade não existia, mas ainda não tinha percebido que era criada por cada sujeito à medida da sua mundividência, o "fim das meta-narrativas" deixava de ser um postulado teórico e passava a facto para milhões.
O melhor deve-se sem dúvida ao criador e principal guionista, Alex Pina, e à restante equipa de guionistas — Esther Martínez Lobato, Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal, Esther Morales. A premissa por detrás do assalto ao banco consegue ser bastante original, todo o desenrolar, ainda que com pequenos problemas, agarra-nos, e o final, algo que desde o início acreditei estar condenado ao fracasso, já que os clichês se repetiam aqui e ali, atira-nos ao tapete convertendo-nos ao maestria de Alex Pina.
É preciso competências técnicas de excelência para pegar no melhor da máquina do storytelling americano, desenvolvido ao longo de um século por Hollywood e altamente aperfeiçoado nas últimas duas décadas pelas cadeias de televisão americana privadas, pô-la a rolar e mantê-la viva ao longo de quase 20 horas, mas para tocar o sentir dos espetadores desta forma, é preciso saber ler a contemporaneidade e apertar os botões corretos que agitam e fazem mexer as nossas crenças.
CODA
Passar maus por bons não é algo novo, nas últimas décadas os videojogos foram imensamente atacados por o fazerem — o maior expoente foi "Grand Theft Auto" (1997-2013) — depois vieram as séries de sucesso repetir a fórmula — com casos como "Breaking Bad" (2008-2013) —, mas muito antes disso já tínhamos tido obras como "The Godfather" (1972), para não falar mais concretamente em "Bonnie and Clyde" (1967) (poderá existir a tentação de juntar aqui o mito de Robin Hood, mas são de ordens muito diferentes). Na verdade, falamos de um fenómeno emergente da segunda metade do século XX, marcando bastante bem os momentos em que o pensamento pós-modernista começa a emergir. Já não se podia ir para além do experimentalismo do modernismo, já se tinham destruído todas as noções estéticas do belo, por isso restava agora apenas quebrar as noções morais do bem. É isto que temos aqui, no fundo algo melhor entendível se definido como "pós-verdade". A realidade do mundo atual foi completamente transformada por uma sociedade muito mais formada, dotada de várias literacias que lhe permitem laborar mentalmente no abstracto, e assim compreender a constituição da Ilusão em que vive. Esta já tinha percebido que a verdade não existia, mas ainda não tinha percebido que era criada por cada sujeito à medida da sua mundividência, o "fim das meta-narrativas" deixava de ser um postulado teórico e passava a facto para milhões.
abril 04, 2018
Dostoievski desvelado
“Crime e Castigo” é um dos meus livros preferidos de sempre, volto mentalmente a ele muitas vezes, mas ao longo de todos estes anos tinha-me debatido sempre com uma mesma questão — o que é que teria conduzido Dostoievski a retratar um assassino e o seu remorso? — para a qual ainda não tinha obtido resposta. Foi agora, ao reler “Memórias do Subterrâneo” (1864), imediatamente depois de ter lido “O Que Fazer” (1863) de Tchernichevski, que compreendi. Raskolnikov (1866), o assassino arrependido, é um sucessor do funcionário público (1864), o intolerante, tendo ambos um mesmo propósito: demonstrar o que estava errado nas teses filosóficas de “O Que Fazer” (1863) (ler análise anterior). Encontrei outros que fizeram esta mesma ligação, o que me diz que esta minha leitura não é assim tão exótica. Não posso dizer que a relação seja muito comum nas análises das duas obras, mas isso com certeza deve-se mais ao facto do livro de Tchernichevski ter praticamente sido esquecido no tempo.
No caso de “Memórias do Subterrâneo”, a relação com Tchernichevski é comumente reconhecida, talvez porque a leitura de qualquer texto sobre Tchernichevski e o seu livro, no conduz inevitavelmente para este livro de Dostoievski que desse ponto de vista é visto como uma resposta. Na verdade, por ter lido um a seguir ao outro, posso dizer que em vários momentos o discurso do Funcionário Público de “Memórias do Subterrâneo”, parece quase uma carta a Tchernichevski. Porque na verdade ele fala dirigindo-se a alguém, mas não é alguém abstracto, ele fala de teorias e visões da realidade — nomeadamente os “sonhos”, os “estudos”, a “vantagem”, o “radioso e lindo”, o “Palácio de Cristal” — que são alusões diretas ao livro de Tchernichevski e que vão sendo contra-argumentadas e contra-atacadas com casos e cenários concretos que refutam totalmente a “utopia” representada em “o que Fazer?”.
Várias leituras apontam o ataque ao determinismo, e por sua vez a criação do existencialismo por Dostoievski em “Memórias do Subterrâneo”. Pois vejo antes de tudo isso, uma capacidade para antever o ser humano na sua infinita complexidade e variabilidade, e uma recusa da simplificação desse humano, daí o surgimento de "Crime e Castigo". Para Tchernichevski bastariam pessoas formadas com acesso a boas condições de vida para se transformarem em novas pessoas, investidas em ações pelo bem. Dostoievski questiona o determinismo, mas não mecanicista e sim num sentido dogmático, em que alguém determina os parâmetros de regulação da ordem. No fundo, Dostoievski aponta exatamente para onde as ideias de Tchernichevski, seguidas muito depois por Lenine, acabariam por conduzir a Russia, a ditadura.
Nota: Os excertos do livro são da tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares para a L&PM, pela facilidade no acesso a cópia digital. A versão lida foi a de António Pescada para a RA.
A belíssima capa da nova edição da RA
No caso de “Memórias do Subterrâneo”, a relação com Tchernichevski é comumente reconhecida, talvez porque a leitura de qualquer texto sobre Tchernichevski e o seu livro, no conduz inevitavelmente para este livro de Dostoievski que desse ponto de vista é visto como uma resposta. Na verdade, por ter lido um a seguir ao outro, posso dizer que em vários momentos o discurso do Funcionário Público de “Memórias do Subterrâneo”, parece quase uma carta a Tchernichevski. Porque na verdade ele fala dirigindo-se a alguém, mas não é alguém abstracto, ele fala de teorias e visões da realidade — nomeadamente os “sonhos”, os “estudos”, a “vantagem”, o “radioso e lindo”, o “Palácio de Cristal” — que são alusões diretas ao livro de Tchernichevski e que vão sendo contra-argumentadas e contra-atacadas com casos e cenários concretos que refutam totalmente a “utopia” representada em “o que Fazer?”.
“Mas tudo isso não passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou que o homem só age mal porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instrução, se lhe abrissem os olhos para os seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo sórdido, imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas vantagens reais, veria justamente no bem a sua própria vantagem?”
“Ah, a vantagem! Que é a vantagem? Os senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a vantagem não só possa, como também deva consistir, algumas vezes, em desejar para si aquilo que é ruim, e não o vantajoso?”
“O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor!”Se o livro de Tchernichevski é difícil de ler, é porque a escrita é terrível, já o livro de Dostoievski não é menos difícil de ler, mas é porque o modo como ele perscruta o sentir humano é apresentado num modo profundamente elaborado. O livro é pequeno, mas cada página exige a máxima atenção da nossa parte para compreender todo o alcance da argumentação. Claramente que ler o livro depois de ter lido Tchernichevski condiciona a leitura, porque estamos continuamente a aferir os dois lados da barricada argumentativa, e a tentar compreender em toda a extensão da argumentação as evidências e factos propostos. Dostóievski vai a ponto de antever o funcionamento do processo de tomada de decisão que ocorre no nosso inconsciente, e que só no final do século passado começou a ser compreendido:
“E como eu, por exemplo, me tranqüilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental e, em conseqüência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí afora, até o infinito. Essa é precisamente a essência de toda consciência e reflexão.”Todas estas discussões, a que em parte se pode aceder nestes pequenos fragmentos retirados da primeira parte de “Memórias do Subterrâneo”, servem para sustentar a história que nos é contada na segunda parte sobre os casos de intolerância e irascibilidade do Funcionário Público para com amigos de infância e uma mulher. Mas estes servem também para ilustrar o que está na base de Raskolnikov. No fundo Dostoievski procura ilustrar o quão impossível é traçar regras que coloquem todas as pessoas no mesmo patamar, que uma vantagem para um é uma desvantagem para outro, e vice-versa, que somos profundamente diferentes, ao que se junta a questão de que o mundo não é simplesmente a preto e branco, somos seres conscientes, dotados de sentires e contradições internas, sendo capazes de colocar a moral de lado para assassinar alguém, assim como logo a seguir sentir todo o peso da moral dessa ação.
Várias leituras apontam o ataque ao determinismo, e por sua vez a criação do existencialismo por Dostoievski em “Memórias do Subterrâneo”. Pois vejo antes de tudo isso, uma capacidade para antever o ser humano na sua infinita complexidade e variabilidade, e uma recusa da simplificação desse humano, daí o surgimento de "Crime e Castigo". Para Tchernichevski bastariam pessoas formadas com acesso a boas condições de vida para se transformarem em novas pessoas, investidas em ações pelo bem. Dostoievski questiona o determinismo, mas não mecanicista e sim num sentido dogmático, em que alguém determina os parâmetros de regulação da ordem. No fundo, Dostoievski aponta exatamente para onde as ideias de Tchernichevski, seguidas muito depois por Lenine, acabariam por conduzir a Russia, a ditadura.
Nota: Os excertos do livro são da tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares para a L&PM, pela facilidade no acesso a cópia digital. A versão lida foi a de António Pescada para a RA.
março 31, 2018
"O Que Fazer?" por Tchernichevski
Tenho aqui feito muitas resenhas de livros e algumas têm conseguido atingir níveis de profundidade com que não contava à partida. A literatura é um meio rico para compreender o mundo e a realidade, ainda assim nem sempre os temas se aproximam dos nossos interesses o suficiente para justificar um investimento grande no estudo e interpretação da mesma. Neste caso senti alguma ambivalência: por um lado queria compreender melhor a Rússia, nomeadamente a sua evolução política; por outro, não esperava retirar daqui conhecimento particularmente novo, uma vez que o sistema político ali implantado teve tempo para demonstrar a sua ineficácia, não querendo debater algo que empiricamente já foi demonstrado como utópico. Contudo, não deixava de me intrigar o como, ou seja, a História conducente à Revolução Russa, à criação da primeira nação governada segundo um regime comunista. Embora talvez o mais importante para mim tenha sido mesmo o tentar compreender como é que um simples livro, a simples literatura, contribuiu para tal. O problema é que ao tentar compreender apenas isto, vi-me enredado num mar de leituras sem fim, já que para compreender o impacto deste livro, tive de aprender mais sobre a realidade em que ele surgiu. Assim, tentarei nas próximas linhas dar conta do que li, compreendi e interpretei.
Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.
O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.
A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.
Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.
Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.
Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.
Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.
E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.
O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.
Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.
Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.
Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.
Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.
Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.
Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.
Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.
Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.
Referências
Weiner, Adam, (2016), The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of, in Politico, December 11, 2016
Turta, E. (2014). Socialist paradise or tower of total surveillance? Metamorphoses of the Crystal Palace in Chernyshevsky and Dostoevsky (Doctoral dissertation, The University of North Carolina at Chapel Hill)
Saltmarshe, Ella, (2018), Using Story to Change Systems, in Stanford Social Innovation Review, Feb. 20, 2018
Chernyshevsky, NG, (1853) “The Aesthetic Relations of Art to Reality”, Tese de Licenciatura na Universidade de São Petersburgo
Freeborn, R. (1985). The Russian Revolutionary Novel: Turgenev to Pasternak. Cambridge University Press.
Andrew, J. (1988). Women in Russian Literature 1780-1863. Springer.
Murr, (2010), 'What Is To Be Done?' Nikolai Chernyshevsky, in The Lectern,
Kahneman, D., (2011), Thinking, Fast And Slow, Penguin Books
Nabokov, (1938) O Dom, Relógio d'Água
Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.
O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.
Nikolai Tchernichevski (1828-1889)
A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.
Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.
Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.
Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.
“How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner
Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.
E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.
O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
“O romance de Tchernichévski é demasiado complicado, muito cheio de ideias para ser entendido e avaliado numa idade precoce... Mas depois da execução do meu irmão, sabendo que o romance de Tchernichévski era um de seus livros favoritos, comecei a lê-lo de outra forma e fiquei a refletir sobre ele não apenas alguns dias, mas semanas inteiras. Foi só então que entendi a sua profundidade. É uma coisa que pode fazer disparar as energias duma pessoa para toda a vida.” Vladimir Lenine, in The Russian Revolutionary Novel, (1985, p.24)
Vladimir Lenine (1870-1924)
As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.
Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.
Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.
Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.
Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.
Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro." in "O Que Fazer" (p.363)Se a Rússia se transformaria numa ditadura pesada, gerida por um dos mais vis chefes-de-estado de sempre — Estaline — a abordagem acabaria por saltar fronteiras e entrar, como um cavalo de Tróia, no ocidente por meio de Ayn Rand, nascida em São Petersburgo. Um século depois, esta apresentava o seu objetivismo — o indivíduo como o fim em si mesmo —, que sustentaria a criação da grande ideologia económica — o Neoliberalismo —profundamente promovida pelo seu discípulo, Alan Greenspan, o arquiteto da recente crise financeira mundial de 2008. É impressionante descobrir que Alan Greenspan, o potenciador do capitalismo selvagem internacional, levou para a sua cerimónia de juramento na sala oval apenas duas pessoas, a sua mãe e Ayn Rand. Não admira que se designasse o séquito de Rand como seita.
Ayn Rand (1905-1982)
Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.
Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.
Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.
Referências
Weiner, Adam, (2016), The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of, in Politico, December 11, 2016
Turta, E. (2014). Socialist paradise or tower of total surveillance? Metamorphoses of the Crystal Palace in Chernyshevsky and Dostoevsky (Doctoral dissertation, The University of North Carolina at Chapel Hill)
Saltmarshe, Ella, (2018), Using Story to Change Systems, in Stanford Social Innovation Review, Feb. 20, 2018
Chernyshevsky, NG, (1853) “The Aesthetic Relations of Art to Reality”, Tese de Licenciatura na Universidade de São Petersburgo
Freeborn, R. (1985). The Russian Revolutionary Novel: Turgenev to Pasternak. Cambridge University Press.
Andrew, J. (1988). Women in Russian Literature 1780-1863. Springer.
Murr, (2010), 'What Is To Be Done?' Nikolai Chernyshevsky, in The Lectern,
Kahneman, D., (2011), Thinking, Fast And Slow, Penguin Books
Nabokov, (1938) O Dom, Relógio d'Água
Lev Tolstói, (1867), Guerra e Paz, Ed. Presença
Lev Tolstói, (1867), Anna Karenina, Ed. Presença
Nikolai Gógol (1842), Almas Mortas, Circulo de Leitores
Ivan Turgueniev (1862), Pais e Filhos, Relógio d'Água
Boris Pasternak (1957), Doutor Jivago, Público
Chernyshevsky, NG, (1863). What is to be Done?. Cornell University Press. (1989)
Chernyshevsky, NG, (1860). “The Anthropological Principle in Philosophy”, Sovrernennik, no. 4; in: Selected Philosophical Essays (pgs. 49-135), Moscow, 1953.
Lopatin, GA, (1922), Avtobiografia, Petrograd (1845-1918)
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Chernyshevsky, NG, (1860). “The Anthropological Principle in Philosophy”, Sovrernennik, no. 4; in: Selected Philosophical Essays (pgs. 49-135), Moscow, 1953.
Lopatin, GA, (1922), Avtobiografia, Petrograd (1845-1918)
Rand, A. (1957). Atlas shrugged. Penguin.
março 28, 2018
Ao cinema não basta querer emular os videojogos
“King Arthur: Legend of the Sword” (2017) é um filme de Guy Ritchie o que se evidencia desde as primeiras sequências dada a sua tendência para colocar a forma na frente do conteúdo, nomeadamente em termos de montagem, composição visual e ritmo. Contudo julgo que desta vez se excedeu ao tentar descaradamente fundir discursos contemporâneos da moda — as séries de tv, mas principalmente os videojogos — para agradar em particular ao público mais jovem, dominante no consumo dos conteúdos audiovisuais, mas a julgar pelo desastre em bilheteira nem a esses conseguiu agradar.
Temos o mito, da espada na pedra, carregado com fantasia à lá “Lord of the Rings” e “Game of Thrones”, mas ao contrário destes, não temos história nem personagens. Artur não sabe quem é, não quer saber, nem tem razões para querer, assim como não parece munido de qualquer motivação, vontade ou desejo, simplesmente existe para que o filme tenha um foco humano. Os restantes são adereços, igualmente desprovidos de vida, nem Jude Law consegue salvar algo que não tem pés nem cabeça. Sim, nos videojogos blockbusters os personagens também são pouco desenvolvidos, mas quem disse que um videojogo era um filme?
Por outro lado temos uma banda sonora, por Daniel Pemberton, de excelência que tudo vai colando por meio de bons leitmotivs sonoros que adocicam o nosso interesse, ao que se juntam momentos altos de grande impacto visual, por meio de sequências de cinema virtual em que o cinema dá lugar à animação de VFx. Contudo tudo isto acaba por criar um conjunto de sequências que poderíamos desfrutar em qualquer âmbito sem necessitar do filme, simplesmente para apreciar a beleza do virtuosismo técnico e criativo. São sequências em que o cinema deixa de o ser para assumir mero caráter de cinemático, a cola à estética dos videojogos é muito alta, tanto que em vários momentos pensei estar num videojogo e não num filme.
Ritchie impressiona com o calibre explosivo da forma, a velocidade da montagem e a composição constante in-your-face, tudo no filme parece gritar pela nossa atenção, ao mesmo tempo que nada parece realmente valer essa atenção. Os personagens parecem ter sido retirados de um "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (1998) ou "Snatch" (2000) e enfiados à pressão num mundo medieval, não se conseguindo nunca vislumbrar qualquer Cavaleiro da Távola Redonda e menos ainda um Rei Artur. A demonstrar que não chega produzir obras de impacto audiovisual forte, que por mais intenso que o labor seja, e mesmo que consiga manter o nosso olhar e ouvidos presos à tela, continuamos a precisar de personagens humanos para nos fazer sonhar, para conseguirmos criar fábulas que perdurem. O cinema é acima de tudo drama, narrativa encenada, já um videojogo conta com outros atributos, nomeadamente jogabilidade e interatividade, que não têm lugar num filme.
Temos o mito, da espada na pedra, carregado com fantasia à lá “Lord of the Rings” e “Game of Thrones”, mas ao contrário destes, não temos história nem personagens. Artur não sabe quem é, não quer saber, nem tem razões para querer, assim como não parece munido de qualquer motivação, vontade ou desejo, simplesmente existe para que o filme tenha um foco humano. Os restantes são adereços, igualmente desprovidos de vida, nem Jude Law consegue salvar algo que não tem pés nem cabeça. Sim, nos videojogos blockbusters os personagens também são pouco desenvolvidos, mas quem disse que um videojogo era um filme?
Por outro lado temos uma banda sonora, por Daniel Pemberton, de excelência que tudo vai colando por meio de bons leitmotivs sonoros que adocicam o nosso interesse, ao que se juntam momentos altos de grande impacto visual, por meio de sequências de cinema virtual em que o cinema dá lugar à animação de VFx. Contudo tudo isto acaba por criar um conjunto de sequências que poderíamos desfrutar em qualquer âmbito sem necessitar do filme, simplesmente para apreciar a beleza do virtuosismo técnico e criativo. São sequências em que o cinema deixa de o ser para assumir mero caráter de cinemático, a cola à estética dos videojogos é muito alta, tanto que em vários momentos pensei estar num videojogo e não num filme.
março 26, 2018
Livro: “O Dom” (1938)
Não é um livro fácil e as razões para tal são várias — a estrutura é multilinear e descontínua; a forma é poética e de vocabulário rico mas escrito como torrente descritiva; e o contexto exigido é não só enorme como distante da maioria dos leitores contemporâneos. Não acontece muito, ou quase nada, em “O Dom”, muita nostalgia relatada por emigrantes russos fixados num espaço que é a cidade de Berlim e que tal como o espaço de Dublin, em “Ulisses” (1922) de Joyce, serve a Nabokov para agregar a estrutura fragmentada. Tudo parece sustentar-se num processo de regressão afetiva e na sua descrição por recurso a uma estilística de embelezamento máximo, completamente colada a Proust. Digamos que Nabokov, dotado de enorme virtuosismo, resolveu criar uma obra capaz de homenagear dois dos seus autores favoritos, mas a homenagem não se fica por aqui já que o tema do livro é nada menos que a Literatura Russa do século XIX, ou seja, a homenagem estende-se a Puchkin, Gogol, Tchékhov, Turgeniev, Tchernichevski entre muitos outros. Deste modo, para se poder iniciar algum envolvimento com a leitura desta obra convém conhecer algo destes autores, assim como deter algum conhecimento sobre o antes e o depois da Revolução Russa de 1917. No caso do antes, alguns livros destes autores já dão muitas pistas mas recomendo sobretudo "Guerra e Paz" de Tolstói.
Não conhecia todos os enunciados, faltava-me Puchkin e Tchernichevski, e por isso são os livros que se seguem, embora sejam dois autores em pólos opostos, ou seja, se Puchkin é o grande pai das letras russas, Tchernichevski é não só desconhecido fora da Rússia, como é aqui totalmente ridicularizado. Mas deixarei o meu comentário sobre o capítulo inteiro que se lhe dedica para quando acabar de ler o livro de Tchernichevski, que entretanto já comecei e em poucas páginas deu para quase compreender Nabokov. Digo quase porque tenho de confessar que me custou ler Nabokov, um dos meus autores de referência, num discurso de crítica ad hominem. Aliás, não é por acaso que o capítulo não foi publicado aquando da primeira edição da obra em 1938. Ainda que perceba a qualidade muito fraca de Tchernichevski, só consigo compreender esta reação de Nabokov pelo caráter político que o livro de Tchernichevski adquiriu, ou porque o próprio Nabokov exerce uma crítica constante mesmo a si próprio, como podemos ver no seguinte diálogo (Nabokov não gostava de Dostoievski e era admirador de Flaubert):
Existe um enredo amoroso no livro a que Nabokov faz referência no prefácio, diga-se semi-explicativo da obra, mas é um romance imensamente subtil, ainda que venha dar, em parte, resposta ao título. A essência do livro assenta no processo descritivo do mundo aos olhos de um jovem autor russo, recentemente emigrado para Berlim, à procura de se afirmar enquanto escritor, e nesse sentido, apesar de Nabokov dizer nesse prefácio que não é Fyodor, é ele quem ali vemos representado. Mais uma aproximação a Proust, que descreve o mundo através dos olhos de Marcel sem nunca dar conta de qualquer ligação com este. Aliás, na primeira parte o tom é bastante próximo do livro autobiográfico de Nabokov, “Fala Memória”, que só viria a escrever anos mais tarde. E já agora, a meio do livro acontece algo no mínimo estranho, ou talvez não, que é uma descrição breve do enredo de “Lolita” (1955), seguida de uma referência do protagonista que me obrigou a parar e ir verificar datas, dizendo “É estranho, pareço lembrar-me dos meus trabalhos futuros”. Ou seja, o romance existia muitos anos antes na cabeça de Nabokov.
Para se poder entender este texto, já disse que conhecer os autores acima é relevante mas é também relevante lerem mais sobre a obra — a sua data de criação, a vida de Nabokov, a sua fuga da Rússia, a política do país — e para tal recomendo vivamente o livro de Yuri Leving “Keys to the Gift: A Guide to Vladimir Nabokov's Novel”. Leving criou um compêndio das múltiplas abordagens possíveis à interpretação mas não é preciso lerem tudo, basta que leiam as entradas que mais vos interessarem. As chaves apresentadas por Leving vão desde a criação e publicação da obra ao contexto histórico do país e da literatura, passando pela análise da estrutura — altamente detalhada nos seus constituintes de título, enredo, narrativa, cenário, personagens, tema — ou do estilo, forma e método, ou ainda da receção crítica nas diferentes épocas, e muito mais. Digo que não é preciso ler tudo, porque o texto de Nabokov está tão carregado de símbolos e subtextos que tentar compreender tudo está apenas ao alcance de um labor intenso, fazendo deste uma boa obra para a realização de trabalhos académicos no campo da literatura.
Deixo uma breve explicação estrutural. O livro começa com um capítulo de contextualização da vida de Fyodor em Berlim, que aos poucos nos vai dando conta da sua vida passada em São Petersburgo, dos amigos deixados e dos novos entretanto criados. Nesta primeira fase Fyodor só escreve poemas. No segundo capítulo Fyodor recorda o pai, que tal como o pai de Nabokov morreu quando este tinha cerca de 25 anos, o capítulo é intenso e belo, e segundo os críticos segue o estilo de Pushkin. No terceiro capítulo temos uma mudança de espaço e o encontro com a amada, a escrita é menos embelezada mas mais escorreita, o estilo mudou novamente porque agora é Gogol que Nabokov nos dá. O quarto é o tal capítulo banido, não segue propriamente Tchernichevski, já que a abordagem é profundamente satírica, mas é completamente diferente de tudo o que veio antes e virá no último. Por fim, voltamos ao nosso heróis Fyodor e a Zina, com o mundo a desejar recompor-se e a querer criar espaço para que o espírito do artista possa florescer.
O livro termina mais uma vez homenageando Proust, já que é dado a entender que o livro que lemos será o que Fyodor escreveu, e tal como em Proust cria-se uma urgência por voltar ao início e reiniciar a leitura, reler tudo com um novo olhar capaz de ler mais dentro das múltiplas camadas que protegem o sentir de Nabokov em “O Dom”, já que é inevitável sentirmos ao longo de toda a leitura que muito do que vamos lendo é-nos vedado, não só por falta de referências, mas também porque o próprio texto trabalha num modo auto-referencial muito joyciano.
Sobre a profundidade da análise da psicologia humana, algo caro a Nabokov, um estudioso da psicologia e muito crítico da fantochada de Freud, veja-se o seguinte descrito do que responde Fyodor a um potencial crítico do seu livro:
Não conhecia todos os enunciados, faltava-me Puchkin e Tchernichevski, e por isso são os livros que se seguem, embora sejam dois autores em pólos opostos, ou seja, se Puchkin é o grande pai das letras russas, Tchernichevski é não só desconhecido fora da Rússia, como é aqui totalmente ridicularizado. Mas deixarei o meu comentário sobre o capítulo inteiro que se lhe dedica para quando acabar de ler o livro de Tchernichevski, que entretanto já comecei e em poucas páginas deu para quase compreender Nabokov. Digo quase porque tenho de confessar que me custou ler Nabokov, um dos meus autores de referência, num discurso de crítica ad hominem. Aliás, não é por acaso que o capítulo não foi publicado aquando da primeira edição da obra em 1938. Ainda que perceba a qualidade muito fraca de Tchernichevski, só consigo compreender esta reação de Nabokov pelo caráter político que o livro de Tchernichevski adquiriu, ou porque o próprio Nabokov exerce uma crítica constante mesmo a si próprio, como podemos ver no seguinte diálogo (Nabokov não gostava de Dostoievski e era admirador de Flaubert):
“eu tenho gostos diferentes, hábitos diferentes; o seu Fet, por exemplo, não posso suportá-lo, e por outro lado sou um ardente admirador do autor de O Duplo e de Os Possessos, a quem você parece disposto a faltar ao… Há muito em si que não gosto, o seu estilo de São Petersburgo, a sua tara gaulesa, o seu neo-voltaireanismo e o fraco por Flaubert…” (p.342)
As fotografias de Nabokov recordam-me sempre Hitchcock mas também a personalidade que ambos pareciam possuir — de estarem sempre prontos a pregar uma partida a alguém!
Existe um enredo amoroso no livro a que Nabokov faz referência no prefácio, diga-se semi-explicativo da obra, mas é um romance imensamente subtil, ainda que venha dar, em parte, resposta ao título. A essência do livro assenta no processo descritivo do mundo aos olhos de um jovem autor russo, recentemente emigrado para Berlim, à procura de se afirmar enquanto escritor, e nesse sentido, apesar de Nabokov dizer nesse prefácio que não é Fyodor, é ele quem ali vemos representado. Mais uma aproximação a Proust, que descreve o mundo através dos olhos de Marcel sem nunca dar conta de qualquer ligação com este. Aliás, na primeira parte o tom é bastante próximo do livro autobiográfico de Nabokov, “Fala Memória”, que só viria a escrever anos mais tarde. E já agora, a meio do livro acontece algo no mínimo estranho, ou talvez não, que é uma descrição breve do enredo de “Lolita” (1955), seguida de uma referência do protagonista que me obrigou a parar e ir verificar datas, dizendo “É estranho, pareço lembrar-me dos meus trabalhos futuros”. Ou seja, o romance existia muitos anos antes na cabeça de Nabokov.
Para se poder entender este texto, já disse que conhecer os autores acima é relevante mas é também relevante lerem mais sobre a obra — a sua data de criação, a vida de Nabokov, a sua fuga da Rússia, a política do país — e para tal recomendo vivamente o livro de Yuri Leving “Keys to the Gift: A Guide to Vladimir Nabokov's Novel”. Leving criou um compêndio das múltiplas abordagens possíveis à interpretação mas não é preciso lerem tudo, basta que leiam as entradas que mais vos interessarem. As chaves apresentadas por Leving vão desde a criação e publicação da obra ao contexto histórico do país e da literatura, passando pela análise da estrutura — altamente detalhada nos seus constituintes de título, enredo, narrativa, cenário, personagens, tema — ou do estilo, forma e método, ou ainda da receção crítica nas diferentes épocas, e muito mais. Digo que não é preciso ler tudo, porque o texto de Nabokov está tão carregado de símbolos e subtextos que tentar compreender tudo está apenas ao alcance de um labor intenso, fazendo deste uma boa obra para a realização de trabalhos académicos no campo da literatura.
Deixo uma breve explicação estrutural. O livro começa com um capítulo de contextualização da vida de Fyodor em Berlim, que aos poucos nos vai dando conta da sua vida passada em São Petersburgo, dos amigos deixados e dos novos entretanto criados. Nesta primeira fase Fyodor só escreve poemas. No segundo capítulo Fyodor recorda o pai, que tal como o pai de Nabokov morreu quando este tinha cerca de 25 anos, o capítulo é intenso e belo, e segundo os críticos segue o estilo de Pushkin. No terceiro capítulo temos uma mudança de espaço e o encontro com a amada, a escrita é menos embelezada mas mais escorreita, o estilo mudou novamente porque agora é Gogol que Nabokov nos dá. O quarto é o tal capítulo banido, não segue propriamente Tchernichevski, já que a abordagem é profundamente satírica, mas é completamente diferente de tudo o que veio antes e virá no último. Por fim, voltamos ao nosso heróis Fyodor e a Zina, com o mundo a desejar recompor-se e a querer criar espaço para que o espírito do artista possa florescer.
O livro termina mais uma vez homenageando Proust, já que é dado a entender que o livro que lemos será o que Fyodor escreveu, e tal como em Proust cria-se uma urgência por voltar ao início e reiniciar a leitura, reler tudo com um novo olhar capaz de ler mais dentro das múltiplas camadas que protegem o sentir de Nabokov em “O Dom”, já que é inevitável sentirmos ao longo de toda a leitura que muito do que vamos lendo é-nos vedado, não só por falta de referências, mas também porque o próprio texto trabalha num modo auto-referencial muito joyciano.
Sobre a profundidade da análise da psicologia humana, algo caro a Nabokov, um estudioso da psicologia e muito crítico da fantochada de Freud, veja-se o seguinte descrito do que responde Fyodor a um potencial crítico do seu livro:
“Ao princípio queria escrever-lhe uma carta a agradecer, sabe, com uma referência comovente ao meu pouco mérito e assim por diante, mas depois pensei que dessa forma iria introduzir um odor humano intolerável no domínio da liberdade de opinião. E além disso, se escrevi um bom livro, era a mim que devia agradecer e não a si, tal como você deve agradecer a si próprio e não a mim por compreender o que é bom, não é verdade? Se nos pomos com vénias um ao outro, então, logo que um pare, o outro sentir-se-á magoado e ir-se-á embora vexado.” (p.339)No final questiono-me se o título português é o melhor, mas por mais que procure, as interpretações são tantas que não é possível dizer muito, a não ser talvez que o título em inglês dá-se melhor às múltiplas leituras. No inglês (“The Gift”) pode significar Dom mas pode significar também Prenda, e se o nosso título atira imediatamente ao virtuosismo do escritor, o inglês permite ainda apontar para a homenagem à Literatura Russa, funcionando este livro como uma prenda de Nabokov em modo de despedida, já que este seria o seu último livro escrito em russo.
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