Desde 2014 que uso o Goodreads para manter um registo dos livros que vou lendo. Tem sido muito útil porque me permite alguma disciplina, ainda que tenha de realizar algum esforço para evitar o efeito de gamificação, algo que inevitavelmente nos condiciona. Para tal, obrigo-me a escrever sempre, sobre qualquer livro que marque como lido. Aliás, por norma têm de ser textos com estrutura e tamanho mínimos para poderem também ser publicados aqui no blog. Por vezes permito a fuga a esta regra: quando o livro é muito fraco ou quando considero que quero continuar a trabalhar o assunto do livro com mais leituras, porque ainda não atingi um modelo completo e fechado do assunto, nesses casos dou apenas conta no Goodreads, num texto muito breve.
A média dos últimos quatro anos ronda os 80 livros. Estes têm-se dividido, aproximadamente, em: 5% de livros que não termino, por serem demasiado fracos; 20% não-ficção; 10% banda-desenhada; 15% literatura portuguesa e contemporânea; sendo os restantes 50% dedicados à leitura de clássicos do cânone literário.
Aproveito assim para deixar aqui, sem nenhuma ordem em particular, os 12 melhores que li em 2017, os links apontam para as resenhas realizadas aqui no blog, sobre os mesmos.
Mais um ano que passou, mais um ano de textos aqui no blog. Publiquei pouco, ainda assim alguns textos deixaram boas memórias. Uma grande parte é de análise de livros, jogos e filmes, os textos mais especializados dizem respeito à ciência em Portugal e à educação criativa. Assim, e para iniciar o ano, deixo os 12 textos mais lidos, ou pelo menos mais vistos de acordo com o número de visualizações do blog.
Foi dos anos, recentes, em que joguei menos, e ao contrário do que dizia o Rui Craveirinha no IGN, não fiquei com a ideia que tivessem saído muitos jogos, talvez por ter andado menos atento. Senti que foram sempre saindo jogos, mas não propriamente jogos que nos marcassem. Desde logo a grande desilusão de “Mass Effect: Andromeda” na primeira metade de 2017 não ajudou, mas serviu pelo menos para mostrar que nem sempre usar uma série de sucesso é garantia de investimento seguro, tanto para as empresas como para nós. Daí que este ano me limite a fazer uma lista dos 5 melhores jogos que joguei.
Joguei outros jogos que marcaram este ano de 2017, uns melhor outros pior, sendo que alguns deles surgem mesmo destacados em listas e prémios, não sendo o meu caso.
Por fim, deixo os jogos de 2017 que ainda quero jogar, embora não alimente esperanças excessivas pela investigação que fui fazendo à volta dos mesmos, e por isso também não captaram suficientemente o meu interesse para os jogar quando saíram.
- Hellblade: Senua’s Sacrifice - Observer - Get Even - Late Shift (talvez não seja aqui o lugar apropriado, ou talvez sim) - Middle-earth: Shadow of War - Tacoma - Rime - Wolfenstein II: The New Colossus - Last Day of June
Foi uma das sequelas anunciadas que mais me incomodou. Não fazia sentido, não era necessária. Nem mesmo um remake já que “Blade Runner” (1982) consegue o extraordinário feito de se manter, no campo audiovisual, para não falar das ideias, completamente atual. Por isso e apesar de ir lendo boas impressões, não me aproximei inicialmente do filme. Agora que o vi, não quero deixar de agradecer a todos os que lhe deram “corpo”, desde o empenho de Ridley Scott na promoção do projeto e enquanto Produtor Executivo, à mestria de Denis Villeneuve (realização), Hampton Fancher (história), Benjamin Wallfisch (música), Roger Deakins (cinematografia), Joe Walker (montagem), Paul Inglis (arte) e tantos outros responsáveis, por muitas outras partes — desde o design de som, efeitos visuais, decoração, cenários, props, e maquilhagem ao guarda-roupa. Deixo os atores de fora? Não, mas o filme é tanto mais, e é sempre deles que se fala.
Em termos puramente experienciais, “Blade Runner 2049” marca o ano juntamente com “Dunkirk” (2017), muito graças às extraordinárias equipas criativas que foram capazes de levar ambos os projetos à pureza da perfeição audiovisual, nas diversas necessidades que compõem uma obra cinematográfica. Já no campo das ideias e do discurso “Blade Runner 2049” afirma-se e destaca-se. Socorre-se de um minimalismo expressivo, que claramente não lhe poderia granjear grande sucesso de bilheteira, mas sem isso teria sido apenas mais um filme sobre andróides. O que tem para dizer é impactante, porque muito hábil na relação empática, o que torna inevitável recordar o universo de “Children of Men” (2006). Assim, e continuando profundamente distópico, existe algo de muito distinto neste segundo filme, uma centelha de esperança!
Como pergunta Jorge Martins Rosa, especialista em Philip K. Dick (PKD), será esta ainda uma obra dickiana? Sim e não, exatamente pelo que disse acima, porque a distopia ganha aqui asas de utopia, algo longe do mundo dickiano. Apesar desta ligeira discordância, recomendo a leitura do texto do Jorge a quem quiser ganhar acesso às múltiplas camadas enterradas por debaixo da superfície plástica do filme. Mais ainda porque concordo com a essência do texto ao definir como pergunta central do filme, imbuída da visão dickiana: “O que é o humano?”
Concordo com esta definição, não apenas por partir de PKD, mas porque passei todo o filme a questionar-me sobre isso. Não, não foi a questionar quem de entre os personagens era humano e quem era replicant, essa questão para mim ficou lá atrás, em 1982. A minha questão foi perceber se em 2049 ainda existiam humanos, daí a colagem “Children of Men” ganhar toda uma enorme relevância, pela antecipação de um futuro anunciado em “AI: Artificial Intelligence” (2001). Mas esse futuro é em “Blade Runner 2049” assumido de modo muito distinto, o qual já qualifiquei acima de utópico, mas tem o seu quê de distópico, já que tudo o que parece mover aqueles que nos sucederão, é ser-se humano! Foi aqui que a história me perdeu, em parte, fez-me descolar da fantasia, porque foi longe demais, não no feito, mas no sentido desse feito, porque em essência me pareceram efeitos dos resquícios de criador, ou talvez melhor, chamar-lhe colonizador (porque não apenas cria como condiciona a cultura).
Existe tanto por onde pegar em “Blade Runner 2049”, o seu minimalismo ajuda, mas é difícil fazê-lo e manter o texto livre de spoilers. Contudo, passados vários filmes e livros sobre este tema, sinto que algo se vai esgotando na temática, porque atingimos uma espécie de fronteira do conhecimento sobre nós mesmos, não falo pela mera separação entre humano e máquina, mas antes pelo que aponta como marca do nosso devir, porque ganhámos a noção de que chegará o momento em que passaremos o testemunho. Sim, existe aqui um piscar de olhos a um caminho alternativo, ainda que muito breve, apresentado em "Prometheus" (2012), talvez porque Scott também tenha batido contra esta parede. E por isso, talvez seja eu agora quem termina este texto num tom distópico, talvez por homenagem ao dickiano que há em mim, contudo olho para esse momento como parte de algo maior que nós, e por isso mais utópico que distópico.
O livro de Danah Boyd, "It's Complicated: The Social Lives of Networked Teens", teve grande impacto quando saiu. Na altura marquei-o para ler, mas fui adiando porque do que fui lendo, dizia pouco que me surpreende-se. Agora que o li, e continuando a dizer que não traz nada novo, se visto como livro de divulgação de ciência, acho que traz algo novo, mas mais importante que isso, algo imensamente relevante para a sociedade geral. O discurso sobre as tecnologias e os adolescentes nos media e numa grande parte da cultura que se vai produzindo está completamente desfasado da realidade.
Aliás esse desfasamento é tão grande que se alguém parasse para tentar lê-lo com sentido, veria a sua esquizofrenia, já que por um lado diz que os adolescente são muito precoces com as tecnologias, mas por outro lado são muito ingénuos com a sua privacidade e com os perigos que correm. E é exatamente este discurso feito de mitos que Dana Boyd desmonta ao longo de todo o livro. Boyd não é apenas uma professora universitária, fechada na redoma da academia, o facto de trabalhar numa das mais relevantes empresas de tecnologia, a Microsoft, como investigadora social principal, dá-lhe uma experiência ímpar ao juntar os dois lados: a academia e suas metodologias; e a indústria e suas tecnologias. Boyd conhece os adolescentes, porque os estudou de modo metódico ao longo de anos, mas conhece também todas as tecnologias que esses adolescentes usam, por dentro.
A metodologia seguida por Boyd:
“To get at teens’ practices, I crisscrossed the United States from 2005 to 2012, talking with and observing teens from eighteen states and a wide array of socioeconomic and ethnic communities. I spent countless hours observing teens through the traces they left online via social network sites, blogs, and other genres of social media. I hung out with teens in physical spaces like schools, public parks, malls, churches, and fast food restaurants. To dive deeper into particular issues, I conducted 166 formal, semistructured interviews with teens during the period 2007–2010.2 I interviewed teens in their homes, at school, and in various public settings. In addition, I talked with parents, teachers, librarians, youth ministers, and others who worked directly with youth. I became an expert on youth culture. In addition, my technical background and experience working with and for technology companies building social media tools gave me firsthand knowledge about how social media was designed, implemented, and introduced to the public. ”
O que nos diz Boyd sobre os Nativos Digitais
“As sociologist Eszter Hargittai has quipped, many “teens are more likely to be digital naives than digital natives.” Eszter Hargittai
“Media narratives often suggest that kids today — those who have grown up with digital technology — are equipped with marvelous new superpowers. Their multitasking skills supposedly astound adults almost as much as their three thousand text messages per month. Meanwhile, the same breathless media reports also warn the public that these kids are vulnerable to unprecedented new dangers: sexual predators, cyberbullying, and myriad forms of intellectual and moral decline, including internet addiction, shrinking attentions spans, decreased literacy, reckless over-sharing, and so on. As with most fears, these anxieties are not without precedent even if they are often overblown and misconstrued. The key to understanding how youth navigate social media is to step away from the headlines—both good and bad—and dive into the more nuanced realities of young people.”
E sobre a Identidade e os “contextos colapsados”
“Mark Zuckerberg, the founder of Facebook, is quoted as having said, “Having two identities for yourself is an example of a lack of integrity.”
“Even when teens have a coherent sense of what they deem to be appropriate in a particular setting, their friends and peers do not necessarily share their sense of decorum and norms.”
“What makes this especially tricky for teens is that people who hold power over them often believe that they have the right to look, judge, and share, even when their interpretations may be constructed wholly out of context.”
“A context collapse occurs when people are forced to grapple simultaneously with otherwise unrelated social contexts that are rooted in different norms and seemingly demand different social responses. For example, some people might find it quite awkward to run into their former high school teacher while drinking with their friends at a bar. These context collapses happen much more frequently in networked publics.” “In Iowa, I ended up casually chatting with a teen girl who was working through her sexuality. She had found a community of other queer girls in a chatroom, and even though she believed that some of them weren’t who they said they were, she found their anonymous advice to be helpful. They gave her pointers to useful websites about coming out, offered stories from their own experiences, and gave her the number of an LGBT-oriented hotline if she ran into any difficulty coming out to her conservative parents. Although she relished the support and validation these strangers gave her, she wasn’t ready to come out yet, and she was petrified that her parents might come across her online chats. She was also concerned that some of her friends from school might find out and tell her parents. She had learned that her computer recorded her browser history in middle school when her parents had used her digital traces to punish her for visiting inappropriate sites. Thus, she carefully erased her history after each visit to the chatroom. She didn’t understand how Facebook seemed to follow her around the web, but she was afraid that somehow the company would find out and post the sites she visited to her Facebook page. In an attempt to deal with this, she used Internet Explorer to visit the chatroom or anything that was LGBT-related while turning to the Chrome browser for maintaining her straight, school-friendly persona. But still, she was afraid that she’d mess up and collapse her different social contexts, accidentally coming out before she was ready. She wanted to maintain discrete contexts but found it extraordinarily difficult to do so. This tension comes up over and over again, particularly with youth who are struggling to make sense of who they are and how they fit into the broader world.”
E ainda sobre privacidade:
“Just because teenagers use internet sites to connect to other people doesn’t mean they don’t care about their privacy. We don’t tell everybody every single thing about our lives.... So to go ahead and say that teenagers don’t like privacy is pretty ignorant and inconsiderate honestly, I believe, on the adults’ part.”
Deixo também algumas conclusões gerais que me parecem sintetizar muito bem todo o espírito do livro:
“It is easy to make technology the target of our hopes and anxieties. Newness makes it the perfect punching bag. But one of the hardest—and yet most important—things we as a society must think about in the face of technological change is what has really changed, and what has not (..) “It is much harder to examine broad systemic changes with a critical lens and to place them in historical context than to focus on what is new and disruptive.”
“teens are as they have always been, resilient and creative in repurposing technology to fulfill their desires and goals. When they embrace technology, they are imagining new possibilities, asserting control over their lives, and finding ways to be a part of public life. This can be terrifying for those who are intimidated by youth or nervous for them, but it also reveals that, far from being a distraction, social media is providing a vehicle for teens to take ownership over their lives.”
O livro está editado em Portugal pela Relógio d’Agua sob o título “É Complicado. As Vidas Sociais dos Adolescentes em Rede” (2015).
Passada toda uma pré-adolescência a ver filmes americanos sobre o Vietname, que mostravam os bons americanos e as suas façanhas e todo o seu altruísmo heróico contra os maus, os "vietcongues", sempre prontos a matar e a fazer explodir os indefesos e os soldados (“The Deer Hunter”, (1978), “Apocalypse Now” (1979), “Missing in Action” (1984), “Rambo” (1985), “Platoon” (1986), “Good Morning Vietnam” (1987), “Full Metal Jacket” (1987), “Casualties of War” (1989)), a que se juntaram algumas tentativas de mostrar outras janelas sobre o conflito — como “Gardens of Stone” (1987) ou “Born on the Fourth of July” (1989) — ficaram sempre todos muito aquém, porque se basearam sempre na perspetiva exterior, nomeadamente a americana, apenas sobre o conflito e a política, deixando de fora as pessoas, aquelas que habitavam o Vietname.
Talvez o filme que mais se tenha aproximado surgiu numa fase já mais tardia desta vaga, já como terceiro filme de Oliver Stone sobre o conflito, um dos poucos realizadores que esteve realmente na Guerra do Vietname, intitulado “Heaven & Earth” (1993). Ainda assim, e apesar de baseado em livros de Le Ly Hayslip, uma autora vietnamito-americana, acaba por surgir filtrado por Stone, dando conta da realidade que releva para os olhos americanos. Aliás, nesta altura os franceses quiseram também dar conta da sua posição no conflito, ou melhor, do que antecedeu o conflito, e deram-nos “Indochine” (1992), e ainda que como “Heaven & Earth” vá muito além de tudo o resto, mostrando uma realidade do Vietname até aqui desconhecida, continua a ser uma expressão francesa sobre o outro.
Não é só por tudo o que disse acima, mas é também muito por isso que este livro de banda-desenhada autobiográfico de Thi Bui, “The Best We Could Do” (2017), ganha uma enorme importância, porque é chegado o tempo de quem sofreu se expressar, de dar a conhecer ao mundo os seus sentires, explicar o que aconteceu, como e porquê, ainda que seja sempre o seu lado da história. Ainda há um par de anos Matt Huynh tinha feito uma incursão neste universo por meio de uma brilhante banda desenhada interativa, "The Boat" (2015), de que aqui dei conta. Contudo Thi Bui conseguiu chamar a atenção com este livro, e não é por acaso que Bill Gates o recomenda como um dos seus livros de 2017.
Viet Thanh Nguyen, o autor vietnamito-americano de “O Simpatizante”, o Pulitzer de 2015 que deu um dos primeiros empurrões para o que parece ser esta nova vaga de histórias sobre o Vietname, surge na capa desta banda-desenhada, dizendo sobre a mesma: "Um livro para despedaçar o seu coração e depois curá-lo". Não podia estar mais de acordo, pois se o livro tem um enorme valor histórico-social, capaz de nos ajudar a compreender os sentires de uma população que sofreu os piores males da guerra e da política, não deixa de ser uma belíssima narrativa, construída com grande virtuosismo. Se no início somos levados a desejar compreender a história daqueles personagens, e a meio conduzidos pela tentativa de compreender a problematização política, no final só o sentimento nos é dado, tudo se eleva, tudo se demarca, e o pensamento conduz-se apenas para a razão do que é ser-se humano neste nosso pequeno planeta.
E por isso, se inicialmente me pareceu algo condescendente a escolha de Gates, no final do livro tenho de dizer que "The Best We Could Do" foi uma das minhas grandes leituras de 2017.
Trago uma novela gráfica interativa de 2015, "The Boat" de Matt Huynh, sobre a qual não tenho muito a acrescentar aos inúmerostextos e prémios granjeados. Contudo, a qualidade do trabalho impressionou-me tanto que não quis deixar passar a oportunidade de registar aqui a sua existência, e de algum modo continuar a promover o trabalho que continua tão atual como quando foi publicado.
"The Boat" é uma adaptação do conto homónimo de Nam Le que nos fala da fuga de refugiados do Vietnam para a Austrália aquando a guerra em 1975. Inevitável pensar nos refugiados que hoje fogem da Síria para a Europa, é tudo tão similar, até a resposta dada pela Austrália foi tão similar. Contudo o sofrimento humano é o que mais nos arrepia, e esse fica bem plasmado na excelência do trabalho de ilustração de Matt Huynh.
Trailer
Do ponto de vista interativo existe pouco a ressalvar, usa-se a técnica de scroll muito em voga nos WebDocs, adicionando-lhe quatro pequenos ramos, também lineares, mas que acabam por gerar os únicos verdadeiros acessos de interatividade, já que no resto do trabalho se poderia aceder a toda a banda desenhada em modo não-interativo, recorrendo ao scroll automático proporcionado. No entanto o uso do scroll manual proporciona não apenas o controlo do ritmo da experiência narrativa, e o acesso aos ramos lineares extra, mas também confere feedback visual por meio de pequenos movimentos do fundo que vão seguindo a posição da nossa ação de scroll.
Quando o tema se aprofunda e enreda em questionamentos sobre o ser, a interatividade reduz-se, porque mais do que conduzir à ação, interessa provocar a reflexão. "Far From Noise" (2017) de George Batchelor é um desses artefacto interativos, que tem como intuito introduzir-nos nas discussões do Transcendentalismo, corrente filosófica promovida Ralph Waldo Emerson e defendida por Henry David Thoreau numa das suas mais emblemáticas obras, "Walden" (1854), de que não gostei particularmente. Somos introduzidos num único cenário que se vai alterando em pequenas variações, restando-nos conversar com os elementos que vão surgindo em nosso redor.
Podia ser uma banda desenhada interativa, mas o facto de estar centrado num plano único retira-lhe o necessário efeito de sequencialidade, ao que se junta a apresentação de um jogo de frases que condicionam o desenrolar dos eventos. Pensando na ficção interativa, o facto de termos variabilidade visual suportada por vários parâmetros — "Colour grade & tint; Sky gradient colours; Light rotation, intensity and shadow strength; Vignette intensity; Sea, Stars and Sun animation" — retira também qualquer sentido a essa classificação. Julgo ser melhor pensar antes que estamos perante um videojogo que opta por reduzir o nível de interatividade, pelas razões já apontadas acima. Para muitos não é aquilo que convencionaram no seu modelo mental como videojogo, mas isso não faz do artefacto algo menor, antes pelo contrário.
O resultado é uma obra sóbria, que apesar de imensamente simples não perde nada na sua capacidade de nos engajar, de nos manter interessados e atentos ao desenrolar dos eventos, sentido gratificação sempre que o cenário se modifica, seguindo a discussão e questionando o que está a ser experienciado.
Pode ser jogado na PS4, PC ou Mobile. Precisam apenas de 2 horas, mas de preferência façam-no pela noite dentro, "longe do ruído" do dia, dos outros, de tudo, para poderem sentir a experiência completa.
Quanto mais Poemas Épicos leio mais me convenço da nossa irrealidade, ou da nossa capacidade para criar, literalmente, a realidade em que vivemos. Estes poemas são a base cultural de toda a sociedade Ocidental, nascidos da oralidade, sobreviventes pelo registo em texto, formadores de grande parte da história antiga que hoje conhecemos, ou da nossa Mitologia. Temos deuses que agem como humanos, e temos humanos que seriam especiais por serem filhos desses deuses, temos espaços e eventos imaginados que serviram o perpetuar da imaginação desses tempos até aos nossos dias. Ler estes poemas é uma experiência distinta e exótica, porque se é tudo fantasia, dando conta de grandes irrealidades, é ao mesmo tempo tudo História, pedras de texto efetivas que sustentam toda a nossa literatura, toda a nossa cultura, tudo aquilo que somos hoje.
"Eneias foge de Troia que Arde" (1598) de Federico Barocci, (Abertura do Livro I)
Para compreender a ideia basta pensar no facto de Troia não ter nunca existido enquanto cidade, nem sequer enquanto reino. Que os seus príncipes e reis, filhos de Deuses, naturalmente também nunca existiram. Contudo quando realizamos pesquisas sobre os mesmos, as suas histórias desenrolam-se em teias de infinitos detalhes, elementos captados de uma miríade de artefactos criados ao longo de milénios, não apenas textos — nomeadamente o chamado Ciclo Épico do qual fazem parte os poemas basilares da "Ilíada" e "Odisseia" e ainda um conjunto de outros poemas semi-destruídos ou perdidos — registos de histórias orais, mas também imagens — desenhadas em vasos e frescos — e muitas esculturas que foram servindo a construção de mitos, a sua promoção e distribuição, e depois a sua preservação até aos nossos dias. As várias cidades e povos confundem-se entre realidade e mito — Troia, Dardânia, Esparta, Itaca, Grécia Antiga, Roma Antiga, etc. — com personagens que fundem deuses — os doze deuses gregos: Zeus, Hera, Poseidon, Atena, Ares, Deméter, Apolo, Ártemis, Hefesto, Afrodite, Hermes e Dioniso; e os correspondentes doze deuses romanos: Júpiter, Juno, Neptuno, Minerva, Marte, Ceres, Febo, Diana, Vulcano, Vénus, Mercúrio e Baco — e humanos — Menelau, Helena, Paris, Heitor, Aquiles, Agamemnon, Ulisses, Eneias, Príamo, Turno, Latino, etc. Nem sequer os criadores escapam a esta fusão entre ficção e realidade, desde logo com a dúvida sobre Homero: terá existido?; e se existiu terá escrito a “Ilíada” (VIII a.C.) e a “Odisseia”(VIII a.C.)?; e se escreveu não seriam estas apenas histórias orais criadas ao longo de milénios precedentes?
Eneias carregando Anquises, vaso de 470 a.C.
A “Eneida” (I a.C.) tem uma génese menos complexa, mais tradicional, já que surge como encomenda por parte do imperador Augusto a Virgílio. 600 anos depois da "Ilíada" e "Odisseia" um poeta numa sociedade, a romana, que preservava muito os registos e por isso temos muito mais conhecimento sobre o que se passou, tenta responder à génese de Itália partindo de Troia. Mas porquê voltar a Troia, é a dúvida com que se fica, mais ainda pelo facto de Augusto pedir a Virgílio uma história que simbolizasse o nascimento de Itália, como é que então essa história poderia apresentar um estrangeiro, vindo de Troia, a derrubar os Latinos. É verdade que Augusto põe fim à República e inicia o Império, tornando-se no primeiro Imperador de Roma, mas ainda assim Augusto era filho de Roma, não tinha qualquer conexão com o exterior. Augusto terá pedido um texto com as qualidades da “Ilíada” e “Odisseia”, para enaltecer cantando o poder do imperador, o que mostra também o lado propagandístico destes Poemas Épicos. Mas Virgílio responde a esse dilema criando uma nova ramificação no mito de Eneias: a cidade de Troia teria sido fundada por Dardano, que segundo os mitos romanos seria originário de Itália.
É preciso esclarecer que apesar de arma de propaganda, se a “Eneida” sobreviveu, não como texto escrito mas como parte do nosso imaginário cultural, deve-o mais a Virgilio e menos a quem o pediu e pagou, desde a estrutura à qualidade poética. No primeiro campo, Virgílo dividiu o seu poema em duas partes: na primeira (Livro I a VI) temos a jornada de Eneias para Itália, colado ao regresso de Ulisses de Troia para Itaca, espelhando assim a narrativa da “Odisseia”; na segunda metade (Livro VII a Livro XII) temos a luta entre Eneias e Turno, numa aproximação à luta entre Aquiles e Heitor, e assim emulando a “Ilíada”. Esta colagem não é meramente estrutural, Virgílio socorre-se das estruturas de Homero para elaborar novas linhas narrativas, não apenas dando conta da relação entre o fim de Troia e o nascimento de Itália, mas também porque vai relacionar toda a ficção mitológica com factos reais do seu tempo, servindo os interesses de Augusto, mas servindo-nos também enquanto registo histórico.
Parte 1: Jornada para Itália
I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
II - Eneias narra a Dido o último dia de Troia
III - Eneias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
IV - Os amores de Dido e seu fim trágico
V - Os jogos fúnebres
VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos
Parte 2: Guerra em Itália
VII- Chegada ao Lácio
VIII- Evandro. Descrição do escudo de Eneias
IX- Ataque ao acampamento troiano
X- Façanhas e morte de Palante
XI- Funerais dos guerreiros.
XII- Combate de Eneias e de Turno.
"Eneias derrota Turno" (1688) Luca Giordano (Fecho do Livro XII)
Impressiona ver como um texto escrito séculos depois, retoma personagens, eventos e factos, para dar vida a uma nova narrativa capaz de suster o nosso interesse, e foi isso que me levou a questionar de onde vinha tudo isto, como e porquê. A resposta volta sempre a um mesmo local, a imaginária Troia, cidade na Terra nascida da vontade de deuses, envolta numa guerra de 10 anos alimentada por esses mesmos deuses, que defendiam lados diferentes (como se pôde ver na “Ilíada”). Este mundo ficcional terá então surgido na forma oral, discutindo-se ainda hoje se a “Ilíada” e a “Odisseia” não teriam surgido na forma de poema por serem estruturas mais dadas à memorização de quem os relatava oralmente. Aos dois grandes poemas, outros se juntam ainda na forma de poemas épicos mas entretanto perdidos — Nostoi, Telegonia ou Titanomaquia, formando o que se chama hoje de Ciclo Épico. Se estes apontam para o período VIII a VI a.C., passados quatro séculos voltaríamos a encontrar menções ao mesmo universo, alargando as suas histórias, já não meramente na forma oral mas como performance teatral, nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. E passados outros tantos séculos, Virgílio retoma Troia, agora na forma textual, para ampliar a mitologia já numa abordagem romana.
Mapa homérico. Mostra a bacia que coloca frente a frente a Grécia e a Turquia, onde ficaria a cidade de Troia, podendo ver-se os locais onde foram morrendo os vários heróis. Fonte
Ler a “Eneida” requer pelo menos a leitura da “Ilíada” e “Odisseia”, e alguma pesquisa histórico-mitológica, porque só assim o que vamos lendo ganha sentido. No fundo falamos do primeiro grande artefacto transmedia. Se o universo original era oral, e tinha já sido expandido na forma teatral, foi Virgílio quem lhe deu forma textual, e assim espalhou a história de Troia por três meios diferentes, ainda que hoje a eles todos possamos aceder em texto. Por outro lado, o que se conta está intimamente ligado ao que já foi contado mas vai para além do mesmo, dando conta da premissa base de qualquer obra transmedia, que é a expansão narrativa. Repare-se como a "Eneida" não se limita a expandir num sentido sequencial, por exemplo na viagem para Itália, Eneias passa por alguns locais por onde Ulisses tinha passado, encontrando não apenas personagens desse locais, como encontrando um amigo de Ulisses deixado para trás na sua luta contra os Ciclopes, funcionando como um grande momento transmedia, pela recompensa narrativa que oferece em explicações adicionais sobre eventos ocorridos numa outra narrativa.
"Troia" (2004) de Wolfgang Petersen
Mas Troia não se fica pela Oralidade, Teatro e Texto, ao longo dos séculos e desde muito cedo, foram sendo criadas imagens em vasos e frescos, ainda que mais ilustrativas, assim como esculturas, não só de personagens mas de cenas complexas, e se quisermos, como cereja em cima de todo este bolo, passados mais de 27 séculos o universo continua vivo, tendo sido ainda no ano de 2004, posto em cena, num filme que por não querer versar apenas sobre um dos poemas, foi dedicado a "Troia", e junta nele mesmo várias histórias espalhadas por vários textos. E se existe quem tenha apontado erros de leitura histórica ao filme, eu, e na senda do transmedia que refiro acima, vejo esses erros mais como parte da continuada expansão narrativa desse universo imortal.
Pequeno apanhado que fiz do universo transmedia desenvolvido em redor do tema da Guerra de Troia
E por fim, e porque a ficção/realidade é nestas leituras uma constante imensidão imaginária, e porque este texto é sobre a “Eneida” e Virgílio, não podemos esquecer que se Virgílio foi um dos grandes impulsionadores da mitologia, ao preservar e estender o Universo de Troia, ele próprio acabaria por tornar-se personagem ficcional e principal de um outro grande épico, que a estes se liga, escrito 1500 anos depois, a “Divina Comédia” de Dante, que conto ler de seguida.
Continuar a ler:
Sobre a Ilíada no VI
Sobre a Odisseia no VI