julho 03, 2017

Memórias de Adriano (1951)

Uma leitura histórica de um livro histórico sobre uma personagem da nossa História. Adriano, o imperador de Roma que estabeleceu a Paz e escolheu como sucessor o único imperador filósofo de Roma, Marco Aurélio. O livro assume um caráter confessional emulativo, com Yourcenar a investir 25 anos da sua vida para conseguir sentir-se na pele do imperador do século II, e assim dar-nos a experienciar a hipotética última carta de Adriano, já doente, para Marco Aurélio que o iria suceder. Uma viagem no tempo, por meio de uma escrita perfeita e intensa, carregada de poética e com muito para nos ensinar.


O livro é de 1951, foi um enorme sucesso e já foi amplamente dissecado, ainda assim talvez o melhor que se possa ler sobre esta obra sejam as notas finais que Yourcenar coloca no fim do livro, para compreendermos a aventura e a vida necessária para chegar ao termo desta obra. Se aprendemos a respeitar Adriano ao longo do curto livro, não menos respeitaremos Yourcenar por tudo o que passou para nos colocar estas páginas nas mãos.


Villa Adriana, uma vila de 120 hectares situada a 30 km de Roma, na qual terá vivido Adriano.

E isto leva-me ao que senti ao longo de todo o livro. Porque se adorei e recomendo vivamente, não posso deixar de dizer que é obrigatório ler, antes ou depois, “Meditações” (180) de Marco Aurélio. Se adoraram Adriano, nem sabem o que perdem para amar Marco Aurélio. Para mim que o li primeiro, consegui sentir Yourcenar a bater no tom perfeito do livro, a proximidade do discurso, da melancolia, do distanciamento no tempo, está tudo lá, mas não está. Ler as palavras, ditas, escritas, pensadas por Marco Aurélio é capaz de por vezes nos arrepiar. Como se fossemos colocados num modo telepático com o imperador de há 2000 anos.

Não conheço suficientemente História para saber o que cada um destes homens fez para além do que vem nestes dois livros, mas pensava ao ler o livro de Yourcenar, que o facto de ter sido escrito por alguém que vê de fora, talvez faça com que os escritos sejam mais balanceados. Adriano foi um grande imperador, mas era uma pessoa também cheia de defeitos e coisas mesquinhas, muitas delas fruto do tempo e posição que ocupou. Já em “Meditações” é tudo tão perfeito, quase sonho, e apesar de Marco Aurélio ter sido um verdadeiro filósofo, talvez nos seja dado a ver apenas uma parte da sua pessoa, ainda que ele tenha escrito tudo aquilo sem qualquer intenção de se publicar.

Adriano fica para mim como um imperador de enorme dignidade e visão. Duas histórias marcaram a minha leitura: Antínoo e Judeia. Adriano não teve filhos, apesar de casado o grande amor da sua vida foi um jovem rapaz de 20 anos, Antínoo, que deu a vida pelo seu imperador, e a quem este dedicou uma cidade inteira. Muitas histórias existem à volta deste personagem da nossa História, uma dessas foi contada por Fernando Pessoa num extenso poema que lhe dedicou em inglês, "Antinous: A Poem" (1915). Quanto à Judeia, é no mínimo estranho que Adriano tenha ficado ao mesmo tempo como o imperador da Paz e aquele que criou a Palestina.

Busto de Antínoo, encontrado na Villa Adriana. Colecção do Museu do Vaticano

Ainda assim e comparando mais uma vez ambos os livros, prefiro “Meditações” pelo facto de serem memórias de pura reflexão sobre o ato de viver, dos porquês desta vida, enquanto “Memórias de Adriano” é mais relato do que se viveu, dos como se vivia e poderia viver, mas o melhor sem dúvida surge em tudo aquilo em que ambos se complementam.

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

junho 27, 2017

Germinal (1885)

Zola é considerado o pai do naturalismo literário, mas é um naturalismo muito particular que vem carregado de simbolismo e melodrama. Zola parte de uma abordagem panfletária assente em intensidade retórica, mas não deixa de lado toda a maquinaria da narrativa e persuasão dramática para nos envolver e ao mesmo tempo instigar à reflexão. O resultado é uma obra muito forte que nunca se verga porque não procura dar respostas, exatamente por fugir ao panfleto e porque está mais interessada em questionar o fundo da tragédia.

"Germinal" acontece numa região mineira francesa focando-se numa greve desencadeada por uma crise internacional que pressiona a baixa de salários. O conflito serve para descrever as condições de trabalho, a criação de uma organização sindical de operários e as reações da burguesia e do capital. Pelo meio ficamos a conhecer as condições em que trabalham e vivem os mineiros que servirão para nos interrogar sobre a natureza do humano.
O naturalismo literário apesar de se definir como imanente das grandes teorias científico-naturais da época (nomeadamente a teoria da evolução de Darwin), e apesar de considerar o humano na sua envolvente natural e biológica, afastado das problemáticas religioso-superticiosas, serve-se da força da tragédia dramática para acentuar a emoção narrativa. Ou seja, tendo ideias fundeadas na natureza para relatar, não procura formas expressivas, ditas naturais, para o fazer. Isto é tanto mais evidente quando comparado, por exemplo, com o chamado neo-realismo italiano (movimento artístico cinematográfico dos anos 1940-50), em que para dar conta de forma naturalista das realidades vividas, se empregavam atores não-profissionais, filmava-se nos locais reais, e usava-se uma cinematografia o mais sóbria possível. É verdade que em termos narrativos também se apontava o foco às tragédias e aos dilemas, contudo notava-se uma tentativa de refrear os mecanismos do cinema para não impactar de modo visceral os espectadores.

Zola pelo seu lado não olha a meios. Vai ao fundo da investigação sobre o que está a relatar. Passou meses numa comunidade de mineiros e desceu ao fundo de várias minas para compreender a brutalidade da experiência, trazendo tudo para o centro do livro. Mas não se limita a descrever ou sequer demonstrar, tudo é envolvido por um teia de personagens ainda que naturalistas, colocados em situações de conflito geometricamente definidas para produzir impacto dramático nos leitores. Isto é tanto mais evidente pela quantidade de situações simbólicas que vão surgindo ao longo do texto (ex. título da obra, os nomes das minas e de vários personagens; a descida e subida dos cavalos; os corpos que bóiam; ou os excisados das partes), quanto pelo melodrama representado na figura do romanceado do trio de personagens centrais; ou do administrador da mina e da sua infiel mulher.

Imagem do filme de Claude Berri:"Germinal "(1993)

Lê-se que Zola terá optado por uma componente romanceada, com tragédia amorosa, com o objetivo de poder fazer chegar a obra a um público mais vasto, nomeadamente às pessoas com quem conviveu e que lhe serviram de modelo nas minas que visitou. Acredito que sim, tal como acredito que isso é também responsável pela popularidade do livro. Ou seja, questões complexas e muito pouco digeríveis — como a formação de um sindicato, os excessos do capitalismo, as alternativas do comunismo e da anarquia, ou os direitos e os deveres de trabalhadores — não teriam sido capazes per se de catapultar esta obra. Mas de certo modo, esse romancear, ou melhor a nossa necessidade desse romancear, acaba por ir de encontro ao naturalismo. Se desejamos apresentar uma realidade da forma mais natural possível, não deverá essa mesma apresentação realizar-se seguindo a forma mais natural de o recetor/leitor a compreender? É muito provável que Zola tenha conseguido com esta obra algo que tão raramente se consegue, juntar a necessidade de expor factos e a necessidade de experienciar esses factos.
“Esses operários chapeleiros de Marselha que ganharam a sorte grande de cem mil francos e, imediatamente, foram comprar títulos, dizendo que de agora em diante iam viver sem fazer nada! Essa é a intenção de todos vocês, operários franceses: encontrar um tesouro e em seguida comê-lo sozinhos, refestelados no egoísmo e na vagabundagem. Gostam de gritar contra os ricos, mas não têm coragem de dar aos pobres o dinheiro que a sorte lhes envia... Vocês nunca serão dignos da felicidade enquanto possuírem alguma coisa, enquanto esse ódio aos burgueses for apenas o desejo desesperado de serem burgueses também.”
Apesar desta minha aparente crítica, “Germinal” é brutalmente naturalista no que à psicologia e fisiologia se refere. Não é por acaso que muitos se distanciam da obra, pela sua fealdade, pelo retrato grotesco que do humano dá. Zola opera como investigador de microscópio em punho, olhando ao detalhe e relatando ainda mais detalhadamente, o que sentem as pessoas e como sentem. Não há pejo, as palavras são ditas, os atos selvagens representados sem dó, e ao leitor resta esconder-se no cantinho da sua humanidade, e esperar não ser contagiado por tanta barbaridade. Da promiscuidade ilimitada ao assassinato sem motivação, tudo surge por força da natureza humana, da impossibilidade de fugir às malhas naturais não domadas ainda pela civilização.



Imagens reais de mineiros e mineiras da época

Aliás, isso é aquilo que mais ressalta para mim de toda esta obra, mais até do que o fortíssimo ataque ao capitalismo, a animalidade humana. Uma comunidade que durante uma centena de anos trabalhou de sol a sol para ter um tecto e pão na mesa, a quem todos abandonaram. Atirados para um bairro, reduzidos à condição de irrelevantes, sem acesso a escolas, a quem nem sequer a Igreja ligava. Submetidos ao mínimo das necessidades fisiológicas —  a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção e o abrigo (Maslow)—, não restando tempo nem espaço para as restantes necessidades — a segurança, a família, a auto-estima, impossibilitando qualquer almejo de realização pessoal. Zola tendo sentido isto mesmo, dá-o a sentir de forma absolutamente detestável, é difícil ler porque é difícil aceitar que assim se possa viver.

“Germinal” é leitura obrigatória nas escolas francesas, mas não faria mal nenhum se também o fosse nas escolas portuguesas. As primeiras páginas não cativam, mas chegando ao fim da primeira centena torna-se impossível parar o virar de páginas. O desenho da narrativa, a suspensão ante o que vai acontecer a seguir, e o ritmo intenso traduzido em frases curtas e muito diretas, fazem desta obra tão profundamente sócio-política um autêntico thriller. Poder aprender sobre um tema que passados 100 anos continua atual por meio de toda uma experiência de leitura altamente envolvente, tem um valor inestimável.


Nota sobre a tradução. É uma pena que a única tradução portuguesa de Eduardo de Barros Lobo date já de 1885. Apesar de não lhe apontar propriamente erros formais, a fluidez e ritmo tão caros a Zola, perdem-se completamente. Acabei por preferir a leitura na tradução em Português do Brasil, de Francisco Bittencourt para Abril, de 1981.

junho 24, 2017

The Thrilling Adventures of Lovelace and Babbage (2015)

A história, e o tardio reconhecimento, de Ada Lovelace como pioneira da Algoritmia — criadora do primeiro potencial programa para computador — criou em mim expectativas demasiado altas para este livro que de algum modo acabaram por não se concretizar. Sendo interessante, e muitas vezes divertido, faltou-lhe alguma seriedade que gostaria de ter visto em homenagem a Lovelace. Não podemos esquecer que a computação tem sido uma área quase exclusivamente masculina, daí que ter como pioneira da área uma mulher é algo absolutamente ímpar.


O algoritmo desenvolvido por Lovelace foi escrito, entre 1842 e 1843, como notas de rodapé a um texto de Babbage. O texto original surgiu como transcrição em francês de uma comunicação que este tinha feito em Itália, e Lovelace tinha sido contratada para traduzir o mesmo para inglês. Contudo ao realizar a tradução, Lovelace desatou a escrever notas de rodapé explicativas do texto, indo muito para além daquilo que estava contido no texto original de Babbage, ultrapassando completamente a sua visão, apresentando assim aquele que é hoje considerado o primeiro programa para computador escrito.

Tendo em conta este feito, a criadora deste livro, Sydney Padua, resolveu prestar uma homenagem direta na forma do livro. Ou seja, não temos uma novela gráfica tradicional, mas antes uma novela gráfica intercalada por extensas notas de rodapé, que por sua vez têm ainda notas finais. Deste modo, temos metade livro tradicional, ainda que escrito em notas, e metade banda desenhada.

Notas de rodapé que vão muito além dos quadradinhos da banda desenhada.

Padua não se ficou pela forma. Padua parece ter digerido bibliotecas a respeito de Lovelace antes de avançar para a criação deste trabalho, por isso que teve de pensar um modo para explanar tanta informação absorvida. Em vez de se ficar pelo contar da biografia de Lovelace e Babbage, e tendo em conta que tudo aquilo que ambos criaram tinha-se ficado por um conjunto de propostas e modelos não aplicados, resolveu criar um conjunto de aventuras potenciais nas quais os seus feitos teriam sido levados à prática, aproveitando Padua para assim dar conta da história da informática. Para tornar estas aventuras ainda mais atrativas, Lovelace e Babbage são acompanhados por escritores ingleses de peso — como Coleridge, Lewis Carroll, George Eliot, ou Charles Dickens — o que faz imenso sentido se tivermos em consideração que o pai de Lovelace foi nada menos que o poeta Lord Byron.

A luta entre a Poesia de Lewis Carroll e a Matemática de William Hamilton

O resultado final é uma obra que transpira trabalho e inteligência, que usa o sentido de humor para dar conta de questões de complexas, mas acaba por não conseguir uma coerência completa. A constante interrupção entre os diferentes estilos de escrita — banda desenhada e notas — retira prazer à leitura. Por outro lado, o modo como a autora vai especulando sobre os feitos de Lovelace e entremeando com a história real da computação ao longo do tempo resulta em algo, que apesar de cómico, confuso e muito pouco pedagógico.


Recomenda-se a amantes da informática e da abordagem steampunk.

junho 22, 2017

O Nome da Rosa (1980)

Vi o filme no cinema quando saiu por cá, na segunda metade da década 1980, e ao longo da década de 1990 vi-o em VHS mais de uma dezena de vezes, até que o arrumei na prateleira e na minha cabeça como objeto definido e fechado. Não tendo nesse tempo chegado a ler o livro e tendo depois ‘arrumado’ o filme, só agora, passados vinte anos, resolvi revisitar a biblioteca-labirinto na abadia medieval, mas resolvi fazê-lo através do livro. As primeiras páginas fizeram ressurgir todo o universo do filme, não sendo nunca capaz de superar as memórias que em mim existiam, mas ao chegar à última página vi-me obrigado a aceitar que as duas obras se distanciam, já que o filme se fica pela análise histórica envolvida por uma teia de crimes, enquanto o livro vai para além disto, apresentando toda uma camada reflexiva para o leitor que a ela se queira dedicar. Contudo, tenho perfeita noção que nada de novo tenho para dizer, e se escrevo as linhas que se seguem é apenas por necessidade pessoal de reflexão e verbalização sobre a obra.


A Abadia de São Miguel em Piemonte, Itália que serviu de inspiração a Umberto Eco

Eco teve imensa sorte com o sucesso conseguido com o seu primeiro livro de romance. Não é fácil para um académico passar da escrita densa e seca das reflexões escolares para uma escrita escorreita e envolvente como o romance obriga. O modo como realizou essa transição foi inteligente, já que optou por um caminho intermédio, ou seja criando uma obra de edutainment (entretenimento educativo), socorrendo-se de um género que se viria a tornar nos anos mais recentes altamente popular, o Romance Histórico. Mas não se ficaria por aí, aquilo que distinguiria este trabalho de Eco dos demais foi no fundo aquilo que lhe permitiu aliviar a transição entre géneros, ou seja, o modo como ele liga a sua área de especialidade académica (a semiótica, o estudo da criação de sentido) com a aventura romanesca (a procura de pistas). Guilherme de Baskerville não anda apenas à procura do assassino, anda também à procura do sentidos, fazendo-o de uma forma pouco ortodoxa para a época em que se encontra.

Assim Eco conseguiu de forma simples criar um romance em camadas, permitindo a um grande público seguir atrás da tradicional história de crime e mistério, enquanto uma outra parte do público se dedicaria a tentar compreender as restantes camadas "escondidas" pelo autor. Enquanto na camada mais visível temos Sherlock Holmes a ligar provas entre si, nas restante camadas temos Eco à procura de sentidos em palavras, gestos, textos e contextos, apresentando Guilherme como o homem renascentista que renuncia a Inquisição e ao obscurantismo, em busca da verdade suportada em evidência empírica. Este novo homem, espécie de Eco investigador e semiótico que regressa ao passado, dá conta de uma viragem crucial na história europeia, do momento em que se abrem as portas renascentistas ao mundo da Ciência. O conhecimento científico que viria a servir para retirar o ser humano do caminho das trevas religiosas, trocando-o pela auto-estrada do auto-conhecimento e consequente progresso humano.

O próprio centro da obra, a Biblioteca, é mais importante que os assassinatos. Repare-se como aqueles agarrados ao fanatismo religioso e ao status-quo tudo faziam para manter as trevas, impedindo o acesso ao conhecimento, escondendo-o dentro de labirintos inacessíveis e mortais. Uma biblioteca que não servia para dar a conhecer mas para esconder. Ou seja, Eco consegue unir o melhor do romance, o crime-aventura, com o melhor da busca de sentido, a ciência.

A obra final que serve de móbil aos crimes, o livro perdido da Poética de Aristóteles, o segundo tomo que se supõe versar sobre a Comédia, é um passo magistral. Tendo sido devidamente preservado no filme, durante muito tempo me questionei porquê um livro sobre o riso, apesar de ser evidente a intolerância da maioria das religiões ao riso não é muito claro a razão de tal. Sim, a religião exige a seriedade e o riso não se coaduna, mas não é só isso, não seria apenas por isso que Eco faria deste o objeto central da sua obra. Na verdade o riso acaba sendo fundamental, porque nos permite colocar a realidade em perspetiva, rindo da mesma, libertando-nos do medo.
“- O riso liberta o vilão do medo do diabo (..) Ao vilão que ri, naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? ”
“- O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. ”
O riso faz de nós criaturas capazes de duvidar, suportando a vontade de conhecer e descobrir quem somos, impedindo que nos limitemos a aceitar a verdade imposta na forma de dogmas.

A Irrealidade da Cor

A colorização fotográfica sempre existiu, em processos muito diferentes, mas a verdade é que nunca nos demos por satisfeitos com os primeiros processos de impressão e registo da realidade. Se a forma e a luz superavam o realismo da pintura, a ponto de a obrigar a mudar de registo para se afastar da imagem captada pela máquina, a ausência de cor manteve sempre estas fotografias num domínio de mero quase-real. A fotografia a preto-e-branco não regista tudo aquilo que vemos e é exatamente por isso que se procura a colorização.



Apesar deste reconhecimento, a elite do mundo da arte fotográfica não vê com bons olhos o processo de colorização, nunca o viu, e para isso apresenta algumas razões. A mais consentânea diz respeito à manutenção da integralidade do estado da obra aquando a sua produção, o que é inquestionável. O problema é que este é talvez o único ponto em que podemos dar razão a quem defende a não colorização, mas mesmo fazendo-o não quer dizer aceitar que não se possam fazer experimentos, transformações, remixes de trabalhos do nosso passado, que nos permitem ver para além daquilo que é visível na obra.


Acima o processo artístico de colorização, abaixo, processos de automatização da colorização, potencialmente baseadas na gradação das próprias imagens. Como facilmente se pode depreender, a colorização é em si mesmo uma arte, a resultado final não é uma fotografia colorida, mas uma nova fotografia. (Ver o vídeo abaixo)

O facto principal que norteia toda esta raiva contra o processo de colorização vem desde o início da aceitação da fotografia enquanto arte. O simples facto de não possuir cor garantia à fotografia o registo de realidade não-real porque sem cor. Ora a partir do momento em que se lhe adiciona a cor a fotografia passa a confundir-se mais e mais com a realidade, abandonando o espectro formal, aproximando-se do mero registo de realidade. Esta revolta não aconteceu apenas na fotografia, já tinha acontecido no cinema, antes mesmo da cor chegar, com a chegada do sonoro.

Mural baseado na técnica “trompe l’oeil”, por John Pugg

Com o tempo tudo passa, como na pintura também passou o “trompe l’oeil”. Por mais que se queira a arte nunca se poderá dissociar da realidade em que vive e que procura desalmadamente dar a reviver. Por isso todos os discursos contra os processos de colorização fotográfica, ou cinematográfica, são desculpáveis mas são também minoráveis. Se dúvidas houvesse quanto a isto, bastaria pensar nos processos artísticos que se repetem, e refletir que se a pintura conseguiu abandonar a mera tentativa de registar o real para seguir em frente, o mesmo não deixaria de acontecer com a fotografia e o cinema, como já acontece.


Quando a pintura realista se baseia na fotografia (acima) e quando se baseia na realidade (abaixo), porque parece a segunda menos real? A resposta no excelente texto de Tyler Berry no Quora.

A fotografia de hoje, com cor, há muito que deixou de ser mero registo do real. É verdade que passamos os nossos dias a assumir a fotografia como real, tal como fazemos com o cinema e a televisão, contudo as imagens que daí consumimos tem já muito pouco que ver com o real real. O que acontece é que não nos damos conta de tal. Quem pára para refletir sobre o excesso de cor presente nas imagens televisivas, nas gradações tendentes ao azulado e alaranjado do cinema de hollywood, ou nos mundos impossíveis das últimas técnicas de criação fotográfica HDR, para não falar de toda a extra-realidade que a Fotografia Expandida tem aportado ao domínio?

Com e sem HDR

Vivemos numa hiperrealidade Baudrillardiana, o mundo que conhecíamos deixou de existir, porque o mundo que conhecemos existe apenas através da mediação destas janelas que tendemos a acreditar como espelhos fidedignos da realidade.

Desconstrução dos processos artísticos de colorização de fotografia

junho 17, 2017

Para sempre Marie Curie

Pelo título nunca o teria lido, e por isso me apego mais ainda a Montero que pára sempre que se refere aos ‘sempres’ e ’nuncas’, porque são marcas de não retorno, de perda. Porque se nunca o tivesse lido teria 'para sempre' perdido a oportunidade de descobrir a beleza do interior de Marie Curie, assim como a beleza da escrita de Montero, ainda que há muito tivesse interesse no seu trabalho. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um livro singular porque feito da mescla de géneros — romance, autobiografia e biografia —, um 3 em 1 que recorre ao melhor de cada género para nos cativar, informar e emocionar.


Montero perdeu o marido em 2009, depois de 21 anos juntos. Passados 3 anos chega-lhe às mãos um pequeno diário de Marie Curie que viria a ser a centelha deste livro que hoje podemos ler. O diário de Curie são pouco mais de oito cartas, uma vintena de páginas, escritas ao longo de um ano exato, de Abril 1906 a Abril 1907, ao marido Pierre Curie morto a 19 de Abril de 1906. Este mesmo diário pode ser lido na íntegra no final do livro, onde surge como anexo. Montero resolve então utilizar o diário de Curie para expressar as suas ideias sobre a emoção e a razão. Ao longo das pouco mais de 150 páginas Montero conta-nos quem foi Marie, de onde veio, como lutou e como sentiu a perda de Pierre. Para tal Montero vai socorrer-se de várias fontes além do diário, sendo duas principais: o livro da filha Eve Curie sobre a mãe, e a sua própria história de perda do marido, três anos antes.

Marie Curie foi a primeira mulher a receber um Nobel (Física em 1903), e a única a receber dois nobeis (segundo em Química em 1911). A sua filha, Irene Curie, iria suceder-lhe em 1935 (Química).

A partir destes ingredientes Montero constrói um livro sobre a dor e a morte, mas simultaneamente sobre a força e a razão de se estar vivo. Uma parte do texto parece jornalismo de investigação à volta da vida de Marie, escrita como uma boa história, com direito a suspense e mistério. Outra parte é relato interior dos sentires de Montero que se abre, fazendo-nos sentir que aos 60 anos e com mais de duas dezenas de obras publicadas já não tem de provar nada a ninguém muito menos ter medo de se libertar e desvelar totalmente. O diário de Curie não foi escrito para ser publicado, mas Montero escreve para ser lida, por isso não se esperem jorros de sentimentos. Aliás Montero refere que nunca tinha gostado de ler os teceres sobre a morte de alguém querido, dando o exemplo de "Tears in Heaven" de Eric Clapton ou "Paula" de Isabel Allende, porque diz ela: “Para mim era como se estivessem, de alguma forma, a traficar com dores que deviam ter sido conservadas puras.”

Monteiro viria a reconhecer que o idealismo não nos leva longe, e que na verdade todos nós o fazemos, cada um à sua maneira, e é aqui que nos vai dizer algo que muito me emocionou a propósito da arte, evocando Pessoa:
“Na origem da criatividade está o sofrimento, o próprio e o alheio (..) ‘A arte é uma ferida feita de luz’, dizia Georges Braque. Não só quem escreve ou pinta ou compõe música mas também os que leem e veem quadros e ouvem um concerto. Precisamos todos de beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou-o muito bem: 'A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.'”
Esta passagem é tão bem conseguida porque dá conta de uma forma tão singela daquilo que  este livro representa. Mas se não bastasse, ainda antes mesmo de entrar na discussão de Curie, e quando explicava porque escreveu este livro, Montero em mais um breve conjunto de linhas dá conta da arte da escrita, do que está por detrás do processo de escrever um romance, e posso dizer que é a descrição mais perfeita que já li:
"Para conseguir escrever um romance, para aguentar o tempo longuíssimo e aborrecido que esse trabalho implica, mês após mês, anos após ano, a história tem de manter bolhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emoção candente. E é pelo desejo de chegar a uma dessas cenas que, não sabemos porquê, nos deixam tiritar, que atravessamos talvez meses de soberano e insuportável aborrecimento ao teclado. De modo que a paisagem que avistamos ao começar uma obra de ficção é como um longo colar de escuridão iluminado de quando em quando por uma grande pérola iridescente. E avançamos com esforço pelo fio de sombras, de uma conta para a outra, atraídos como traças pelo brilho, até chegarmos à cena final que, para mim, é a última dessas ilhas de luz, uma explosão radiosa."
Este é o processo da escrita de Montero, mas é também a analogia que serve a Montero para nos dar a conhecer Curie. Não quero entrar no detalhe porque julgo este livro obrigatório, porque é obrigatório conhecer a história desta enorme senhora, da sua força interior gigantesca, não apenas dotada de razão científica mas claramente imbuída de uma força emocional muito grande capaz de lhe conferir doses de auto-motivação quase infinitas.

"Na vida, nada é para ser temido, tudo é para ser compreendido." Marie Curie

Mas se a criação artística e a ciência não forem os vossos pratos favoritos, ainda assim considero este livro obrigatório para todas as mulheres, para todos os homens feministas, e para todos os que ainda não compreenderam a razão do feminismo. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um grito lancinante sobre a posição da mulher, sobre as mudanças ocorridas na sociedade ao longo do século XX, e claro sobre a importância de Curie em todo esse processo. Não é mero romancear de papéis, de lutas entre sexos, é um olhar acutilante produzido a partir de uma mente habituada a desconstruir a sociedade em que vivemos através da carteira de jornalista, e por isso é um relato tão próximo e real e ao mesmo tempo, belo.

Para quem, como eu, sentiu uma ponta de tristeza pela resignação e enterrar de sonhos da Saga Napolitana de Elena Ferrante, posso dizer que não poderia ter lido melhor antídoto para essa tristeza. Marie Curie arrebata qualquer coração, que Força da Natureza. Obrigado Rosa Montero.


"Querido Pierre, a quem não voltarei a ver aqui, quero falar-te no silêncio deste laboratório, onde não imaginava ter de viver sem ti."
Marie Curie, 30 de abril de 1906

junho 11, 2017

Norwegian Wood (1987)

“Norwegian Wood” é Murakami num estado mais puro e realista, menos dado a explicações do sobrenatural, preso aos fios do romance, discutindo o amor e a paixão como forças existenciais e centrais para qualquer adolescente à procura de desabrochar enquanto adulto. O autor é adorado por muitos, mas é também indiferente para muitos outros, e este livro não contribui em nada para mudar opiniões. Deste modo resolvi questionar-me: porque gosto tanto de Murakami?


São várias as suas características que me interessam, desde logo, e talvez a mais relevante, seja o modo como cria atmosferas a partir dos cenários e dos personagens. Os espaços sui-generis das cidades japonesas misturados com os sentires distantes dos seus personagens, transportam-nos para uma dimensão ou realidade paralela. Tudo se passa como no nosso mundo, mas num ritmo muito mais lento, como se fosse necessário desacelerar para podermos observar a vida do lado de fora, assistindo à sua desconstrução nos detalhes daquilo que cada personagem vai fazendo ou dizendo. Porque se os personagens são misteriosos e carregados de idiossincrasias, o narrador não deixa de os apresentar num registo muito direto sem restrições morais ou sociais.

Comparando com outros livros dele, o mistério não dá espaço a elementos do sobrenatural, sendo preenchido com a fina linha entre a vida e a morte, o que acaba por transformar esta sua obra numa das mais melancólicas, exigindo dos seus leitores um estado apropriado à sua leitura.

Uma nota para quem tiver lido, ou for ler. Passei anos e anos sem nunca entender o sentido do aforismo de "Forrest Gump" (1994) que diz que "A vida é como uma caixa de chocolates, nunca sabemos o que nos vai calhar". Na verdade nunca fez sentido nenhum para mim, apesar de adorar o filme. Sim a vida é cheia de surpresas, mas daí a vê-la como um mero envelope de coisas, não consigo estabelecer qualquer analogia. No entanto Murakami consegue aqui pela primeira vez dar sentido a essa analogia, de uma forma bem distinta mas profunda, e que como diz Watanabe pode servir como verdadeira "filosofia de vida". Não vou revelar aqui o que é dito, deixo esse gostinho para quando chegarem a essa página, perto do final do livro.


Uma nota para a tradução. Li pela primeira vez Murakami por outro tradutor que não Maria João Lourenço (MJL) e foi muito bom. Não sendo uma grande tradução, perdendo-se alguma fluidez (ou talvez assim também seja por ser uma das primeiras obras de Murakami), gostei de ler a obra sem os constantes clichés da linguagem e cultura portuguesas imiscuídos no texto como tanto gosta de fazer MJL. Daí que não me tenha atraído nada que a Casa das Letras tenha adquirido os direitos e tenha lançado uma nova tradução feita por MJL. E posso dizer que ainda perdi mais essa vontade quando li um texto da própria a vangloriar-se de nem sequer se ter dado ao trabalho de ler esta tradução de Alberto Gomes. É mau, é sobranceria, e é pior ainda porque MJL nem sequer traduz diretamente do japonês.

junho 10, 2017

Robinson Crusoé (1719)

Mais do que um clássico, é parte do imaginário cultural ocidental, não existindo quem não conheça a história, de tanto ser reproduzida e recontada nas mais variadas formas. É o primeiro romance realista, lançado em 1719, escrito por um jornalista que baseado em casos reais, de pessoas perdidas em ilhas do Pacífico, resolveu friccionar uma história escrita. Apesar de toda a sua relevância, sobreviveu mal ao tempo sendo hoje um livro que, apesar de clássico, serve melhor o público infantil.


As minhas maiores reticências face a Robinson Crusoé começam pela ausência de pano psicológico, e não falo de desvelações profundas sobre o sentir do personagem, mas tão só a simples descrição do isolamento humano. Isso é algo que não existe em Robinson Crusoé, nunca ele se sente só, tem sempre algo para fazer, construir, conquistar. Apesar de ter consigo um cão e gatos, nunca estes são descritos, nem sequer servem para falar do estado de alma de Robinson. Aliás, tudo isto é por demais perturbador quando ao naufragar na ilha, o personagem não tem qualquer curiosidade em ir ver se está realmente numa ilha ou península, em ver se existem outras pessoas ali perto, passando meses sem nunca dar a volta a ilha, limitando-se a um pequeno cantinho da mesma. São 28 anos vividos na solidão que poderiam bem ter sido vividos numa qualquer encosta de montanha, a dois ou três quilómetros da civilização. Intui-se muito rapidamente que o autor está a escrever com base em relatos, e não em qualquer experiência verdadeiramente vivida e sentida.

Do mesmo modo as descrições sobre caça e comida roçam o ridículo, com Robinson a referir a necessidade de investir todos os dias 3 horas em caça, trazendo animais de grande porte, como Lamas (apesar de ter situado a ilha no Atlântico), passando a ideia que não vive ali apenas um ser humano mas uma família numerosa. É verdade que ninguém naquela altura pensava nos animais que se caçavam ou nas árvores que se cortavam, como se os recursos do planeta fossem infinitos, mas é angustiante ler os hábitos que o escritor incute no personagem, como se o ser humano fosse não apenas insaciável, mas superior a qualquer outro animal no planeta.

Todo o livro está pejado de um discurso profundamente colonialista, egocentrado, com o europeu hábil e astuto capaz de transformar o ecossistema em que vive graças à sua enorme inteligência, por oposição aos nativos que não passam de sub-humanos, canibais, sem conhecimento de Deus e por isso incapazes de ir além pela fraqueza de espírito. A tudo isto serve muito bem a presença dos portugueses que estão quase todo o livro presentes no desenvolvimento de Crusoé, espelhando historicamente aquilo que fomos durante tempo demais.

Dito tudo isto, é um pequeno livro que interessará ao público mais jovem pelo seu lado aventureiro, desde logo pela ideia romântica de se viver isolado do mundo numa ilha, mas também pelo ficcionar de vários episódios rocambolescos — com piratas, canibais, e motins. Nesse sentido o modo como o personagem de Crusoé recorre aos conhecimentos que detém para edificar as suas casas e cultivar cereais acaba sendo o que de melhor se retira. Embora, seja aconselhável uma conversa com os leitores, no sentido de providenciar um olhar crítico sobre muito do que ali se vai desenrolando.