janeiro 06, 2017

Por detrás da HiperNormalização (media e storytelling)

Chegou-me por diferentes fontes o documentário “HyperNormalisation” (2016), de Adam Curtis, produzido pela BBC. Fontes que por respeitar me obrigaram a encontrar as 2h46m para dedicar ao visionamento do mesmo. No fim, não posso dizer que tenha sido tempo perdido, mas também não posso deixar de dizer que me senti defraudado e até vítima de uma enorme tentativa de manipulação, o que não deixa de ser irónico, ainda que interessante, tendo em conta que a tese central do documentário assenta na demonstração da manipulação global das massas pela política internacional.




Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um  modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.

Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.

Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.

Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.

Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.

Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.

O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.

Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.


Trailer de "HyperNormalisation" (2016) de Adam Curtis

Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via  para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.

Filme completo, disponível no Youtube temporariamente, até ser retirado. Normalmente apenas visionável no BBC iPlayer. 

janeiro 03, 2017

“Os Dias do Abandono” de Elena Ferrante

Quem quer que esteja a par do que vai sendo editado, sabe que o fenómeno Ferrante atingiu Portugal em cheio nos últimos dois anos com a publicação da sua obra pela Relógio d’Água, apesar de “Os Dias do Abandono” ter sido editado entre nós há mais de uma década pela D. Quixote. Do meu lado, conhecendo apenas o nome, não tendo lido críticas além das de amigas do Goodreads, nem nada da autora, fui apanhado completamente de surpresa quando por acaso resolvi ler a primeira página de “Os Dias do Abandono”, no ebook da edição brasileira, editado pela Biblioteca Azul. Estaquei no final da página, queria ler o resto sem parar, necessitava desesperadamente de ler o resto.


Mas não queria ler em português do brasil, tentei em inglês mas também não funcionou, e o italiano estava ainda mais distante. A escrita era de tal forma direta, humano para humano, que não queria ler o texto numa qualquer forma que me impedisse de chegar o mais perto possível da origem. A única forma de o fazer era na língua materna e numa abordagem escrita próxima no tempo e na geografia, tornando mais neutro o veículo textual, para que a sintonia pudesse conferir o esquecimento do processo de leitura. Esgotada a edição da D. Quixote, sobrou comprar a edição da novela pela RA, que me custou quando descobri que vinha enxertada numa coletânea, “Crónicas do Mal de Amor”.

Iniciada a leitura, nem queria acreditar no que estava a ler, sentia como jorros, literalmente, jorros de experiências projetados na escrita que agora se vertiam das páginas. Acontecimentos cuspidos no papel, crus, nus e reais. Realidade fria mas dada a quente. E só pensava, que forma de escrever é esta? De onde veio isto?! Era pura telepatia, como se pudesse aceder ao sentir da autora sem intermediário. Não era o que era dito, mas era o que se dizia fundido com o como se dizia, que me fez começar a investigar sobre o estilo por detrás daquela escrita. Era, talvez também, o facto de estar a ver, e a sentir, o mundo através do interior da mente feminina que me impactava tão fortemente, criando ainda mais a necessidade de compreender em maior profundidade o que tudo aquilo representava.

Ainda sem ter lido resenhas profissionais, tinha evitado ler as palavras do respeitadíssimo James Wood, que vinham como prefácio à edição da RA, e resolvi pesquisar sobre “escrita confessional”. Era o que me parecia estar ali em causa, alguém que nos revela, na primeira pessoa, o seu sentir a propósito de uma tragédia da vida. Tinha lido várias obras dentro do tipo, mas não tinha noção do seu alcance criativo, nem da existência de sub-géneros. Da minha pesquisa, encontrei três grandes sub-géneros: memórias e diários, iniciado por Marco Aurélio, tornado popular por Anne Frank no século XX, podendo definir-se, latamente, como conjunto de factos reais escritos sem um objeto definido, nem intenção de ser tornado publico; confessionalismo, iniciado por Santo Agostinho em plena idade média, tornado ex-libris literário em Sylvia Plath no século XX, definindo-se num conjunto de factos reais trabalhados pela imaginação, escritos com o objetivo de expiação, daí que tenda a centrar-se em aspetos humanos mais negativos; não-ficção criativa, um estilo muito mais recente, que se desfia no limite da linha entre o documental e o ficcional, tendo sido de certo modo iniciado por Henry David Thoreau, com seguidores como Jack Kerouac ou Jon Krakauer, e ainda experimentado noutras formas por Truman Capote, que se pode definir por conjuntos de factos reais trabalhados pela experiência, escritos com objetivos sociais ou políticos.

Como se pode ver, todos estes modos se configuram a partir de algum tipo de conjunto de factos reais, podendo nuns casos resvalar mais para o não-ficcional, enquanto noutros para o ficcional, muito em função do que cada autor pretende. Diga-se ainda, que saindo da literatura e entrando nos textos de revistas e jornais, podemos encontrar o estilo de escrita confessional desmultiplicado numa imensidade de formas e formatos. Desde quase o início do século XX que se edita nos EUA uma revista chamada “True Story” com o lema, “A Verdade é mais Estranha do que a Ficção”. Esta mesma revista daria origem ainda a mais duas novas revistas: “True Conventions” e a “Creative Nonfiction”. Mas não se fica por aqui, no início deste novo século, a escrita confessional ganhou um palco ainda mais poderoso e desmultiplicador, com a facilidade de publicação online, desde os blogs ao facebook. Só em Portugal, existem centenas de pessoas que se dedicam a este tipo de escrita, das quais aproveito para deixar dois casos que espelham a qualidade do meio: Ana Cássia Rebelo e Mil Ghent.

Por outro lado, e mais ainda por termos uma Elena Ferrante italiana, ou localizada em Itália, torna-se inevitável falar do movimento artístico fílmico aí surgido nas décadas de 1940/50, o neorealismo italiano, que procurava apresentar na tela a vida tal como ela era, sem qualquer embelezamento. Pensando em "Os Dias do Abandono", vêm-me a memória a mãe em "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rossellini, ou o pai em "Ladrões de Bicicleta" (1948) de Vittorio De Sica. Embora em termos de representação de estados emocionais, considere que o neorealismo estava ainda muito apegado ao classicismo cinematográfico. Em termos cinematográficos, considero que existe todo um movimento, tendencialmente europeu, que reflete uma realidade na qual Elena Ferrante bem se enquadra, que qualifiquei recentemente como Realismo Áspero, e que envolve filmes como “The Seventh Continent” (1989), “The Celebration” 1998, “Tuesday, After Christmas” (2010).

Voltando à escrita em tom confessional, apesar de todos os géneros aqui listados, parece existir uma certa tendência para seguir a pauta ditada por Santo Agostinho, em termos de propósito. Ou seja, servir uma certa catarse interior, revelando um sentir normalmente não verbalizado, desvelando aquilo que faz mover quem escreve, acabando por se centrar invariavelmente nos pensamentos mais negros, em tragédias humanas das mais variada espécies. Desta forma, é também um género em que quem escreve tende a optar pelo anonimato, o que faz pleno sentido. Quem não sendo capaz de revelar aos mais próximos os seus males interiores , optando pela escrita como prática quase terapêutica, o faria de modo público?!

Dito isto, assumo a minha precipitação na publicação de um texto em que defendia a necessidade de conhecer a identidade de Elena Ferrante. Sei agora o que isso implica, ou pode implicar, e aceito completamente a vontade da autora, contudo, apenas na expectativa de que após a sua morte nos possa ser revelada. Isto porque só na posse da identidade e conhecimento da sua vida, poderemos chegar a uma cabal definição do género literário de Ferrante. Não estão aqui em causa as "desculpas" dadas pela autora — da fama, celebridade ou voyeurismo —, discordando totalmente da sua afirmação de que a obra existe autonomamente. Não podemos chegar ao âmago completo do entendimento do texto porque desde logo é-nos pedida a crença em algo, em algo que aconteceu. Podemos dizer que apreciamos a obra pela obra, mas ela não existe sem o ser-humano que a criou, parte da chave daquele texto está nessa pessoa, é essa a condição fundamental da escrita confessional. Aliás, a própria Ferrante afirma-o em entrevista, contradizendo-se:
"Eu prefiro chamar [a escrita] de apropriação ilícita em vez de indiscrição. Escrever para mim é como um arrastão que carrega tudo consigo: expressões e figuras de discurso, posturas, sentimentos, pensamentos, problemas. Em suma, a vida de outros." Elena Ferrante em entrevista ao The Guardian
Mas definindo o género de escrita confessional de Ferrante, fica tudo dito? A opção por este modo é suficiente para tornar um texto íntimo, poderosamente emocional, como acontece com Ferrante? Não, simplesmente não. O género é apenas uma estrutura que em termos artísticos tende a ser sempre algo imensamente lato. Ferrante não é apenas escrita confessional, é algo mais, algo diferente, e que não é fácil de definir. Se evocarmos Sylvia Plath, que deambulou por este género como acima dissemos, veremos que se aproximam nas intenções (especulando no caso de Ferrante), mas ainda assim existe uma gigantesca distância entre ambas em termos discursivos. Aliás, não querendo discutir Plath, mas agora que comparo, penso que se tornou mais ícone pelo tempo e forma como morreu, o que de certo modo acaba dando ainda mais força à ideia que tenho tentado passar, de que as obras não existem sem os seus autores. Aquilo que os criadores fazem fora das suas obras contamina totalmente aquilo em que as obras se transformam.

Em termos técnicos, o que Ferrante faz é muito interessante porque não se escusa a usar a forma narrativa clássica para comunicar o sentir mais íntimo. Usa essa forma para construir e organizar as suas ideias, encadeando todos os eventos de forma causal, exteriorizando muitos dos pensamentos em ações físicas, num sucedâneo perfeitamente cronológico, tornando assim o acesso ao que nos diz muito fácil. Não existe qualquer tentação por trabalhar em fluxo de consciência, com fragmentação de memórias ou polifonias, que pudessem aproximar o leitor do modo como funciona o pensamento humano, naquela ânsia por chegar mais próximo do experienciar e sentir. Ainda mais, tendo em conta que nos quer dar a sentir o caos emocional que tem sido melhor trabalhado em abordagens mais experimentalistas. Contudo, Ferrante não sucumbe, mantém-se linear, muito direta, muito correta, falando connosco, dialogando sempre, sem esquecer que existe um leitor do outro lado. E se o faz, é porque de algum modo consegue fazer-nos chegar essa experiência do sentir, mesmo colocando-se do outro lado da folha de papel, assumindo-se como contadora, mas também como ser-humano igual a nós, mantendo a compostura para continuar a relatar, como se conversando pudesse simultaneamente gritar.

Julgo, em parte, que ela consegue esta proeza pelo modo como fusiona discurso e história. Ou seja, o discurso é uniforme e sóbrio, mas o que nos vai contando roça a insanidade. Da depravação à alucinação, tudo entra, e tudo constrói a nossa impressão do que lemos. O discurso é contido na forma mas completamente incontinente na revelação dos pensamentos mais negros e recônditos da personagem. Mais uma vez comparando, se o Molilóquio de Joyce impressiona pela forma, traduzindo-se tão próximo do modo como pensamos, já naquilo que nos vai revelando é bem mais refreado, algo fantasioso até, ainda que para 1922 já se tenha considerado pornográfico. Ferrante apesar de não inovar na forma, não deixa de ser virtuosa, o modo como movimenta os seus personagens no espaço e tempo, cria ritmos e dinâmicas muito impressivas que espelham o interior mental destes. Toda a novela tem um ritmo muito definido, quase matemático, de intensificação pela escolha dos termos, pontuação e frases que nos conduzem a um clímax, para depois, tudo se aplicar no desencher dessa intensidade, que conduz ao clarear e ganho de consciência revogatório. É classicismo puro, mas é-o de uma forma áspera, algo que nos habituámos a guardar para a vida real, que é no fundo o que Ferrante procura, como fica claro nestas palavras quase no final da novela:
“Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.” (p.286)
Por fim, e agora já depois de ter lido Wood, não tendo sentido grande sintonia com a sua abordagem à obra, concordo plenamente com a sua qualificação de autenticidade. É o que sobressai, um sentimento de verdade discursiva, mesmo não fazendo a mínima ideia se aquilo que se relata, é ou não verdade.


Edição: “Os Dias do Abandono” (2002), in Crónicas do Mal de Amor, Elena Ferrante, Relógio D’Água, Lisboa: 2014 (pp.132-288)

janeiro 01, 2017

Textos de 2016

Estive a passar os olhos pela listagem de textos publicados ao longo do ano, e nas visualizações que cada um teve. De um conjunto de cerca de vinte mais vistos, destaco dez que me parecem ser dos mais interessantes. Outros houve que mais me disseram, mas não tendo sido tão preferidos, opto por não os nomear.


Do conjunto, de textos recolhidos, extraí as palavras-chave mais relevantes: banda desenhada, narrativa, design de jogos, animação e multimédia.

1 - Fazer um doutoramento? (Banda Desenhada, Academia)
2 - 10 Estruturas Narrativas (Narrativa)
3 - Design de "Downwell" (Design de jogos)
4 - A glória de Unity, e sem programação (Software, Multimédia)
5 - “Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo (Narrativa, Multimédia)
6 - “Inside”, uma obra incontornável (Videojogos)
7 - ”Hipopotamy" (M/18) (Animação)
8 - “The Beginning of Infinity" (2011) (Livro, Ciência)
9 - "Life is Strange" (2015) (Videojogos)
10 - Criar histórias originais (Narrativa)

dezembro 31, 2016

“O Pintassilgo” (2013)

Adorei “A História Secreta” (1992), gostei de “O Pintassilgo” (2013), se não tivesse lido “A História Secreta”, teria talvez adorado “O Pintassilgo”. Aconteceu-me exatamente o mesmo com Murakami, e os seus “1Q84” (2010) e “Kafka à Beira-mar” (2002). Bons escritores, mas que parecem ter apenas um mundo a oferecer. Talvez o problema nem seja deles, talvez eu espere demasiado, talvez espere algo que a literatura, enquanto arte, não pode dar. Poderá um escritor dar-nos múltiplos mundos distintos? Foi exatamente sobre isto, e por causa deste livro que acabei a escrever, há dias, “Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais”.

Capa da versão americana, e o quadro "The Goldfinch" (1654) de Carel Fabritius que serve de móbil à trama do livro.

Donna Tartt tem um estilo próprio, tem uma voz própria, escreve de forma fluída e lúcida. Fala das emoções sentidas num mundo contemporâneo carregado de deveres morais para com a sociedade. A sua primeira pessoa é instigante, mantém-nos agarrados ao pensar e sentir dos seus personagens, como se estivéssemos todo o tempo dentro das suas cabeças. Mas no final existe um certo vazio, por mais que tudo pareça rebuscar erudição. De certa forma, acontece-me exatamente o mesmo com as obras de Murakami.

Veja-se o mundo de Tartt. Em termos temáticos, temos um jovem que se procura, perdido no mundo, sozinho, tentando tornar-se adulto. Sim, também temos a arte, o quadro que está todo o tempo lá, como está a mãe, são ambos aquilo que mantém o jovem ligado ao mundo. A arte surge, ou parece surgir, como o elo que nos pode manter vivos, a beleza que torna o real suportável, e impede de marchar desta vida. Por outro lado, temos droga a rodos, é ela que acaba por verdadeiramente, em "O Pintassilgo" nos manter à tona. Em certos momentos questionei-me mesmo se Tartt não percebia mais de farmácia do que de arte. Mas é claramente o mundo particular de Tartt, em que cabe à droga funcionar como motor das pequenas tensões morais, já que simplesmente não existe sexo, como se os seus personagens fossem todos abstinentes. Como Tartt precisa do Yin e do Yang no desenho dos seus personagens, ao criar personagens puros na carne, impurifica-os pela droga. Muito anos passaram desde 1990, falta evolução no traço da escritora, algo que se agrava mais quando em muitos momentos a "voz" do personagem principal ecoa completamente o personagem principal de "A História Secreta".

Julgo que a espécie de vazio que sinto com “O Pintassilgo” advém do facto de já não me encontrar no público alvo. É um livro sobre um jovem que se torna adulto, mas é um adulto contemporâneo, como tal, o seu mundo aos 25 anos, é o típico mundo dos 17. E é para esses que Tartt escreve, mesmo pensando que não o faz. O uso das técnicas de thriller envolvem muito bem o romance psicológico, sustentam e mantêm o leitor agarrado, mas tudo o que vai sendo desvelado sabe a pouco, porque na verdade não existe muito para dar dentro da cabeça de uma criança que sofre um grande trauma e passa o resto dos seus dias a tentar sobreviver emocionalmente. É uma viagem existencial, com todos os dramas da incompreensão, da perda, do amor não correspondido, do só contra todos, que por vezes roça o puro niilismo.

Para elevar o discurso, Tartt traz para o centro da discussão três autores e suas obras — Rembrandt, Dostoiévski e Proust — e consegue desta forma levar-nos a submergir, a aceitar muito do que tem para dizer sobre o Belo, a Arte e a Vida. Mas não chega. Não chega construir uma tese e colá-la nas últimas 30 páginas do livro, quando todo o livro parece tão pouco preocupado com essa tese. Acredito que teria sido inebriante, tivesse eu outra idade, aquelas últimas páginas em que tudo parece cozer-se, tudo parece ter sentido, tudo tem um desígnio, mesmo que tudo não o tenha, nem possa ter. Acaba sendo uma fuga existencialista, capaz de criar momentos de leitura apaixonantes, em que as páginas se vão virando sozinhas, criando horas bem preenchidas, mas que no final se arruma na prateleira, para esquecer.

Esta leitura serviu-me ainda para colocar em perspetiva o prémio Pulitzer. Cada vez me convenço mais que se deveria ter ficado pela área de eleição do seu fundador, o jornalismo, onde tem servido bastante melhor a sua função.

dezembro 30, 2016

Cria o Teu Jogo de Computador!

Os dias mais calmos da última semana do ano criaram algum espaço para dedicar tempo à família. Depois de muitas das prendas montadas, ou encetadas, chegou a vez de uma das prendas do mais novo (8 anos), a quem calhou o livro "Cria o Teu Jogo de Computador!" (2016) do Manuel Menezes Sequeira e Nélio Codices. Posso dizer que foram várias horas, ao longo de 3 ou 4 dias, passadas com muito entusiasmo e diversão!



O livro é bastante didático, recorrendo ao formato de tutorial ilustrado que guia o criador ao longo de toda a construção de um jogo de Squash, ao que se adicionaram pequenos textos que explicam alguns conceitos em maior detalhe, capazes de orientar os mais interessados no aprofundamento das lógicas de programação. Segue-se assim a abordagem tipo do "learn by doing", em que a criança vai aprendendo por meio do que vai fazendo e experienciando. Cá em casa funcionou muito bem, a meio do livro e com apenas 8 anos, já se notava uma antecipação às instruções sugeridas pelo livro.

A linguagem do livro aponta para uma faixa dos 11 aos 14 anos, mas pode servir miúdos mais pequenos, sendo aconselhável nesse caso a presença de um adulto. Diria que está tudo muito bem planeado e sem problemas de maior. Talvez tivesse apenas separado a parte final da construção de novos blocos (programação procedimental), rotulando-a de Programação Avançada, para não criar nas crianças mais novas alguma frustração por não conseguirem atingir tudo o que era pedido.

Jogo "Squash" criado por Pedro, 8 anos, em Scratch, a partir do livro "Cria o Teu Jogo de Computador!"

Por fim, teria sido interessante a disponibilização de diferentes recursos para o desenvolvimento do jogo, mais imagens, personagens, objetos e sons. Desde logo porque os recursos disponibilizados não são os melhores, versados em imagem real, algo limitativos da estimulação criativa. Por outro lado, mais recursos permitiriam estender o trabalho de desenvolvimento do jogo, por meio de tarefas de seleção e escolha que acabariam por estimular a própria criação de novos recursos.

dezembro 29, 2016

Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais

Durante décadas consumi milhares e milhares de filmes, primeiro tentando visualizar todo o cânone da arte, depois tentando acompanhar tudo o que se ia produzindo em cada ano. Há 3 anos parei, estava cansado. Mas a obsessão consumista não tinha parado, simplesmente mudou de meio, passei para os livros. Desde então tornei-me obsessivo com a leitura do cânone da literatura. Nos últimos meses tenho-me questionado sobre o porquê deste consumo, o seu fundamento e o verdadeiro interesse.


A arte e o entretenimento — cinema, literatura, banda desenhada, videojogos, teatro, ballet, ópera, música, dança, séries tv — tornaram-se centrais na experiência das nossas vidas no início do século XXI. Muito do que somos, do que edificamos em nós, enquanto seres humanos, é-nos inculcado por estas duas formas de produção de cultura. Continuamos a ser muito daquilo que as pessoas que nos rodeiam são, a cultura vai muito para além dos artefactos que produzimos, mas as transformações produzidas na sociedade têm agravado a dependência destes objetos. Ou seja, vivemos cada vez mais de forma individualizada, a partilha direta tem-se reduzido, graças à aceleração das vidas e também à consciência dos perigos. Por outro lado, a cultura na forma de registos perenes e móveis — informação digitalizada — aumentou drasticamente, o que também explica o declínio das formas de arte e entretenimento que não se conseguiram adaptar a tal, como o teatro ou o ballet.

Tendo em conta esta perspectiva do mundo contemporâneo, e não entrando na discussão das suas desvantagens ou benefícios, interessa-me discutir um dos seus grandes problemas: o consumo. Tendo em conta a rede de informação que criámos, a internet, passámos a poder não só aceder a praticamente tudo aquilo que é produzido nestas formas de arte e entretenimento registáveis, como passámos a confrontar-nos com todo o tipo de grupos de pessoas que as consomem. Estas novas condições criaram assim um fundo inesgotável de informação, de conteúdos de arte e entretenimento, e ainda conhecimento sobre as mesmas, que nos compelem a consumir.

Quem nunca passeou os olhos pelas listas dos diferentes cânones? — “os livros que deve ler antes de morrer”, “os filmes que todos os realizadores recomendam”, “os videojogos que marcaram a arte”, “os álbuns que mudaram o mundo”, “as séries que mudaram a televisão”, etc. etc. As próprias listas tornaram-se objetos de interesse, com os media a especializarem-se na criação das mesmas, e sítios web a trabalharem para a sua agregação. Mas não é sobre as listas que me quero deter, que considero relevantes, e que não são novas, basta olhar ao belíssimo trabalho de Umberto Eco, “The Infinity of Lists".

Munidos de listas e meios para aceder às obras, resta o seu consumo, para o que precisamos de tempo. Como o tempo, ao contrário das listas, não é infinito, vemo-nos obrigados a fazer escolhas, e são estas que vão gerar enormes doses de ansiedade. O que deixar de fora? Será que não estamos a perder? ‘Quem foi que tinha dito que esta era crucial’ ler, ouvir, ver, jogar? O conflito interno emerge, procuramos ainda mais informação, resenhas, livros, sítios, e ouvimos pessoas, especialistas e amigos, pessoas que respeitamos, e vamos tomando decisões. Alguns de nós tornam-se obsessivos.

Porquê e para quê?
Separando a arte do entretenimento, podemos reduzir drasticamente o que consumimos. A arte representa a novidade, o que ainda não conhecemos e temos de nos esforçar para compreender. O entretenimento limita-se a pegar no que já existe, redecorar e voltar a dar, para manter a nossa atenção ocupada sem esforço, para nos entreter. Assim, se deixarmos de lado o entretenimento, podemos questionar-nos sobre as razões de querermos, desejarmos, ou necessitarmos de consumir mais e mais arte.

Para responder a tal, precisamos de, mesmo dentro da arte, reduzir mais o espectro. Não olhar a arte como tudo o que seja distintivo, mas antes a delimitar àquilo que é capaz de produzir novos significados, capaz de alterar as nossas percepções do mundo. É isto que motiva a arte, é isto que nos motiva a querer mais, e é também isto que gera ansiedade, por sentir medo de não estarmos a aceder a todos esses novos mundos, novas experiências.

Mas é aqui que devemos parar e refletir sobre o para quê? No século XXI já percebemos que mais importante do que possuir coisas é viver experiências, são estas as responsáveis por nos edificar enquanto pessoas. Mas pelo que fui dizendo acima, as experiências transformaram-se em objetos de consumo. Até que ponto estamos verdadeiramente a experienciar, não estaremos antes a consumir, a deixar-nos levar pelo simples desejo de possuir? Já não o possuir materialmente, mas agora o possuir de informação.

O erro
É neste sentido de posse que surge o erro. Diga-se, uma posse fortemente reconhecida pela sociedade, veja-se como reage a programas como “Quem quer ser Milionário!”. Este erro define-se no modo como se conceptualiza a equivalência entre a detenção de informação e o conhecimento. Tendo em conta que o conhecimento reside na nossa mente, existe a tendência para tentar aplicar à sua compreensão, metáforas materiais. Como as coisas materiais se podem arrecadar numa garagem, a informação digital pode ser guardada em registos, torna-se natural pensar que o o conhecimento pode também ser simplesmente arrumado na nossa memória.

Diferença entre deter factos e deter conhecimento.

O problema é que o conhecimento não é informação, não é mera detenção de factos. De nada adianta deter na memória todas as datas dos reinados portugueses se nada fizermos com elas. Conhecer é mais do que deter informação, é a capacidade de criar com essa informação. Requer detenção mas também interligação de factos, em que o todo se torna distinto das partes, criando novos mundos mentais, produzindo aquilo a que chamamos imaginação, potenciador de novas ideias, novas ações, novas decisões.

A questão que se coloca então é, como podemos fortalecer o nosso conhecimento a partir daquilo que experienciamos, ou consumimos, tendo em conta que a relevância para nós assenta mais na criação de interligações entre factos, do que na detenção dos mesmos?


Como?
Poderíamos cair na tentação de acabar com o consumo exterior e dedicarmo-nos apenas a trabalhar as ligações entre os factos que já detemos. Contudo isso acabaria por nos levar a um beco conceptual. Mesmo para quem procure a especialização, é possível dentro da mesma encontrar sempre novas perspectivas que aprofundem essa especialização. Ou seja, o que nos interessa então é perceber como se produzem essas novas perspectivas, que mais não são do que diferentes formas de interligar os factos.

Podemos dizer que a única forma de aceder a essas formas diferentes de interligação é aceder a diferentes mundos que interligam factos. Ora esses mundos são produzidos por pessoas, seres-humanos, cada um de nós. Daí que seja vital para a nossa sobrevivência a interação humana, algo que o nosso sistema biológico recompensa tão intensamente. Montaigne descobriu empiricamente que as obras nunca poderiam substituir as pessoas, a experiência, mas na verdade muitos de nós não estão ao alcance da interação com pessoas de diversas profissões, culturas e conhecimentos. Daí que as obras sejam aquilo que nos resta, e continuem a ser um veículo fundamental na ampliação do conhecimento.

Mas se aquilo que buscamos são as interligações, e não os factos, e se estas existem na forma como cada ser humano as cria, então em vez de nos centrarmos nas obras, deveríamos centrar-nos nos seus criadores. Ou seja, interessa compreender quem são, como conduziram a interligação dos factos. Ficarmos apenas pelas interligações presentes nas obras, poderá levar-nos de volta à mera memorização de factos. O que queremos saber é como foram produzidas as interligações, mas para isso precisamos de compreender as particularidades que constituem o seu criador, como são potenciados os mundos que nos apresenta.

No fundo estamos a dizer que cada autor possui uma forma particular de configurar o mundo e dar-nos a sorver. Seja em livro, filme, etc. É da sua experiência do mundo que advém a obra, da sua experiência particular que lhe permitiu construir uma configuração pessoal. De certa forma isto explica porque o consumo de múltiplas obras do mesmo autor tende a não nos dar muito mais. Não é uma questão de incapacidade do autor, é antes porque ao procurarmos diferentes interligações, é difícil encontrá-las numa mesma pessoa. Isto acaba por estar em consonância com o que dissemos acima e que separa a arte do entretenimento. As múltiplas obras de um artista, são no fundo repetições, são variações dos modos como configura e interliga o mundo percepcionado (podemos aqui exceptuar as obras criadas entre períodos de grande diferença de idade/experiência).

A memória
Dito tudo isto, resta ainda compreender como funciona o nosso sistema interno de registo, a nossa memória. Porque se refleti sobre tudo isto não foi apenas para concluir que me interessa apenas ler um livro de cada criador. Existe algo mais por detrás de tudo isto, algo que diz respeito a nós recetores, e que tendemos a esquecer, literalmente.

Quando paramos para analisar o que consumimos — livros, filmes, videojogos, etc. — percebemos muito rapidamente que aquilo que experienciámos e que muito nos disse no dia em que terminámos, passado um mês já quase desapareceu. Quando ao fim de ano queremos recordar o que disse um personagem, o que fez, ou o que o impediu de fazer algo, percebemos que essa informação já não existe na nossa cabeça. Detemos alguns factos, mas na generalidade as interligações entre esses desapareceram.

Quanto recordamos de um livro ao longo do tempo (de Timothy Kenny)

Há uns anos dei-me conta disto com os filmes que via. Por isso passei a escrever quase sempre sobre os filmes aqui no blog. Era uma forma de fortalecer a memória. Contudo, com a experiência dos anos, fui percebendo que mesmo isso não fazia mais do que atrasar o esquecimento. Por outrolado, quando confrontava memórias de filmes vistos no ano anterior com filmes vistos há 20 anos, notava estranhamente que os que tinha visto há 20 anos se mantinham mais vivos dentro de mim!

Poderia ser uma questão de qualidade fisiológica da memória, jovem versus envelhecido. Isso é muito propalado no discurso popular, ‘estou a ficar velho, esqueço-me de tudo’. Contudo, quando comparei efetivamente o que acontecia, reparei numa diferença central, o tempo de exposição. Quantas vezes terei visto obras maiores e menores, como “Apocalypse Now”, “Dead Zone”, “Alien”, “Amadeus”, “They Live”, “Rambo”, “2010”, “Bleu”, “The Doors”, “Wild at Heart”, não menos de 10 vezes, alguns mesmo mais de 20. Por outro lado, filmes que considerei obras-primas na última década, como “Blue Is the Warmest Color”, “Her”, “Gravity”, “The Turin Horse”, “Enter the Void”, “Tuesday After Christmas”, “Sangue do meu Sangue”, “About Elly”, “The Return”, não vi nenhum mais de uma vez. Ou seja, a exposição repetida tem ser relevante no perdurar das memórias.

Na verdade, as memórias não são mais do que interligações neuronais, e por isso, se essas não forem reforçadas tendem a desfazer-se (perceber melhor como funcionam as memórias jogando "Neurotic Neurons" ou lendo um pequeno texto do Guardian). Ou seja, se tiver lido um livro ou visto um filme hoje, e trabalhar sobre o seu conteúdo, aprofundar o que vi, estruturar ideias sobre o mesmo (exemplo de técnicas), de modo continuado no tempo, provavelmente ao fim de um ano ainda terei boas memórias do mesmo, porque fiz com que as ligações permanecessem ativas. Mas isto funciona apenas no modo continuado, porque como dizia acima, fazer uma análise no momento e nunca mais voltar a ela, apenas atrasa o esquecimento.

Interligações neuronais

Esta ideia, de continuamente trabalhar sobre algo que se aprendeu, é uma técnica com várias décadas, nos campos da memorização e aprendizagem, denominada de "prática de recuperação" (retrieval practice). Ou seja, não basta saber que sei (que li, vi, ou joguei) preciso de em cada momento, conduzir-me à extração da informação sobre o que sei. A abordagem trabalha a outra extremidade da memória, ou seja, a repetição de leitura ou visualização de obras repõe a memória pela repetição na entrada de informação, enquanto que a repetição de acesso à memória, repõe pela saída, trabalhando ambas no aumento da solidificação das interligações. Conto em breve trazer aqui mais algumas ideias sobre a memória, depois de acabar de ler "Make it Stick" de Henry L. Roediger.

Conclusão
A principal conclusão que retiro da minha experiência com os cânones culturais, do que aprendo, memorizo e esqueço, é que mais do que aceder ao máximo de obras, de modo desenfreado e obsessivo, interessa encontrar um conjunto de obras que falem connosco. Que não podendo nós contactar com os seus criadores, possamos usar as suas obras para com eles conferenciar. Tendo feito esse trabalho, interessa voltar a essas obras, voltar, voltar, e voltar. Trabalhar sobre as mesmas, saber mais, aprofundar sobre quem as fez, sobre o que verdadeiramente interligam, e como interligam. Compreender para aprender, aprender para imaginar, repetir para manter viva a imaginação.

Fica assim traçado o meu objetivo para o ano 2017: reler, rever, e rejogar.

dezembro 26, 2016

Videojogos de 2016

Deixo a tradicional lista anual dos meus videojogos preferidos do ano. Tinha dito que este ano não tinha trazido grandes surpresas, contudo disse-o antes de jogar os dois jogos que apresento no topo da lista, o que muda bastante a minha impressão de 2016 enquanto ano relevante para o medium. Não sendo um ano de grande inovação, diria pouco fraturante, acaba sendo um muito bom ano, com obras muito interessantes, a que voltaremos ainda muitas vezes.


1 - "The Last Guardian" (Análise)
A demonstração cabal da relevância do medium enquanto forma expressiva.

2 - "Inside" (Análise)
A ficção científica explorada através do melhor dos videojogos.

3 - "Oxenfree" (Análise)
Diálogos e escolhas no aprofundar dos perfis dos personagens.

4 - "Firewatch" (Análise)
A excelência de um guião.

5 - "That Dragon Cancer" (Análise)
A expressão interior de um sentir doloroso.

6 - "1979 Revolution" (Análise)
Videojogos como manifesto expressivo.

7 - "Uncharted 4" (Análise)
Um fim brilhante, para uma das sagas chave do medium.

8 - "The Witness" (Análise)
O jogo filosófico do ano, e dos mais arrojados de sempre nesse campo.

9 - "Superhot"
A inovação mecânica de 2016, que impressiona ainda mais por ter sido criada sobre um género tão gasto.

10 - "Between me and the Night"
O videojogo português do ano. Com alguns problemas ao nível de interface, mas uma ilustração e tema bastante interessantes.


Além destes dez, 2016 ficou ainda marcado por alguns pequenos videojogos que continuarão a ser referenciados no futuro, "Virginia" (Análise), "Event[0]", "Californium" e ainda "Bounce". Já a sensação "Abzu", não me parece que tenha trazido nada de novo face a "Endless Ocean" de 2007. Por outro lado "Dishonored 2" à semelhança de "Far Cry Primal" (Análise) ou "Street Fighter V" foram mais do mesmo, com incrementos interessantes, mas incapazes de surpreender.

Em 2016 não se jogaram apenas videojogos do ano, como sempre existem jogos dos anos anterior que se revisitam, nomeadamente para terminar, alguns em versão remake, outros simplesmente recuperados das prateleiras. Um dos remakes, muito importante para mim já que nunca o tinha conseguido jogar, foi "The Elder Scrolls V: Skyrim" (2011). Um jogo que passados quatro anos, continua a impressionar num campo de essência dos videojogos, a agência.

Relativamente ao ano imediatamente anterior, terminei e adorei, "Life is Strange" (2015), "Fallout 4" (2015) e "Lifeline" (2015). Outros de 2015 também interessantes foram, "The Writer Will Do Something" (2015), "The Order: 1886" (2015), "Assassins Creed Syndicate" (2015), e “Jeu d'influences” (2015). Recuando ainda a 2014, aproveitei para jogar "The Last of Us: Left Behind" (2014), "Dragon Age: Inquisition" (2014), "Far Cry 4" (2014). Já "Until Dawn" (2015) foi a grande desilusão que joguei em 2016. 

dezembro 25, 2016

"Ulisses", clímax do modernismo

Da primeira vez, há cerca de 20 anos, cheguei à página 50, da segunda, no ano passado, à 322, agora fui até ao fim (748). Serve isto apenas para traçar o caminho por mim seguido, mas de algum modo pode servir de indicador da potencial dificuldade que a obra representa a quem nela desejar aventurar-se.

Primeira edição, editada em França em 1922

“Ulisses” (1922) não requer grande contextualização, qualquer pessoa que goste de literatura já ouviu falar, e sabe o quão elevada é a sua estima no meio. Surgiu num período de grande ebulição artística, o modernismo, responsável pela criação de uma brecha no universo clássico da arte que abriria todo um novo mundo de conceitos, abordagens e perspectivas sobre a arte que a libertariam das suas amarras, permitindo aos artistas dar total liberdade à sua audácia. Surgindo deste caldo, “Ulisses” não se limitaria a subverter e inovar, iria transforma-se na obra definidora de todo o modernismo literário.

Mas antes de falar de “Ulisses” quero falar de Joyce. Considero que aquilo que foi feito nesta obra não está ao alcance de um simples desejo. São necessárias algumas qualidades cognitivas, que requerem alguma base biológica, mas acima de tudo enorme trabalho, dedicação e diria mesmo, obsessão:
“A memória de Joyce para palavras das suas próprias composições e para aquelas de todos os escritores que ele admirava era prodigiosa. Ele sabia de cor páginas completas de Flaubert, Newman, de Quincey, E. Quinet, A. J. Balfour e muitos outros (..) Tínhamos estado a falar de Lycidas de Milton, e eu queria citar algumas linhas de que gostava no poema. A minha memória cedeu, mas Joyce recitou todo o poema, do início ao fim, e continuou ainda com L’Allegro.” Frank Budgen, in James Joyce and the making of 'Ulysses’, 1934 
“incapaz de ler o capítulo do Finnegans Wake que iria gravar em 1929 nos estúdios de C. K. Ogden, ele [Joyce] decidiu recitar todo o texto de memória (..) Mas a história de que ele teria sido capaz de recitar para uma visita no hospital (quando se recuperava justamente de mais uma cirurgia oftalmológica) toda a página do livro que ela lia enquanto esperava já começa a apontar para o domínio do virtuosismo.” Caetano Galindo, in Sim, Eu Digo Sim — Uma Visita ao Ulysses de James Joyce, 2016
Ou seja, Joyce teria capacidades prodigiosas de memória, o que lhe serviu, e muito, na composição de “Ulisses”. A complexidade da fragmentação do enredo apresentado é desde logo uma demonstração impressionante dessa capacidade, uma vez que só uma memória muito exercitada conseguiria manter tantas pontas soltas, atadas e coerentes.

Mas se Joyce apresentava uma aparente sobredotação no campo da memória, as suas capacidades linguísticas não eram menos impressionantes. Existem vários trabalhos que tentam determinar o número de línguas em que era fluente, o seu obituário no New York Times aponta para 17, incluindo variações antigas e modernas do Grego e Árabe. Mesmo que pareçam demais, é fácil encontrar menções a mais de uma dezena como mínimo. Se a memória era vital para manter o enredo de “Ulisses” lógico, estas capacidades linguísticas foram fundamentais para construir uma percepção tão fina dos modos e estilos narrativos.

Voltando a “Ulisses”, devemos começar por compreender que estamos perante um texto composto de 18 capítulos, cada um deles escrito num estilo literário completamente distinto e único. Podemos mesmo dizer que qualquer um dos capítulos poderia ser autonomizado, dadas as suas estilísticas de escrita e narrativa. Cada capítulo pode ser um livro. Aliás, para muitos joyceanos, a leitura de “Ulisses” faz-se melhor lendo cada capítulo de forma independente, na ordem e tempo que a cada um aprouver. E no entanto, “Ulisses” é um texto profundamente coeso e coerente.

Ou seja, deste preâmbulo podemos desde já intuir que “Ulisses” não é apenas mais um livro do cânone literário, é um marco fundamental da arte escrita. Nas próximas linhas tentarei dar conta do que o torna especial e ao mesmo tempo dos problemas que essa singularidade levanta.

1 - Êxtase Artístico
O uso de diferentes estilos narrativos — no discurso e forma escrita — é só por si monumental, mas a sua racionalidade, o fusionar de forma e conteúdo, eleva todo o trabalho a um nível metaliterário. O resultado é um artefacto que à primeira vista parece incoerente, fundado no caos estilístico, mas que depois de compreendido, se torna profundamente íntegro enquanto corolário da mensagem narrada. Ou seja, Joyce não quer apenas contar uma história, Joyce quer plasmar essa história na forma escrita, quer que o texto seja parte e não mero veículo. O estilo não pode ser apenas estilo, o estilo é também conteúdo, e expressa em sintonia com aquilo que se quer dizer.

O exemplo mais marcante dessa estilística de "Ulisses" é o monólogo interior, ou fluxo de consciência (stream of consciousness). Joyce é comumente citado como o pai da técnica, apesar de se poderem encontrar vários exemplos precedentes do seu uso, e do próprio Joyce citar sempre Édouard Dujardin como o seu mentor. No entanto, "Ulisses" é responsável por tornar a técnica operacional nas suas diferentes formulações, e dá-la a conhecer à restante comunidade de escritores, que nos anos seguintes lhe dariam um uso intenso (ex. Italo Svevo, Virginia Woolf, William Faulkner). Mas não podemos, nem devemos, reduzir "Ulisses" ao monólogo interior, existem vários capítulos que usam variações da técnica, mas existem múltiplas outras técnicas em uso, desde a escrita jornalística, ao teatro ou narrativa clássica.

Toda esta variação estilística é, de certo modo, potenciado pelo virtuosismo do domínio linguístico de Joyce, mas quando analisado o conteúdo em detalhe, e percebemos que apesar de toda subversão, o texto fica muito longe dos experimentos surrealistas da época, ou seja, nada do que lemos em “Ulisses” é fruto do acaso, coincidência ou inexplicável. Tudo o que se discute tem uma base real, que vai ao pormenor geográfico, assim como tudo o que acontece tem uma causa e um efeito. Do mesmo modo, o texto contém em si mesmo todas as explicações, ainda que de forma não-linear e ultra-minimal. Temos, então, aquilo que podemos apelidar de virtuosismo de memória, ou seja, uma capacidade para: mentalmente ver o todo, não apenas na sua forma macro, mas em todo o seu detalhe.

Assim, a jornada caótica de Joyce, ao contrário da épica de Homero — que nos falava de reis valentes, proezas sobre-humanas, de humanos quase-deuses — procura dar conta da realidade experienciada pelo viver humano — a desordem e suas incertezas, as fragilidades e a insignificância de cada um de nós. Como dizia Dedalus no fecho do primeiro livro de Joyce:
“Sê bem-vinda, ó, vida! Vou, pela milionésima vez, ao encontro da realidade da experiência, para moldar na forja da minha alma a consciência incriada da minha raça.” in “Retrato do Artista quando Jovem” (1916) de James Joyce
Algo a que Joyce responderia no livro seguinte, este “Ulisses”, repescando a personagem de Dedalus para o perscrutar, como explicaria depois em entrevista:
“Em Ulisses gravei simultaneamente, aquilo que um homem diz, vê, pensa, e aquilo que esse ver, pensar e dizer faz, àquilo que os freudianos chamam de subconsciente.” James Joyce em entrevista, 1922
O resultado deste labor de Joyce é muito bem sintetizado nas palavras de Zadie Smith, que mais do que gostar de Joyce, diz respeitar a sua obra:
“quanto mais nos aproximamos da realidade da experiência mais bizarra esta DEVE parecer na página e soar na boca, porque a nossa experiência real não vem empacotada em estruturas de três atos. Para mim, Joyce é o derradeiro realista porque ele procura transmitir como a experiência verdadeiramente se sente. E tendo percebido o seu caráter tão idiossincrático viu-se obrigado a inventar toda uma nova linguagem para a descrever.” Zadie Smith em entrevista 
Estas condições fazem com que “Ulisses” se apresente diante de nós num texto profundamente experimental, de grande inovação artística. Mas talvez, ainda mais impressionante, para mim, foi o facto de tudo ser apresentado num modo notavelmente amadurecido, como se para Joyce toda esta forma de contar histórias sempre tivesse existido.

2 - Problemas desse Êxtase
Apesar de reconhecer o brilhantismo do trabalho apresentado por Joyce, e apesar de ter, ao fim de três tentativas, chegado ao final da sua leitura, continuo a manter várias reservas. Existe um misto de sensações que o livro despoleta, desde logo porque temos muitos livros dentre de um único, e aquilo que nos dá prazer num, já não surge noutro, assim como aquilo que menos gostamos, também acaba por desaparecer. "Ulisses" como qualquer obra experimentalista não poderia nunca ser perfeita, e por isso, não minorando em nada tudo aquilo que representa, quero deixar um conjunto de apontamentos sobre aquilo que menos gosto, ou considero mais problemático.

A monumentalidade. A densidade do experimento, nomeadamente o número de estilos, que obrigam o leitor a um esforço apenas ao alcance de um estudo literário aprofundado de nível universitário. Alvo de inúmeras críticas, que questionam até que ponto o propósito não passou por tornar-se difícil e inacessível apenas por mero exibicionismo.

O conceptualismo. Muitos dos estilos usados trabalham num registo de ultra-minimalismo, nomeadamente os monólogos interiores mais extremistas, e assim apesar do texto conter em si mesmo todas as explicações, estas não são passíveis de serem descodificadas sem o acesso a explicações e dados exteriores à obra. Daí que Joyce se tenha visto obrigado a criar esquemas de ajuda à leitura, tendo um dos grandes amigos de Joyce, Frank Budgen, que consigo passou os anos de escrita de “Ulysses”, sido responsável pelo maior manancial de informação de suporte à descodificação da mesma. A isto junta-se claro a necessidade de o leitor possuir um conhecimento bastante alargado do cânone literário, que fazendo as delícias dos académicos complica a vida ao leitor médio.

A fragmentação. Que Joyce usa por vezes de forma extrema, obrigando a reter muita e muita informação, ao longo de centenas de páginas até ser explicada ou confirmada. Desta forma, Joyce espera que de algum modo os leitores apresentem uma capacidade de memória próxima da sua, e assim consigam edificar o mundo de “Ulisses” mentalmente, reconstruindo para sentir. Esta não-linearidade intensa questiona inevitavelmente a narratividade da obra, a ponto de podermos dizer que em certos momentos, temos mais jogo do que narrativa. O leitor tem de jogar com as peças da obra para delas obter sentido, não se pode quedar estático a aguardar que o sentido lhe seja entregue no final de cada ato.

O humor britânico. O constante gozo com tudo e todos que coloca tudo em dúvida, rasteirando ainda mais a pouca verdade que o leitor vai descortinando. Se torna a obra menos pesada por não se focar na tragédia, torna-a menos acessível, já que juntamente com os problemas acima identificados afasta ainda mais o leitor de conseguir dar sentido ao que vai lendo.

O grotesco. Na ânsia por revelar a experiência humana mais pura, numa clara fuga ao classicismo — o belo — Joyce dá-nos a sentir um universo algo dantesco. Por um lado temos o choque constante entre a religião e o sexo que explica muita de celeuma e problemas com a publicação original, mas o que mais nos arrasta é a ausência de traços atrativos nos seus personagens, todos eles são ingenuidade cómica carregada dos mais elementares defeitos humanos.

3 - Experiência de Leitura
Joyce criou uma obra inigualável, marcou a arte, e ficará para sempre como referência literária. Contudo, ao testar os limites da arte literária, testava também os limites cognitivos dos seus leitores. O modelo clássico de narrativa — os tais três atos — que utilizamos não foi inventado por alguém que se lembrou de que seria a melhor forma de contar uma história. É antes fruto de um processo evolucionário que foi melhorando ao longo de milénios, na transmissão de informação de geração para geração. A narrativa clássica é fundamental para que o processo de transferência entre humanos ocorra de forma eficiente. Ora o que Joyce faz aqui é destronar este modelo, criando toda uma nova linguagem literária, baseada na percepção do modo como pensamos, do como nos tornamos conscientes do mundo.

É uma busca lógica, e que temos de lhe agradecer. “Ulisses” é um portento experimentalista no teste dos limites da compreensão humana da realidade, no modo como podemos olhar para dentro de nós e tentar compreender como compreendemos o mundo. Contudo ao fazê-lo Joyce ignora totalmente um segundo aspeto, vital da arte, e que é a comunicação. Ou seja, não basta olhar para dentro de si e tentar construir uma forma que se assemelhe ao seu interior, teria sido importante que sobre tudo isso, Joyce tivesse ainda processado tudo por meio de uma segunda camada, refletindo sobre o modo como poderia comunicar todo esse “mundo” percepcionado aos outros, a quem o lê. De outro modo, acaba a falar sozinho, ou neste caso, para académicos.

4 - Modos de Ler
Se dúvidas houvesse quanto à validade dos guias de leitura de “Ulisses”, seria o próprio Joyce, que pouco depois da primeira publicação, criaria dois esquemas explicativos de “Ulisses” para dar a amigos próximos (Stuart Gilbert e Carlo Linati) e assim os ajudar a compreender de que era feito o que liam. Os guias, estes esquemas de Joyce assim como os múltiplos livros entretanto escritos, servem na redução da complexidade, orientam o leitor alicerçando a leitura. De certa forma, os guias fazem aquilo que Joyce deveria ter feito na descrição do seu mundo interior, criam uma série de degraus intermédios que permitem aceder aos degraus mais íngremes de “Ulisses”.

Ainda assim, devemos dizer que “Ulisses” não tem uma forma única de ser lido. Cada leitor deve procurar a melhor forma de o fazer para si, e procurar as ajudas que melhor sirvam os seus propósitos. Deve saber de antemão que não é possível compreender muito do que está em “Ulisses” sem ajudas externas, o que não invalida a possibilidade de retirar imenso prazer da sua leitura sem as mesmas desde que não sinta a obsessão por compreender tudo aquilo que lê.

Partindo dos esquemas de Joyce, é preciso saber que as atuais edições de "Ulisses" tendem a replicar a edição original sem identificação de capítulos. No passado, a edição Livros do Brasil, identificava e numerava os capítulos seguindo os esquemas, apresentando em notas de rodapé as restantes informações fornecidas por Joyce. Mas, tanto a nova tradução de Jorge Vaz Carvalho para Relógio D’Água como a de Caetano Galindo para Companhia das Letras, seguem a primeira edição, sem qualquer menção a capítulos.

Tradução de Jorge Vaz Carvalho de 2013 na Relógio D'Água

Quanto aos guias de interpretação, a escolha é enorme, desde guias detalhados a biografias de Joyce. Uma simples pesquisa por guias de "Ulisses" retorna rapidamente centenas de opções nas mais diversas línguas. Optei por utilizar apenas um livro guia, em vez de andar a saltitar entre vários.  “Sim, Eu digo Sim” (2016) foi escrito pelo tradutor de "Ulisses" no Brasil, com a particularidade de ser dos guias mais recentes disponíveis. Recomendo vivamente porque faz da leitura uma travessia não apenas menos árdua mas também bastante mais prazeirosa.

"Sim, Eu Digo Sim" (2016) de Caetano Galindo

Por outro lado, se preferirem algo menos elaborado, ou de mais rápida consulta, a web apresenta-se hoje como um manancial de ajuda inestimável, desde a Wikipedia a dezenas ou mesmo centenas de páginas de professores universitários, e fãs de Joyce, que procuram ajudar, explicar e desmistificar o universo de Joyce. Aliás, ler hoje Joyce, é uma experiência com certeza muito diferente de quem o leu na sua primeira edição. Assim, as duas páginas da Wikipedia (em inglês, já que as páginas portuguesas apresentam-se resumidas) dedicadas a James Joyce e a “Ulysses” devem servir desde logo como ponto de partida. Acrescentaria, os sumários do professor John Rickard, especialista em Joyce, que oferece numa página web completamente despretensiosa, um dos guias mais reduzidos, mas também mais úteis que encontrei. Rickard apresenta a divisão do livro nos capítulos seguindo Joyce, identificando os atributos dos mesmos, ao que junta, pequenos sumários de cada capítulo e ainda ligações dos mesmos a brevíssimas sínteses da “Odisseia”.

"Odisseia" (VII a.c.) de Homero

Se os guias são relevantes, é verdadeiramente fundamental a existência de um lastro de leituras prévias, algo que um guia não pode oferecer, ainda que possa dar pistas. Joyce cita quase todo o cânone literário que o precede, daí que ter lido uma boa parte desse, ajudará imenso. No entanto, como se percebe do parágrafo anterior, a leitura de “Odisseia” é um quesito obrigatório. Ler “Ulisses” sem ter lido “Odisseia” é um pouco como mergulhar num lago à noite. Não se vê o fundo, e o medo assola. Aconteceu-me em 2015, daí ter desistido a meio do mergulho. Depois de ter lido a “Odisseia” (análise), “Ulisses” ganhou toda uma quantidade de focos de luz, que permitiram guiar o meu mergulho e tocar no fundo do lago. Para além da “Odisseia” considero também relevante a leitura de “Retrato do Artista quando Jovem” (análise), o primeiro livro de Joyce, no qual podemos encontrar um dos personagens principais de “Ulisses”, Stephen Dedalus. Relevante é ainda Shakespeare, com particular destaque para “Hamlet” (análise) que é amplamente discutido em “Ulisses”.

Dois livros que não li mas considero que deveria ter lido antes, “Dublinenses” e “A Divina Comédia”. O primeiro representa um livro de contos de Joyce, no qual muitas das personagens secundárias de “Ulisses” são apresentadas e definidas, tal como a própria cidade de Dublin, palco total de “Ulisses”. Quanto a Dante, é sem dúvida central em muitas das descrições de Joyce, nomeadamente no modo como trabalha algum do grotesco, mas mais ainda na luta teológica que trespassa grande parte do texto.

"Ulysses" (1967) de Joseph Strick

"Bloom" (2003) de Sean Walsh

Por fim, servindo aqueles mais visuais, aqueles que apresentam maior dificuldade em visualizar textos escritos e requerem pistas visuais para edificar os universos ficcionais. Diga-se que Joyce não é muito amigo destes. Talvez o facto de ter grandes problemas de visão tenha contribuído para que os livros de Joyce sejam muito pouco visuais. Por outro lado, o facto de Joyce se deter quase todo o tempo dentro da cabeça dos seus personagens, não ajuda nesse trabalho de visualização, que é algo muito dependente de externalidades. Assim para estes, existem dois filmes — “Ulysses” (1967) e “Bloom” (2003). Tendo visto ambos, nenhum é muito fácil de encontrar, mas também nenhum é muito bom, contudo poderão ajudar na criação de âncoras mentais de suporte à edificação do universo de “Ulisses” e assim facilitar também a leitura.

5 - O meu pequeno guia
Ao longo da minha leitura fui escrevinhado bastante sobre o que fui lendo, partes dessas escritas estão vertidas ao longo deste texto, outras foram sendo agilizadas como guia de leitura, para me orientar e solidificar algumas das ideias que fui construindo sobre o que ia lendo. Deste modo, resolvi editar um pouco essas notas, e deixá-las aqui para servir a quem o desejar.

Síntese narrativa: Dois homens encontram-se em Dublin. Stephen Dedalus, um jovem professor, armado em intelectual, e Leopold Bloom, um vendedor de publicidade casado com Molly Bloom, a mulher que passa a vida a traí-lo. Toda a história é passada num único dia, 16 de junho 1904 (conhecido hoje como Bloomsday, e o dia em que Joyce conheceu a sua esposa), sendo que a grande maioria do que se discute acontece no interior das mentes destes três personagens.

Estrutura: Segue estritamente as divisões em quadros da “Odisseia”, pondo em cena metáforas dos seus múltiplos episódios, desde as Sereias e Ciclopes, a Circe, Hades, e Nausicaa.

Personagens: Stephen Dedalus (o "filho" Telémaco), Leopold Bloom (o pai Ulisses) e Molly Bloom (a mulher Penélope)

Capítulos: as divisões de Joyce, com brevíssimas sínteses.

Parte I - A Telemaquia
01. Telémaco, A Torre, 8:00, Narrativa (jovem)
Introdução de Stephen Dedalus e seus compinchas.

02. Nestor, A Escola, 10:00, História Catequismo (pessoal)
Dedalus na escola, dá uma aula aos seus pequenos alunos.

03. Proteu, Beira-mar, 11:00, Monólogo (masculino)
Dedalus filosofa em monólogo interior, ou fluxo de consciência, à beira-mar.

Parte II - As Viagens de Ulysses
04. Calipso, A Casa, 08:00, Narrativa (madura)
Introdução de Leopold Bloom e Molly Bloom

05. Lotus Eaters, O Banho, 10:00, Narcissismo
Discute-se do efeito hipnótico da religião.

06. Hades, O Cemitério, 11:00, Incubismo
Discussão em redor da Morte

07. Éolo, O Jornal, 12:00, Entimema
Discussão na redação de jornal, “visto” a partir da escrita jornalística.

08. Lestrigões, O Almoço, 13:00, Peristáltico
Trocadilhos com comida.

09. Cila & Charybdis  A Biblioteca, 14:00, Dialética
Análise de Hamlet, pelos críticos e académicos.

10. Nas rochas, As Estradas, 15:00, Labirinto
Sincronia de histórias com as personagens secundárias passeando por Dublin.

11. Sereias, Sala Concerto, 16:00, Fuga per canonem
Escrito na forma musicada, em que o ritmo funciona como canto hipnótico das sereias.

12. Ciclopes, A Taverna, 17:00, Gigantismo
Narrador desconhecido vai descrevendo a Irlanda e os irlandeses de um modo épico.

13. Nausicaa, As Rochas, 20:00, Tumescência
A escrita segue o estilo do romance do séc. XIX, em direção ao êxtase masturbatório de Bloom.

14. Gado do Sol, O Hospital, 22:00, Desenvolvimento Embriónico
Dedalus e Bloom encontram-se no Hospital. O capítulo é escrito na forma de gestação, iniciando-se com as potenciais primeiras frases e progride cronologicamente através da evolução da língua inglesa. Para mim, o mais impressionante de todos os capítulos.

15. Circe, O Bordel, 00:00, Alucinação
Total colagem a “Odisseia”, e aos dotes de Circe para a feitiçaria, maldições, sonhos e visões, tolhidos por muito desejo sexual e vingança. Um capítulo completamente alucinatório.

Parte III - Nostos (O regresso)
16. Eumeu, O Abrigo, 01:00, Narrativa (antiga)
Estamos na madrugada do dia seguinte, imensamente cansados, e o estilo adotado pelo texto espelha esse cansaço, a ponto de tornar-se no capítulo mais aborrecido de todo o livro.

17. Itaca, A casa, 02:00, Catequismo (impessoal)
Escrito na forma Pergunta-Resposta tipo livro de catequese, com tom de objetividade que nos distancia da emocionalidade dos personagens. Responde a muitas interrogações que se foram levantando ao longo do livro.

18. Penélope, A Cama, 03:00, Monólogo (feminino)
Um dos capítulos emblemáticos de Ulisses, conhecido também como Mollylóquio, por se tratar de um longo monólogo interior de Molly, escrito em fluxo de consciência, sem vírgulas, pontos finais, ou qualquer outra forma de pontuação. Em termos sensoriais é contrário ao capítulo anterior, com a emoção bruta a contrapor à racionalidade.

dezembro 22, 2016

"The OA", manipulados pela Netflix

Acabei de ver o 8º episódio de "The OA", diga-se que já depois de muito me ter forçado para continuar a ver depois do 4º ou 5º episódios. Não quis falar sem ter terminado a série, quis dar o benefício da dúvida, acreditando de certa forma que poderia haver algum tipo de redenção. E a verdade é que isso foi a única coisa que a série conseguiu fazer bem, lançar na dúvida constante, todos os caminhos apontados foram continuamente revogados para logo a seguir voltar a ser reafirmados. No final, sente-se um vazio, um nada, uma total perda de tempo. Sinto-me totalmente defraudado pela Netflix.





The OA é uma série baseada na premissa básica do thriller, prolongar a revelação de informação crucial para a compreensão de um argumento até ao último minuto. O ser-humano não consegue viver sem fechamento, sem dar sentido aos padrões que o rodeiam, precisa de chaves para explicar o real que se lhe apresenta na frente. Neste sentido, e como na maioria das obras do género, os personagens são básicos, meras marionetas que empurram o enredo e guiam o caminho ao recetor. Poderíamos perguntar quem é Prairie? quem é Homer? quem é a Renata? quem é o Alfonso? quem é etc? Porque nenhum dos persongens verdadeiramente interessa. Existindo ou não, são irrelevantes, podiam facilmente ser substituídos por quaisquer outros.

Mas sobre estes, os personagens, diga-se que não eram apenas vazios, eram totalmente inconsistentes, desprovidos de forma e sentido moral. Se gostaria de louvar Brit Marling por um trabalho criativo fantástico, já que é não só atriz principal, mas também produtora executiva e guionista, não o consigo fazer pela escrita . Que pais adotivos são aqueles, que filha adotiva é aquela, que raptor é aquele, que cidade é aquela, que polícia é aquela. Nada, é tudo tão superficial, tão sem fundo, sem sabor, sem nada.

No fundo o que conta é apenas a premissa, para onde nos leva. Este tipo de obras têm um problema de base que é arrastar as pessoas e mantê-las enredadas sem lhes dar a conhecer se vale a pena o investimento que realizam em tal. O esquema utilizado é profundamente manipulativo, não tendo em si qualquer outro objetivo além de garantir a atenção cognitiva dos recetores. E é por isso que deve ser usado com alguma parcimónia, garantir o interesse sim, mas ir informando na sua progressão ao que vem, de outra forma resulta em manipulação pela manipulação.

E é isso que "The OA" é, um mero exercício de manipulação das audiências. Uma temporada inteira, 8 episódios, horas e horas, e nada acontece. Somos totalmente manipulados. As vezes em que a série parece indicar ao que vem — as experiências de quase morte e o new ageism, ou as experiências científicas, ou  ainda a imaginação baseada na ficção — logo a seguir destrona tudo, questiona tudo, deixando-nos de novo sem nada.

É certo que me arrepiei quando comecei a ver o ridículo das experiências de quase morte surgir, mas inteligentemente foram atirando tudo isso para debaixo do tapete, camuflando com outras possibilidades. Diga-se que já não se aguenta a moda recente de usar a Mecânica Quântica como nova força do esoterismo. Mas no final, nem uma coisa nem outra, nada.

Obrigado Netflix, mas foi a primeira e a última vez que me convenceram a ver uma série antes de ler sobre a mesma. Mantiveram a série em total segredo, lançando a mesma em simultâneo em todo os países, sem dar tempo para que se pudesse discutir a mesma, escrever sobre a mesma. Funcionou, mas só funciona uma vez.