dezembro 25, 2016

"Ulisses", clímax do modernismo

Da primeira vez, há cerca de 20 anos, cheguei à página 50, da segunda, no ano passado, à 322, agora fui até ao fim (748). Serve isto apenas para traçar o caminho por mim seguido, mas de algum modo pode servir de indicador da potencial dificuldade que a obra representa a quem nela desejar aventurar-se.

Primeira edição, editada em França em 1922

“Ulisses” (1922) não requer grande contextualização, qualquer pessoa que goste de literatura já ouviu falar, e sabe o quão elevada é a sua estima no meio. Surgiu num período de grande ebulição artística, o modernismo, responsável pela criação de uma brecha no universo clássico da arte que abriria todo um novo mundo de conceitos, abordagens e perspectivas sobre a arte que a libertariam das suas amarras, permitindo aos artistas dar total liberdade à sua audácia. Surgindo deste caldo, “Ulisses” não se limitaria a subverter e inovar, iria transforma-se na obra definidora de todo o modernismo literário.

Mas antes de falar de “Ulisses” quero falar de Joyce. Considero que aquilo que foi feito nesta obra não está ao alcance de um simples desejo. São necessárias algumas qualidades cognitivas, que requerem alguma base biológica, mas acima de tudo enorme trabalho, dedicação e diria mesmo, obsessão:
“A memória de Joyce para palavras das suas próprias composições e para aquelas de todos os escritores que ele admirava era prodigiosa. Ele sabia de cor páginas completas de Flaubert, Newman, de Quincey, E. Quinet, A. J. Balfour e muitos outros (..) Tínhamos estado a falar de Lycidas de Milton, e eu queria citar algumas linhas de que gostava no poema. A minha memória cedeu, mas Joyce recitou todo o poema, do início ao fim, e continuou ainda com L’Allegro.” Frank Budgen, in James Joyce and the making of 'Ulysses’, 1934 
“incapaz de ler o capítulo do Finnegans Wake que iria gravar em 1929 nos estúdios de C. K. Ogden, ele [Joyce] decidiu recitar todo o texto de memória (..) Mas a história de que ele teria sido capaz de recitar para uma visita no hospital (quando se recuperava justamente de mais uma cirurgia oftalmológica) toda a página do livro que ela lia enquanto esperava já começa a apontar para o domínio do virtuosismo.” Caetano Galindo, in Sim, Eu Digo Sim — Uma Visita ao Ulysses de James Joyce, 2016
Ou seja, Joyce teria capacidades prodigiosas de memória, o que lhe serviu, e muito, na composição de “Ulisses”. A complexidade da fragmentação do enredo apresentado é desde logo uma demonstração impressionante dessa capacidade, uma vez que só uma memória muito exercitada conseguiria manter tantas pontas soltas, atadas e coerentes.

Mas se Joyce apresentava uma aparente sobredotação no campo da memória, as suas capacidades linguísticas não eram menos impressionantes. Existem vários trabalhos que tentam determinar o número de línguas em que era fluente, o seu obituário no New York Times aponta para 17, incluindo variações antigas e modernas do Grego e Árabe. Mesmo que pareçam demais, é fácil encontrar menções a mais de uma dezena como mínimo. Se a memória era vital para manter o enredo de “Ulisses” lógico, estas capacidades linguísticas foram fundamentais para construir uma percepção tão fina dos modos e estilos narrativos.

Voltando a “Ulisses”, devemos começar por compreender que estamos perante um texto composto de 18 capítulos, cada um deles escrito num estilo literário completamente distinto e único. Podemos mesmo dizer que qualquer um dos capítulos poderia ser autonomizado, dadas as suas estilísticas de escrita e narrativa. Cada capítulo pode ser um livro. Aliás, para muitos joyceanos, a leitura de “Ulisses” faz-se melhor lendo cada capítulo de forma independente, na ordem e tempo que a cada um aprouver. E no entanto, “Ulisses” é um texto profundamente coeso e coerente.

Ou seja, deste preâmbulo podemos desde já intuir que “Ulisses” não é apenas mais um livro do cânone literário, é um marco fundamental da arte escrita. Nas próximas linhas tentarei dar conta do que o torna especial e ao mesmo tempo dos problemas que essa singularidade levanta.

1 - Êxtase Artístico
O uso de diferentes estilos narrativos — no discurso e forma escrita — é só por si monumental, mas a sua racionalidade, o fusionar de forma e conteúdo, eleva todo o trabalho a um nível metaliterário. O resultado é um artefacto que à primeira vista parece incoerente, fundado no caos estilístico, mas que depois de compreendido, se torna profundamente íntegro enquanto corolário da mensagem narrada. Ou seja, Joyce não quer apenas contar uma história, Joyce quer plasmar essa história na forma escrita, quer que o texto seja parte e não mero veículo. O estilo não pode ser apenas estilo, o estilo é também conteúdo, e expressa em sintonia com aquilo que se quer dizer.

O exemplo mais marcante dessa estilística de "Ulisses" é o monólogo interior, ou fluxo de consciência (stream of consciousness). Joyce é comumente citado como o pai da técnica, apesar de se poderem encontrar vários exemplos precedentes do seu uso, e do próprio Joyce citar sempre Édouard Dujardin como o seu mentor. No entanto, "Ulisses" é responsável por tornar a técnica operacional nas suas diferentes formulações, e dá-la a conhecer à restante comunidade de escritores, que nos anos seguintes lhe dariam um uso intenso (ex. Italo Svevo, Virginia Woolf, William Faulkner). Mas não podemos, nem devemos, reduzir "Ulisses" ao monólogo interior, existem vários capítulos que usam variações da técnica, mas existem múltiplas outras técnicas em uso, desde a escrita jornalística, ao teatro ou narrativa clássica.

Toda esta variação estilística é, de certo modo, potenciado pelo virtuosismo do domínio linguístico de Joyce, mas quando analisado o conteúdo em detalhe, e percebemos que apesar de toda subversão, o texto fica muito longe dos experimentos surrealistas da época, ou seja, nada do que lemos em “Ulisses” é fruto do acaso, coincidência ou inexplicável. Tudo o que se discute tem uma base real, que vai ao pormenor geográfico, assim como tudo o que acontece tem uma causa e um efeito. Do mesmo modo, o texto contém em si mesmo todas as explicações, ainda que de forma não-linear e ultra-minimal. Temos, então, aquilo que podemos apelidar de virtuosismo de memória, ou seja, uma capacidade para: mentalmente ver o todo, não apenas na sua forma macro, mas em todo o seu detalhe.

Assim, a jornada caótica de Joyce, ao contrário da épica de Homero — que nos falava de reis valentes, proezas sobre-humanas, de humanos quase-deuses — procura dar conta da realidade experienciada pelo viver humano — a desordem e suas incertezas, as fragilidades e a insignificância de cada um de nós. Como dizia Dedalus no fecho do primeiro livro de Joyce:
“Sê bem-vinda, ó, vida! Vou, pela milionésima vez, ao encontro da realidade da experiência, para moldar na forja da minha alma a consciência incriada da minha raça.” in “Retrato do Artista quando Jovem” (1916) de James Joyce
Algo a que Joyce responderia no livro seguinte, este “Ulisses”, repescando a personagem de Dedalus para o perscrutar, como explicaria depois em entrevista:
“Em Ulisses gravei simultaneamente, aquilo que um homem diz, vê, pensa, e aquilo que esse ver, pensar e dizer faz, àquilo que os freudianos chamam de subconsciente.” James Joyce em entrevista, 1922
O resultado deste labor de Joyce é muito bem sintetizado nas palavras de Zadie Smith, que mais do que gostar de Joyce, diz respeitar a sua obra:
“quanto mais nos aproximamos da realidade da experiência mais bizarra esta DEVE parecer na página e soar na boca, porque a nossa experiência real não vem empacotada em estruturas de três atos. Para mim, Joyce é o derradeiro realista porque ele procura transmitir como a experiência verdadeiramente se sente. E tendo percebido o seu caráter tão idiossincrático viu-se obrigado a inventar toda uma nova linguagem para a descrever.” Zadie Smith em entrevista 
Estas condições fazem com que “Ulisses” se apresente diante de nós num texto profundamente experimental, de grande inovação artística. Mas talvez, ainda mais impressionante, para mim, foi o facto de tudo ser apresentado num modo notavelmente amadurecido, como se para Joyce toda esta forma de contar histórias sempre tivesse existido.

2 - Problemas desse Êxtase
Apesar de reconhecer o brilhantismo do trabalho apresentado por Joyce, e apesar de ter, ao fim de três tentativas, chegado ao final da sua leitura, continuo a manter várias reservas. Existe um misto de sensações que o livro despoleta, desde logo porque temos muitos livros dentre de um único, e aquilo que nos dá prazer num, já não surge noutro, assim como aquilo que menos gostamos, também acaba por desaparecer. "Ulisses" como qualquer obra experimentalista não poderia nunca ser perfeita, e por isso, não minorando em nada tudo aquilo que representa, quero deixar um conjunto de apontamentos sobre aquilo que menos gosto, ou considero mais problemático.

A monumentalidade. A densidade do experimento, nomeadamente o número de estilos, que obrigam o leitor a um esforço apenas ao alcance de um estudo literário aprofundado de nível universitário. Alvo de inúmeras críticas, que questionam até que ponto o propósito não passou por tornar-se difícil e inacessível apenas por mero exibicionismo.

O conceptualismo. Muitos dos estilos usados trabalham num registo de ultra-minimalismo, nomeadamente os monólogos interiores mais extremistas, e assim apesar do texto conter em si mesmo todas as explicações, estas não são passíveis de serem descodificadas sem o acesso a explicações e dados exteriores à obra. Daí que Joyce se tenha visto obrigado a criar esquemas de ajuda à leitura, tendo um dos grandes amigos de Joyce, Frank Budgen, que consigo passou os anos de escrita de “Ulysses”, sido responsável pelo maior manancial de informação de suporte à descodificação da mesma. A isto junta-se claro a necessidade de o leitor possuir um conhecimento bastante alargado do cânone literário, que fazendo as delícias dos académicos complica a vida ao leitor médio.

A fragmentação. Que Joyce usa por vezes de forma extrema, obrigando a reter muita e muita informação, ao longo de centenas de páginas até ser explicada ou confirmada. Desta forma, Joyce espera que de algum modo os leitores apresentem uma capacidade de memória próxima da sua, e assim consigam edificar o mundo de “Ulisses” mentalmente, reconstruindo para sentir. Esta não-linearidade intensa questiona inevitavelmente a narratividade da obra, a ponto de podermos dizer que em certos momentos, temos mais jogo do que narrativa. O leitor tem de jogar com as peças da obra para delas obter sentido, não se pode quedar estático a aguardar que o sentido lhe seja entregue no final de cada ato.

O humor britânico. O constante gozo com tudo e todos que coloca tudo em dúvida, rasteirando ainda mais a pouca verdade que o leitor vai descortinando. Se torna a obra menos pesada por não se focar na tragédia, torna-a menos acessível, já que juntamente com os problemas acima identificados afasta ainda mais o leitor de conseguir dar sentido ao que vai lendo.

O grotesco. Na ânsia por revelar a experiência humana mais pura, numa clara fuga ao classicismo — o belo — Joyce dá-nos a sentir um universo algo dantesco. Por um lado temos o choque constante entre a religião e o sexo que explica muita de celeuma e problemas com a publicação original, mas o que mais nos arrasta é a ausência de traços atrativos nos seus personagens, todos eles são ingenuidade cómica carregada dos mais elementares defeitos humanos.

3 - Experiência de Leitura
Joyce criou uma obra inigualável, marcou a arte, e ficará para sempre como referência literária. Contudo, ao testar os limites da arte literária, testava também os limites cognitivos dos seus leitores. O modelo clássico de narrativa — os tais três atos — que utilizamos não foi inventado por alguém que se lembrou de que seria a melhor forma de contar uma história. É antes fruto de um processo evolucionário que foi melhorando ao longo de milénios, na transmissão de informação de geração para geração. A narrativa clássica é fundamental para que o processo de transferência entre humanos ocorra de forma eficiente. Ora o que Joyce faz aqui é destronar este modelo, criando toda uma nova linguagem literária, baseada na percepção do modo como pensamos, do como nos tornamos conscientes do mundo.

É uma busca lógica, e que temos de lhe agradecer. “Ulisses” é um portento experimentalista no teste dos limites da compreensão humana da realidade, no modo como podemos olhar para dentro de nós e tentar compreender como compreendemos o mundo. Contudo ao fazê-lo Joyce ignora totalmente um segundo aspeto, vital da arte, e que é a comunicação. Ou seja, não basta olhar para dentro de si e tentar construir uma forma que se assemelhe ao seu interior, teria sido importante que sobre tudo isso, Joyce tivesse ainda processado tudo por meio de uma segunda camada, refletindo sobre o modo como poderia comunicar todo esse “mundo” percepcionado aos outros, a quem o lê. De outro modo, acaba a falar sozinho, ou neste caso, para académicos.

4 - Modos de Ler
Se dúvidas houvesse quanto à validade dos guias de leitura de “Ulisses”, seria o próprio Joyce, que pouco depois da primeira publicação, criaria dois esquemas explicativos de “Ulisses” para dar a amigos próximos (Stuart Gilbert e Carlo Linati) e assim os ajudar a compreender de que era feito o que liam. Os guias, estes esquemas de Joyce assim como os múltiplos livros entretanto escritos, servem na redução da complexidade, orientam o leitor alicerçando a leitura. De certa forma, os guias fazem aquilo que Joyce deveria ter feito na descrição do seu mundo interior, criam uma série de degraus intermédios que permitem aceder aos degraus mais íngremes de “Ulisses”.

Ainda assim, devemos dizer que “Ulisses” não tem uma forma única de ser lido. Cada leitor deve procurar a melhor forma de o fazer para si, e procurar as ajudas que melhor sirvam os seus propósitos. Deve saber de antemão que não é possível compreender muito do que está em “Ulisses” sem ajudas externas, o que não invalida a possibilidade de retirar imenso prazer da sua leitura sem as mesmas desde que não sinta a obsessão por compreender tudo aquilo que lê.

Partindo dos esquemas de Joyce, é preciso saber que as atuais edições de "Ulisses" tendem a replicar a edição original sem identificação de capítulos. No passado, a edição Livros do Brasil, identificava e numerava os capítulos seguindo os esquemas, apresentando em notas de rodapé as restantes informações fornecidas por Joyce. Mas, tanto a nova tradução de Jorge Vaz Carvalho para Relógio D’Água como a de Caetano Galindo para Companhia das Letras, seguem a primeira edição, sem qualquer menção a capítulos.

Tradução de Jorge Vaz Carvalho de 2013 na Relógio D'Água

Quanto aos guias de interpretação, a escolha é enorme, desde guias detalhados a biografias de Joyce. Uma simples pesquisa por guias de "Ulisses" retorna rapidamente centenas de opções nas mais diversas línguas. Optei por utilizar apenas um livro guia, em vez de andar a saltitar entre vários.  “Sim, Eu digo Sim” (2016) foi escrito pelo tradutor de "Ulisses" no Brasil, com a particularidade de ser dos guias mais recentes disponíveis. Recomendo vivamente porque faz da leitura uma travessia não apenas menos árdua mas também bastante mais prazeirosa.

"Sim, Eu Digo Sim" (2016) de Caetano Galindo

Por outro lado, se preferirem algo menos elaborado, ou de mais rápida consulta, a web apresenta-se hoje como um manancial de ajuda inestimável, desde a Wikipedia a dezenas ou mesmo centenas de páginas de professores universitários, e fãs de Joyce, que procuram ajudar, explicar e desmistificar o universo de Joyce. Aliás, ler hoje Joyce, é uma experiência com certeza muito diferente de quem o leu na sua primeira edição. Assim, as duas páginas da Wikipedia (em inglês, já que as páginas portuguesas apresentam-se resumidas) dedicadas a James Joyce e a “Ulysses” devem servir desde logo como ponto de partida. Acrescentaria, os sumários do professor John Rickard, especialista em Joyce, que oferece numa página web completamente despretensiosa, um dos guias mais reduzidos, mas também mais úteis que encontrei. Rickard apresenta a divisão do livro nos capítulos seguindo Joyce, identificando os atributos dos mesmos, ao que junta, pequenos sumários de cada capítulo e ainda ligações dos mesmos a brevíssimas sínteses da “Odisseia”.

"Odisseia" (VII a.c.) de Homero

Se os guias são relevantes, é verdadeiramente fundamental a existência de um lastro de leituras prévias, algo que um guia não pode oferecer, ainda que possa dar pistas. Joyce cita quase todo o cânone literário que o precede, daí que ter lido uma boa parte desse, ajudará imenso. No entanto, como se percebe do parágrafo anterior, a leitura de “Odisseia” é um quesito obrigatório. Ler “Ulisses” sem ter lido “Odisseia” é um pouco como mergulhar num lago à noite. Não se vê o fundo, e o medo assola. Aconteceu-me em 2015, daí ter desistido a meio do mergulho. Depois de ter lido a “Odisseia” (análise), “Ulisses” ganhou toda uma quantidade de focos de luz, que permitiram guiar o meu mergulho e tocar no fundo do lago. Para além da “Odisseia” considero também relevante a leitura de “Retrato do Artista quando Jovem” (análise), o primeiro livro de Joyce, no qual podemos encontrar um dos personagens principais de “Ulisses”, Stephen Dedalus. Relevante é ainda Shakespeare, com particular destaque para “Hamlet” (análise) que é amplamente discutido em “Ulisses”.

Dois livros que não li mas considero que deveria ter lido antes, “Dublinenses” e “A Divina Comédia”. O primeiro representa um livro de contos de Joyce, no qual muitas das personagens secundárias de “Ulisses” são apresentadas e definidas, tal como a própria cidade de Dublin, palco total de “Ulisses”. Quanto a Dante, é sem dúvida central em muitas das descrições de Joyce, nomeadamente no modo como trabalha algum do grotesco, mas mais ainda na luta teológica que trespassa grande parte do texto.

"Ulysses" (1967) de Joseph Strick

"Bloom" (2003) de Sean Walsh

Por fim, servindo aqueles mais visuais, aqueles que apresentam maior dificuldade em visualizar textos escritos e requerem pistas visuais para edificar os universos ficcionais. Diga-se que Joyce não é muito amigo destes. Talvez o facto de ter grandes problemas de visão tenha contribuído para que os livros de Joyce sejam muito pouco visuais. Por outro lado, o facto de Joyce se deter quase todo o tempo dentro da cabeça dos seus personagens, não ajuda nesse trabalho de visualização, que é algo muito dependente de externalidades. Assim para estes, existem dois filmes — “Ulysses” (1967) e “Bloom” (2003). Tendo visto ambos, nenhum é muito fácil de encontrar, mas também nenhum é muito bom, contudo poderão ajudar na criação de âncoras mentais de suporte à edificação do universo de “Ulisses” e assim facilitar também a leitura.

5 - O meu pequeno guia
Ao longo da minha leitura fui escrevinhado bastante sobre o que fui lendo, partes dessas escritas estão vertidas ao longo deste texto, outras foram sendo agilizadas como guia de leitura, para me orientar e solidificar algumas das ideias que fui construindo sobre o que ia lendo. Deste modo, resolvi editar um pouco essas notas, e deixá-las aqui para servir a quem o desejar.

Síntese narrativa: Dois homens encontram-se em Dublin. Stephen Dedalus, um jovem professor, armado em intelectual, e Leopold Bloom, um vendedor de publicidade casado com Molly Bloom, a mulher que passa a vida a traí-lo. Toda a história é passada num único dia, 16 de junho 1904 (conhecido hoje como Bloomsday, e o dia em que Joyce conheceu a sua esposa), sendo que a grande maioria do que se discute acontece no interior das mentes destes três personagens.

Estrutura: Segue estritamente as divisões em quadros da “Odisseia”, pondo em cena metáforas dos seus múltiplos episódios, desde as Sereias e Ciclopes, a Circe, Hades, e Nausicaa.

Personagens: Stephen Dedalus (o "filho" Telémaco), Leopold Bloom (o pai Ulisses) e Molly Bloom (a mulher Penélope)

Capítulos: as divisões de Joyce, com brevíssimas sínteses.

Parte I - A Telemaquia
01. Telémaco, A Torre, 8:00, Narrativa (jovem)
Introdução de Stephen Dedalus e seus compinchas.

02. Nestor, A Escola, 10:00, História Catequismo (pessoal)
Dedalus na escola, dá uma aula aos seus pequenos alunos.

03. Proteu, Beira-mar, 11:00, Monólogo (masculino)
Dedalus filosofa em monólogo interior, ou fluxo de consciência, à beira-mar.

Parte II - As Viagens de Ulysses
04. Calipso, A Casa, 08:00, Narrativa (madura)
Introdução de Leopold Bloom e Molly Bloom

05. Lotus Eaters, O Banho, 10:00, Narcissismo
Discute-se do efeito hipnótico da religião.

06. Hades, O Cemitério, 11:00, Incubismo
Discussão em redor da Morte

07. Éolo, O Jornal, 12:00, Entimema
Discussão na redação de jornal, “visto” a partir da escrita jornalística.

08. Lestrigões, O Almoço, 13:00, Peristáltico
Trocadilhos com comida.

09. Cila & Charybdis  A Biblioteca, 14:00, Dialética
Análise de Hamlet, pelos críticos e académicos.

10. Nas rochas, As Estradas, 15:00, Labirinto
Sincronia de histórias com as personagens secundárias passeando por Dublin.

11. Sereias, Sala Concerto, 16:00, Fuga per canonem
Escrito na forma musicada, em que o ritmo funciona como canto hipnótico das sereias.

12. Ciclopes, A Taverna, 17:00, Gigantismo
Narrador desconhecido vai descrevendo a Irlanda e os irlandeses de um modo épico.

13. Nausicaa, As Rochas, 20:00, Tumescência
A escrita segue o estilo do romance do séc. XIX, em direção ao êxtase masturbatório de Bloom.

14. Gado do Sol, O Hospital, 22:00, Desenvolvimento Embriónico
Dedalus e Bloom encontram-se no Hospital. O capítulo é escrito na forma de gestação, iniciando-se com as potenciais primeiras frases e progride cronologicamente através da evolução da língua inglesa. Para mim, o mais impressionante de todos os capítulos.

15. Circe, O Bordel, 00:00, Alucinação
Total colagem a “Odisseia”, e aos dotes de Circe para a feitiçaria, maldições, sonhos e visões, tolhidos por muito desejo sexual e vingança. Um capítulo completamente alucinatório.

Parte III - Nostos (O regresso)
16. Eumeu, O Abrigo, 01:00, Narrativa (antiga)
Estamos na madrugada do dia seguinte, imensamente cansados, e o estilo adotado pelo texto espelha esse cansaço, a ponto de tornar-se no capítulo mais aborrecido de todo o livro.

17. Itaca, A casa, 02:00, Catequismo (impessoal)
Escrito na forma Pergunta-Resposta tipo livro de catequese, com tom de objetividade que nos distancia da emocionalidade dos personagens. Responde a muitas interrogações que se foram levantando ao longo do livro.

18. Penélope, A Cama, 03:00, Monólogo (feminino)
Um dos capítulos emblemáticos de Ulisses, conhecido também como Mollylóquio, por se tratar de um longo monólogo interior de Molly, escrito em fluxo de consciência, sem vírgulas, pontos finais, ou qualquer outra forma de pontuação. Em termos sensoriais é contrário ao capítulo anterior, com a emoção bruta a contrapor à racionalidade.

dezembro 22, 2016

"The OA", manipulados pela Netflix

Acabei de ver o 8º episódio de "The OA", diga-se que já depois de muito me ter forçado para continuar a ver depois do 4º ou 5º episódios. Não quis falar sem ter terminado a série, quis dar o benefício da dúvida, acreditando de certa forma que poderia haver algum tipo de redenção. E a verdade é que isso foi a única coisa que a série conseguiu fazer bem, lançar na dúvida constante, todos os caminhos apontados foram continuamente revogados para logo a seguir voltar a ser reafirmados. No final, sente-se um vazio, um nada, uma total perda de tempo. Sinto-me totalmente defraudado pela Netflix.





The OA é uma série baseada na premissa básica do thriller, prolongar a revelação de informação crucial para a compreensão de um argumento até ao último minuto. O ser-humano não consegue viver sem fechamento, sem dar sentido aos padrões que o rodeiam, precisa de chaves para explicar o real que se lhe apresenta na frente. Neste sentido, e como na maioria das obras do género, os personagens são básicos, meras marionetas que empurram o enredo e guiam o caminho ao recetor. Poderíamos perguntar quem é Prairie? quem é Homer? quem é a Renata? quem é o Alfonso? quem é etc? Porque nenhum dos persongens verdadeiramente interessa. Existindo ou não, são irrelevantes, podiam facilmente ser substituídos por quaisquer outros.

Mas sobre estes, os personagens, diga-se que não eram apenas vazios, eram totalmente inconsistentes, desprovidos de forma e sentido moral. Se gostaria de louvar Brit Marling por um trabalho criativo fantástico, já que é não só atriz principal, mas também produtora executiva e guionista, não o consigo fazer pela escrita . Que pais adotivos são aqueles, que filha adotiva é aquela, que raptor é aquele, que cidade é aquela, que polícia é aquela. Nada, é tudo tão superficial, tão sem fundo, sem sabor, sem nada.

No fundo o que conta é apenas a premissa, para onde nos leva. Este tipo de obras têm um problema de base que é arrastar as pessoas e mantê-las enredadas sem lhes dar a conhecer se vale a pena o investimento que realizam em tal. O esquema utilizado é profundamente manipulativo, não tendo em si qualquer outro objetivo além de garantir a atenção cognitiva dos recetores. E é por isso que deve ser usado com alguma parcimónia, garantir o interesse sim, mas ir informando na sua progressão ao que vem, de outra forma resulta em manipulação pela manipulação.

E é isso que "The OA" é, um mero exercício de manipulação das audiências. Uma temporada inteira, 8 episódios, horas e horas, e nada acontece. Somos totalmente manipulados. As vezes em que a série parece indicar ao que vem — as experiências de quase morte e o new ageism, ou as experiências científicas, ou  ainda a imaginação baseada na ficção — logo a seguir destrona tudo, questiona tudo, deixando-nos de novo sem nada.

É certo que me arrepiei quando comecei a ver o ridículo das experiências de quase morte surgir, mas inteligentemente foram atirando tudo isso para debaixo do tapete, camuflando com outras possibilidades. Diga-se que já não se aguenta a moda recente de usar a Mecânica Quântica como nova força do esoterismo. Mas no final, nem uma coisa nem outra, nada.

Obrigado Netflix, mas foi a primeira e a última vez que me convenceram a ver uma série antes de ler sobre a mesma. Mantiveram a série em total segredo, lançando a mesma em simultâneo em todo os países, sem dar tempo para que se pudesse discutir a mesma, escrever sobre a mesma. Funcionou, mas só funciona uma vez.

“1979 Revolution”, um videojogo documental

Não é todos os anos que podemos ver um jogo sério/educativo alcançar o interesse das revistas da especialidade. Conhecemos imensamente bem os problemas que têm advindo da tentativa de juntar aspetos pedagógicos e videojogos, algo que já aconteceu antes com o cinema. Deste modo, se não fosse pelo interesse no jogo em si, valeria sempre a pena questionar o que tem “1979 Revolution” que faz com que funcione.





A resposta não é difícil, nem sequer complexa. “1979 Revolution” foi feito por uma equipa de pessoas com experiência na indústria clássica de videojogos (Navid Khonsari, John Malaska, etc.), ou seja, pessoas que sabem o que constitui um videojogo, e o que esperam os jogadores. Por outro lado, em termos educativos, em vez de professores a equipa possui documentaristas de cinema (Vassiliki Khonsari, Adam Neuhaus, etc.), ou seja, pessoas com um conhecimento profundo da arte de contar histórias. Juntando os dois, temos um objeto capaz de comunicar sem defraudar o meio, temos um artefacto que em vez de se preocupar com o ensinar, conta uma história. Diria neste sentido, que temos um videojogo documental.

Claro que se tudo isto funciona é também porque detrás de todo o desenvolvimento existe muita paixão. O criador Navid Khonsari viveu no Irão esta revolução. Pouco depois da mesma, e com 10 anos, o seu pai, médico em Teerão, resolveu emigrar para o Canada. Ou seja, muito do que podemos experienciar neste jogo surgiu a partir de memórias reais desses tempos, e do próprio criador. Por isso não surpreende ler na rede, muitos comentários de pessoas que sentem uma espécie de regresso ao passado ao jogar o jogo.

Em termos de valores de produção, outro dos problemas dos jogos não especificamente destinados ao grande domínio do entretenimento, "1979" não possui financiamento de milhões, e por isso nota-se um esforço de reflexão sobre o modo como ainda assim se poderia manter um nível de características capazes de tornar o jogo atrativo em 2016. Para tal, foram tomadas várias decisões técnicas que resultaram imensamente bem. Uma dessas é a animação toda criada com recurso a motion capture, o que evita a necessidade de equipas gigantescas de animação, e apesar de não ter a qualidade final de uma grande produção, funciona muitíssimo bem. Claro que funciona porque temos bons atores, boa direção desses mesmos atores, assim como bons diálogos e cinematografia.

Por outro lado, a jogabilidade baseada no modelo desenvolvido, ou melhor consagrado, pela Telltale Games para jogos como “The Walking Dead” (2012), reduz também imenso as necessidades de desenho e desenvolvimento de interação mais complexas no próprio ambiente de jogo. Com o cerne da jogabilidade a centrar-se nos diálogos e escolhas em texto, oferecendo-se além disso, quase como bónus, pequenas interações com eventos, pequenos mini-jogos e quicktime events, passear em espaços pequenos, ou tirar fotografias.

Sobre o jogo. Reza Shirazi, é o nosso personagem principal, tem apenas 18 anos, acabado de regressar ao Irão, depois de ter estado a estudar na Alemanha, vindo encontrar um país em ebulição. Filho de boas famílias, vai perceber que algo de estranho se passa na sociedade do Irão, desde logo a diferença tida entre os cidadãos de primeira e os de segunda. Começa a ouvir discursos de líderes no exílio, vai a manifestações, assiste a momentos chave da verdadeira revolução de 1979, e de repente damos por nós, enquanto jogadores, a fazer parte dessa revolução. Somos chamados pelo jogo a tomar em mãos o nosso destino, o de Reza, e para isso, a ter de refletir sobre que tipo de revolução queremos, ideologicamente onde nos posicionamos.

É exatamente neste ponto que o jogo vai brilhar, porque se usa toda a linguagem cinematográfica para contar a sua história, recorre à jogabilidade para nos colocar no local. Em vários momentos somos chamados a agir: devemos lutar ou pacificar uma discussão que envolve comunistas contra religiosos; devemos atirar pedras à polícia do governo ou seguir uma abordagem pacifista; devemos defender um irmão entretanto inscrito na polícia secreta, ou deixá-lo cair com o governo, etc. Ou seja, “1979” não conta apenas a história do que aconteceu no Irão, coloca-nos lá, e conduz-nos a participar nos seus eventos, torna-nos de uma certa forma responsáveis pelo que acontece(u). Ao contrário do cinema, não podemos apenas testemunhar a revolução, temos de a sentir por dentro, e assim a compreensão do sucedido deixa de ser meramente informacional passando para um plano mais experiencial.

Tecnicamente, esta experienciação tem falhas, nomeadamente de balanceamento e ritmo, e teria ganho com mais investimento em UX. Por outro lado, o jogo é bastante curto, são apenas 2 horas, o que não dá muito tempo para construir toda a imersão, mais ainda para uma cultura tão distante e complexa. Ainda assim, e como disse, estamos perante um jogo com financiamento reduzido o que torna complicado atingir a excelência a todos os níveis.

Em termos da experiência geral, adorei o confronto sentido com uma cultura muito pouco difundida no ocidente. Permite-nos conhecer um pouco mais de um país tão rico culturalmente, e perceber o quão próximos todos estamos, o quanto as ideologias se aproximam independentemente do ponto geográfico e até mesmo das religiões. Por outro lado, permite ainda compreender como já em 1979 os problemas face à influencia dos EUA se registavam. Contudo, é com muita pena que vejo o atual governo do Irão a banir um jogo que acredito servir imenso no dar a conhecer do país.

dezembro 17, 2016

“The Last Guardian” (2016)

“ICO” saiu em 2001, “Shadow of the Colossus” (SOTC) saiu em 2005, e este ano chegou a vez de “The Last Guardian” (TLG). São os três únicos videojogos criados por Fumito Ueda, três grandes visões oníricas e peculiares que dão acesso a um género próprio que opto por apelidar aqui de humanismo fantástico. Dito isto, fica claro que não podemos cingir a interpretação de TLG a si próprio, temos de olhar ao contexto do autor e suas criações prévias. Não sabemos se Ueda nos dará mais algum jogo mas esta é, desde já, uma das trilogias mais relevantes na definição da arte dos videojogos.



Podemos começar pelo que uniu ICO (analisado em 2004) e SOTC (analisado em 2013) dizendo que é o mesmo que os une a TLG, e que assenta em dois grandes pilares: a capacidade empática; e o mundo história. Nos três videojogos, os mundos são enigmáticos, nos seus sentidos mais herméticos e obscuros, ao mesmo tempo que os seus personagens são profundamente humanos, nas suas expressões mais sensíveis e de compreensão do outro.

Por outro lado, em todos os três jogos, a história é mais tema e menos trama. Ou seja, surge como pano de fundo que alimenta um enredo mínimo, estimulando o interesse e a envolvência dos jogadores pela performance e interação dos seus personagens. Temos aquilo que na academia definimos como, narrativas orientadas por personagens (character-driven narrative). Assim, não é saber quem criou aquele mundo e aqueles seres (problema ou conflito) que nos agarra, mas é antes saber como vai terminar a relação entre aqueles seres que nos move (personagens).

"ICO" (2001)

"Shadow of the Colossus" (2005)

"The Last Guardian" (2016)

Em 2001 tivemos o Rapaz e a Rapariga, em 2006 o Jovem e o Cavalo, e agora de novo o Rapaz, mas junto com uma criatura do fantástico (fusão gigante de cão, gato e pássaro). Podemos tentar explicar o que une estas três relações, e se nos esforçarmos serão múltiplas as interpretações que poderemos desenvolver, até mesmo, criar as devidas progressões e evoluções entre os três volumes. Contudo o seu criador não o fez com esse intuito, de modo que fazê-lo será estar apenas a dar azo as nossas próprias fantasias. Para mim, é suficiente reconhecer que os universos dos três videojogos se cruzam, formam um todo coerente, profundo e impactante do ponto de vista sócio-político, emocional e claro, estético. Ainda assim, arrisco a deixar a minha leitura: temos a fragilidade humana que dita a sua condição colaborativa e cooperativa; temos o instinto de sobrevivência emocional que nos empurra para o outro, para a compreensão desse outro, e obriga ao colaborativo e cooperativo; e temos, todo um mundo exterior que nos coage pela sua grandeza, pela sua estranheza e seu segredo, que nos encosta à parede e nos obriga a gritar pelo outro, a recorrer ao colaborativo e cooperativo. E assim temos um humanismo fantástico.

Não admira que durante quase uma década “ICO” tenha surgido invariavelmente citado como o videojogo mais emocional, em termos de emoções introspetivas — empatia e melancolia — já que no que toca a emoções expansivas — tensão e euforia — sempre estiveram presentes desde o primeiro videojogo. O que as obras de Ueda fazem é falar ao nosso ser, questionar a nossa condição humana, porque fazemos o que fazemos, todos os dias que acordamos e regressamos do estado de não-consciência! É isto que fazem todas as grandes obras da literatura, do cinema ou do teatro, e é por isso que os trabalhos de Ueda não se encerram sob a mera definição de entretenimento, de produto de design gerador de “fun”, são algo diferente, são obras de arte.

Design de jogo - a capacidade empática
No campo do design de jogo as obras de Ueda trabalham todas em redor dos NPC (personagens não jogáveis). Se em ICO tínhamos Yorda e em SOTC tínhamos Agro junto com os Colossus, aqui temos Trico. Em todos, temos a IA a dar vida aos NPC para que eles se tornem credíveis, mas acima de tudo para que eles proporcionem tudo aquilo que de jogo se trata. Se é da interação entre personagens que os jogos de Ueda vivem, é natural que os seus personagens tenham de ser não apenas bons, mas absolutamente perfeitos. Sim, não esqueçamos que é de arte que falamos, de uma representação do real, na qual os criadores podem recortar tudo aquilo que menos lhes interessa, mesmo que se trate de um jogo com ação passada em tempo real. Claro que para isso, foi preciso dotar Trico de um dos mais ricos repertórios de linguagem não-verbal que podemos encontrar no mundo dos videojogos.




Todos os seus movimentos foram criados, avaliados, e refinados até ao mais ínfimo detalhe para garantir um manancial comunicativo inestimável. Vai muito além de Yorda que na altura nos tinha tanto surpreendido. Diria que temos uma espécie de Yorda junto com um dos Colossus, mas imensamente mais vivo, mais, podemos dizer, humano. Mas se tudo isto é fascinante, mais ainda é quando percebemos que o propósito de tudo isso não é Trico, mas sim o nosso próprio personagem controlável, o Rapaz, atente-se nas palavras de Ueda que explicam:
“The main character is controlled by the player, so the main character is you, but because every single gamer is different, it’s very hard to give the player an exact definition of the protagonist: it’s up to you who the main character is going to be. As a developer, in order to form such a character you need assistance from that character’s surroundings – that’s where the role of the NPC, or opposite character in the case of our games, comes in. The secondary character helps shape the main character. That’s how we make our games.” Fumito Ueda 
Ou seja, Trico, tal como tinha acontecido com Yorda e Agro, comunicam em espelho aquilo que o protagonista sente, fazendo o jogador sentir-se como sente o protagonista. E é assim que surge toda a força do elemento que destaquei no início deste texto, a capacidade empática. E é exatamente aqui que TLG vai muito além dos seus antecessores, já que Trico é uma força da natureza, é verdadeiramente aquilo que o meu filho não parou de lhe chamar ao longo de todo o jogo, “o teu amigo”. E é por isso que me tenho rido sempre que leio pessoas a dizer que o TLG tem muitos problemas e bugs, nomeadamente no controlo de Trico. O que esses jogadores não perceberam é que Trico é um animal, um ser-vivo e não um robô, por isso nem sempre faz o que se lhe manda e isso é absolutamente brilhante.

Mundo história - Ambiente, Espaço e Arquitetura
Tudo o que vivemos com Trico, vivemos num mundo dotado de uma arquitectura absolutamente particular, que cria um ambiente distinto e imensamente atmosférico. Ou seja, um cenário de fantasia, fruto de uma grande mistura de variáveis próprias ao mundo de Ueda. Algo que é particularmente interessante, academicamente, já que Ueda tem dito em entrevistas, que estes mundos brotam apenas da sua imaginação, uma vez que ele dedica pouco tempo a procurar referências ou a viajar para conhecer locais. Inclusive, chegou mesmo a dizer nunca ter visitado um castelo, o que impressiona tendo em conta as estruturas presentes nos seus três jogos.

No entanto, e apesar de Ueda dizer tal, isso não corresponde completamente à verdade. Ao longo das várias entrevistas, e um pouco tirado a ferros, foi deixando cair algumas referências que entretanto Gareth Martin coligiu para a Eurogamer. Assim, e seguindo as pistas destacadas por Martin — três artistas, De ChiricoTrignacPiranesi — podemos compreender como pôde a imaginação de Ueda germinar mundos tão estranhos, impenetráveis, misteriosos, e acromáticos. A nossa imaginação trabalha por meio da nossa criatividade que só funciona quando plena de experiências, ideias e mundos. Do vazio só brota vazio.

"The Nostalgia of the Infinite", 1913, Giorgio de Chirico

"Le vieux pont", 1980, Gerard Trignac 

"La tour du pendu", 1981, Gerard Trignac

"The Man on the Rack", 1761, Giovanni Battista Piranesi


Para fechar, ainda que exista tanto e tanto para dizer sobre TLG, podemos numa primeira impressão sentir uma certa limitação na obra, nomeadamente na sua capacidade para ultrapassar as obras anteriores do autor. Inicialmente podemos sentir que TLG é mais uma atualização técnica que se socorre de um mesmo conjunto de mecânicas, valores e ideias, mas isto é algo que rapidamente se desvanece, porque a obra e o jogo deixam de o ser, dando muito rapidamente lugar ao sentir para com Trico. O mundo torna-se natural aos nossos olhos e à nossa ação, passando nós a estarmos ali, participantes de uma realidade fantástica, focados apenas naqueles personagens, nos seus desejos, motivações e bem-estar. TLG desenvolve uma experiência única, e estando em linha com as obras anteriores não deixa de ser completamente autónoma.

dezembro 16, 2016

Instintos da violência

Trago uma curta-metragem francesa que ao longo de 15 minutos me fez regressar ao passado, mais propriamente a meio da década de 1990, altura em que saiu um dos filmes mais emblemáticos da cinematografia francesa dessa década. A opressão de quem vivia nos bairros sociais de Paris, nos HLM, palcos da cultura underground do momento, alimentava a cena musical, de onde emergia o rap francês, tendo sido plasmado o seu auge em "La Haine" (1995) de Mathieu Kassovitz.




Passados 21 anos, Karim Boukercha revisita o filme original, numa tentativa de perceber o que mudou desde então, se é que algo mudou! "Violence en Réunion" (2016) apresenta Vincent Cassel, na altura um desconhecido, hoje uma estrela internacional, como Vinz, o personagem principal de "La Haine". Para alguns, a curta é uma espécie de "La Haine 2".

O mais relevante da curta, que se pode descortinar a partir do título, é que se na altura de "La Haine", muito se discutiu sobre a violência, as suas origens, motivações e explicações, acaba sendo aqui totalmente posta a nu, sem qualquer tipo de pejo, nem pudor, o seu problema base, ainda que os adjetivos surjam em defesa e atenuação.


"Violence en Réunion" (2016) de Karim Boukercha

dezembro 10, 2016

“Stranger in a Strange Land” (1961)

Cada vez me convenço mais que os livros de maior sucesso, que vendem milhões, são livros que as pessoas compram com múltiplos fins, excepto o da sua leitura. “Stranger in a Strange Land” parece-me ser um desses casos. Um livro que se apresenta como de Ficção Científica, mas que de científico tem zero, e que deveria antes apresentar-se nas prateleiras das “Ciências” do Esotérico.


A razão porque vendeu tanto é, em parte, explicável. Saiu em 1961, passou totalmente despercebido. Apesar de receber o prémio Hugo em 1962, as várias análises da época foram bastante destrutivas, e o livro acabou por passar ao esquecimento. Em 1968 com o ressurgimento em força do Programa Apollo da NASA, com o lançamento do primeiro americano no espaço, o livro foi reeditado, mesmo a tempo da loucura que seria o ano 1969 com a chegada à Lua. E é assim que o livro acaba a ser o primeiro livro de FC a entrar na lista do The New York Times Bestsellers, ultrapassando a marca dos 100 mil livros vendidos. Desde então, o facto de ter sido o primeiro livro FC bestseler do NY tem servido fortemente a promoção levando-o a vender mais 5 milhões.

Por mais mal que se diga, se o livro vendeu bem e ainda por cima tem um prémio Hugo, o mais importante da FC, alguma coisa deve existir no livro. Foi isto mesmo que também pensei, contudo, nem sempre os prémios tudo explicam, mais ainda no caso do Hugo que na altura ainda nem 10 anos tinha de existência. Depois, Heinlein na altura era já um grande nome do meio, com uma grande quantidade de contos publicados e alguns livros. Aliás Heinlein costuma surgir ao lado de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke como os três grandes da ficção literária de FC. Contudo, só o consigo equiparar em pioneirismo, tudo o resto deixa muito a desejar, basta pensar no livro que precede este, "Starship Troopers" (1959).

Vejamos então ao que vem “Stranger in a Strange Land”. A premissa surgiu de uma ideia da sua esposa, Ginny Heinlein, depois de ler “The Jungle Book” (1894) de Rudyard Kipling. A ideia assentaria numa personagem que em vez de ter sido criada por animais, teria sido criada por marcianos. Uma premissa que se parece estimulante à partida, peca por um problema de base, a ausência de qualquer conhecimento sobre marcianos. Se no Livro da Selva, Kipling procura fusionar as características dos animais com as dos humanos, no caso de Heinlein, não existindo marcianos, resta-lhe fusionar humanos com humanos.

Assim sendo, e de modo a minorar a desconfiança do alcance do seu texto, Heinlein vem dizer que na verdade não tinha feito um livro de ficção científica, mas antes uma “sátira sociopolítica sobre o sexo e a religião na cultura contemporânea”, com o que mais concordo. Na verdade já tivemos algo parecido no passado, naquele que é hoje tido como o primeiro livro de FC, “As Viagens de Gulliver” (1726), e que Heinlein cita a meio do seu livro. Então o que os diferencia? Em essência, a ciência.

Como Heinlein não usa qualquer base científica sobre a potencial vida em Marte, ou qualquer outro planeta, o que nos apresenta limita-se a dois mundos idênticos, com ideologias políticas distintas. Mas percebendo a insuficiência desse embate, e seguindo Swift, que coloca em confronto ideias sociopolíticas, mas a partir de posicionamentos distintos (pessoas muito pequenas, pessoas muito grandes ou pessoas racionalistas), Heinlein vai optar por embarcar no oposto, e gisar os marcianos enquanto pessoas esotéricas, desenhando toda uma sociedade baseada no misticismo, superstição e inexplicável, fazendo mesmo uso da astrologia para conduzir muito do seu enredo.

Só isto seria suficiente para atirar o livro por terra, mas é todo o restante enredo que é também tão pobre e subdesenvolvido. Temos um adulto de 25 anos que nasceu em Marte, mas filho de humanos que para lá viajaram numa nave. Esta pessoa vai depois apresentar poderes de telepatia e telecinese, apesar de biologicamente ser um simples humano que viveu toda a vida em Marte. Ou seja, Heinlein não consegue delimitar o seu trabalho, passando entre o social, o psicológico e o físico como se tudo fosse igual. Acabamos por perceber porque assim é, o foco do seu interesse nunca foi os marcianos, mas antes e só projetar os seus ideais sociais, defender por meio de uma historieta, uma quantidade de banalidades, pseudo-filosóficas, sobre a religião e o sexo, apresentando assim uma espécie de sociedade pré-New Age.


Para agravar tudo isto, o livro inicial tinha sido fortemente editado e reduzido em mais de 60 mil palavras, mas depois de Heinlein morrer a sua esposa encontrou a versão não editada, e resolveu publicá-la, dizendo que era a versão em que o marido sempre tinha acreditado. Assim, para quem quiser ler hoje estas desventuras, tem de sofrer mais uma centena de páginas em que nada acontece, a não ser montes de diálogos inconsequentes, em que se discutem banalidades do quotidiano, e que podem sim, servir a quem quiser traçar os hábitos à época, anos 1960, apesar do livro supostamente ser passado no futuro.

dezembro 07, 2016

“Inside”, uma obra incontornável

"Inside" é uma obra dotada de imensa maturidade que assenta numa enorme consciência do que é um videojogo, ao que se junta uma vasta cultura artística áudio/visual/ficcional, e por fim grande competência criativa no modo como constrói a integração do todo. Dito isto, existe imenso para analisar num jogo com este alcance, do que tentarei dar aqui conta, apenas à superfície, de alguns dos elementos que considero mais relevantes, mas acreditando e esperando ver algumas teses de mestrado futuras sobre o mesmo. Assim, e independentemente da dimensão que ocupa num disco duro, ou do tempo que se leva a terminar, se não for Game of the Year ombreará de muito perto.






:: Design de jogo
“Inside”, tal como “Limbo”, funcionam mais como walking simulators, com a particularidade de se apresentarem através de um ponto de vista único, na forma de sidescroller, ao que se adiciona um conjunto de obstáculos, na forma de puzzle, sendo que a sua essência reside no ambiente, e na história contada por este. Ou seja, falamos aqui fundamentalmente de environment storytelling. Neste campo, ambas as obras são virtuosas, assentes num minimalismo soberbo, capaz de conferir todo uma imensidão de significados, algo ainda pouco trabalhado na arte dos videojogos. Arnt Jensen, o diretor de ambas as obras, vem de um país com forte tradição no campo, apesar de no cinema, podendo inspirar-se em autores como Carl T. Dreyer, Lars Von Trier ou Joachim Trier.

O design pode ser analisado a partir de um particionamento do jogo em quatro categorias — Ambiente, Personagens, Eventos, Obstáculos — estando o design mais focado nos obstáculos (puzzles), mas não podendo separar-se dos restantes elementos. De modo que apesar de Arnt Jensen dirigir, encenar, tem de o fazer sempre em cocriação com o lead designer, Jeppe Carlsen.

Se adoro tudo o que engloba, dos ambientes aos eventos, no caso dos obstáculos surgem-me algumas resistências. Porque se temos de admitir que os mesmos são desenhados com enorme perspicácia, totalmente embebidos no ambiente, são parte, nunca surgem como extrínsecos, nem sequer extemporâneos, fica-me um certo amargo de falta de conexão com os eventos. Ou seja, os obstáculos são desenhados na sua relação com o ambiente, e nesse campo funcionam muitíssimo bem, acabando por se dar à personagem de forma lógica e coerente, contudo contribuem muito pouco para a definição dos eventos. Reduzem-se a meia-dúzia, os obstáculos que realmente produzem eventos, narram, dão conta daquilo que o ambiente desesperadamente tenta dar conta quase sozinho. As exceções vão para os tipos de morte que sofremos, nomeadamente quando atacados por forças do mundo, ou quando ativamos e controlamos algo supostamente “inteligente” desse mundo, embora neste segundo grupo surjam também imensas estruturas inconsequentes do ponto de vista narrativo.

Isto não minora o design de jogo que a partir do que digo, sobre a relação com o ambiente, é brilhante. Podia realmente conseguir uma maior sintonia narrativa, mas aqui admito que os posicionamentos quanto ao que um jogo, um filme, e uma história interativa devem ser, possam distanciar-se. Ou seja, o design de “Inside” é ele próprio uma mina de perspetivas de análise, podendo variar imenso o que se interpreta em função do ponto de partida, se procuramos mais narrativa ou mais jogo. Apesar de “Inside” pouco espaço dar a um posicionamento exclusivo de jogo, mesmo que o seu criador diga que não está focado na narrativa, o que só por si daria toda uma outra discussão sobre a artes e os processos criativos. E seguindo esta possibilidade, foco no ponto seguinte a arte de “Inside”.

:: Arte Visual
Mais uma vez falando também de “Limbo”, a arte é extraordinária no campo da ilustração, pode-se dizer que em certos quadros falamos mesmo de pintura, em que o propósito de comunicar uma ideia é ultrapassado, deixando espaço aos criadores para se incluírem a si próprios no trabalho final. São os cenários que criam os ambientes que acabam por dar vida ao mundo narrativo. Ambos os jogos trabalham agarrados a uma técnica da pintura, que o cinema em tempos também recuperou, o chiaroscuro, uma técnica cara a Caravaggio, que contribui para a criação de mundos, pintados, que formam uma espécie de duas dimensões que se entrechocam: o da presença de luz, e o da ausência dessa luz.

Mas existe todo um campo da arte de jogo em que “Inside” vai muito além de “Limbo”, é o da animação, nomeadamente da câmara e do personagem principal, a cargo de Andreas N. Grøntved com a contribuição visual de Morten Christian Bramsen. A câmara, apesar de condicionada pela perspetiva 2D, trabalha imenso com a profundidade, muito graças aos cenários tridimensionais. Assim, e por via da animação da câmara, a interação que se desenha sempre num plano bidimensional, ganha um escopo tridimensional. Não raras vezes o plano 2d surge em diagonal e profundidade, e a câmara segue, ao que se junta todo um enorme trabalho de cenarização para criar efeitos de parallax e assim construir uma ideia de mundo completo e vivo. No entanto todo este poderio técnico nunca se torna centro de si próprio, surge sempre ao serviço do que se pretende mostrar ou fazer.

Mas se a câmara surpreende, o personagem principal é o verdadeiro ex-libris da animação. Sendo a sua forma visual tendencialmente abstrata, desde logo pela ausência de cara, é na linguagem corporal, essência animada, que tudo se joga, literalmente. Bastam poucos segundos de contato com o gamepad e o jogo, para percebermos que não se trata de um simples personagem do sidescroller tipo. A forma como salta, agacha, cai e quase cai, espreita, pega em objetos, toca em superfícies, nada, vira frente/trás, ou cai morto, é absolutamente impressionante. Não se trata de mero movimento, nem sequer de criar a impressão de vida, é muito mais do que isso, é pura comunicação, é a expressão de pensamento e sentimento. Sendo a animação grandemente responsável por grande parte do relacionamento que vamos criando com esse personagem. Para quem quiser deter-se mais neste ponto, deixo a ligação para um conjunto de gifs recolhidos pelo Rock Paper Shotgun que servem bem uma análise inicial, não invalidam jogar para experienciar interativamente as animações.

:: Arte Sonora
Este campo costuma dividir-se, de forma bastante acentuada, entre o design de som e a música, contudo no caso específico de “Inside” essa divisão não nos oferece grande proveito, uma vez que a fronteira é ténue, sendo o diretor de ambas a mesma pessoa, Martin Stig Andersen. Diria que a principal razão para tal assenta no minimalismo musical. Assim, não raras vezes damos por nós na dúvida se o som que ouvimos é melodia de fundo, ou faz parte do universo em que estamos incluídos, já que raramente esta se destaca do fundo narrativo. Para isto contribuí imenso o desenho de sonorização dos espaços, que de algum modo se vai misturando de forma muito imbricada com o score. Desde os ruídos emitidos pela maquinaria, aos ruídos emitidos pelo personagem, o áudio parece mais um todo, do que a tradicional pista musical, sobre a qual se trabalham efeitos de som.

Esta fusão não surge sem um propósito, é minimalista, mas não é só isso, o minimalismo áudio procura, dada a sua influência emocional, seguir o minimalismo da escrita, daquilo que a obra tem para dizer. E é disso que falo no próximo ponto. Deixo ainda sugestão para quem quiser mais sobre esta parte de uma entrevista dada ao Kill Screen.

:: Arte Ficcional
Optando Jensen por dizer de forma tão pouco explícita ao que vem, dentro e fora da mesma, já que raramente dá entrevistas, ou quando dá evita explicações, toda a estética se sintoniza com esta abordagem. “Inside” é extremamente contido no que diz, cria quadros de ideias, mas não os liga causalmente de forma evidente, nem se detém nunca para explicar, explanar, ou expor argumentos. Opta por apresentar uma ideia geral, macro, a partir da qual escalpeliza alguns eventos, coloca o jogador no centro dos mesmos, via interatividade e inferência, e depois espera que seja o jogador a preencher os espaços deixados vazios, propositadamente, com as suas experiências do mundo. Ou seja, a história não está fechada: um mundo é apresentado e um personagem introduzido. Na progressão do jogo percebemos como evolui o nosso personagem, que vai ganhando capacidades que o separam do mundo inicial e o aproximam do estranho mundo em que entrámos (“Inside”), mas cabe ao jogador, recetor, definir exatamente que mundo é esse (estamos “Inside” de quê), o que representa, o que quer dizer!

Não existe uma única forma de interpretar o que nos é apresentado, e por isso cada um poderá ver diferentes significados no mundo narrado pelo jogo. Como disse, e dizia Eco no seu “Obra Aberta” (1962), o mundo que lemos e vemos, é o mundo apresentado conjugado com o mundo de que somos feitos. Ou seja, para quem tiver lido, e vivido, obras como “Brave New World” (1932), “Animal Farm” (1945) ou “1984” (1949) representará, ainda que próximo, algo diferente de quem tiver lido obras como “The Simulacra” (1964) ou “Neuromancer” (1984), ou ainda tiver visto filmes como “The Thirteenth Floor” (1999) ou “Matrix” (1999), ou ainda de quem tiver seguido filmes como “Dark City” (1998), “Prometheus” (2012), e claro “Existenz” (1999). Para quem não tiver lido/visto nada de Ficção Científica, representará algo distante de muito disto, dependente do tipo de mundo que contém dentro de si. Apesar de tudo, “Inside” não deixa de se inclinar para a distopia, para uma melancolização em redor do progresso tecnocientífico. E fá-lo de forma erudita, minimal e profundamente coerente.

Ficha técnica

Dito tudo isto, concordo com o Rui Craveirinha quando diz que “Inside acaba a ser um marco para o género da ficção científica videolúdica”, e vou mais longe, é um marco da Ficção Científica, enquanto género ficcional. Um género que começou pela literatura, ganhou toda uma nova dimensão no cinema, mas de há alguns anos para cá, tem encontrado no meio dos videojogos um espaço de cada vez maior relevância (recordemos por exemplo "SOMA" do ano passado).

dezembro 01, 2016

"Virginia" (2016)

Uma experiência de grande envolvência, fundamentalmente graças à ilustração, cinematografia e música. Contudo acaba por falhar em termos do desenvolvimento narrativo e da interação, e se a mensagem se perde por entre a abstração e o surrealismo, a interação nunca chega verdadeiramente a surgir. Apesar disso, é mais um passo em frente no experimentalismo com a linguagem dos videojogos.





“Virginia” não se arroga por inovar ou experimentar o novo, já que assume a total inspiração em “Thirty Flights of Loving” (2012), contudo, ao transformar uma experiência reduzida de 15 minutos numa experiência com a duração de um filme regular, 100 minutos, vê-se na obrigação de experimentar novas abordagens, de experimentar e tentar fazer funcionar algo que era apenas mero conceito.

“Thirty Flights of Loving” e “Virginia”, socorrem-se de estruturas padrão do contar de histórias cinematográficas para desenvolver os seus modelos experimentais de jogo. Daí que o posicionamento de câmara surja sempre forçado e fortemente restringido. Por outro lado, o modo como ambos usam a montagem dá-lhes todo um sabor estético raramente presenciado noutros videojogos, capaz de intensificar bastante a sensorialidade de toda experiência. Também, ambos trabalham as suas mensagens com recurso a um surrealismo com fortes pontos de contactos com o realismo, aproximando-se totalmente de um discurso que tem sido cunhado nas últimas décadas por David Lynch.

Em termos visuais, “Virgina” é absolutamente espantoso, não só a montagem mas nomeadamente a arte gráfica, com uma palete de cores vibrante que contrasta com a modelação quase low-poly. É fácil entrar no mundo criado e deixar-se ficar aí, mesmo quando não entendemos o que o jogo nos está a querer dizer. O universo visual é tão intenso e doce que só pensamos em continuar, seguir em frente, na esperança de encontrar a chave que descodifique tudo aquilo em que nos vamos deixando envolver. Confesso que no final pouco percebi do que ali vivi, mas a sensação de ter experienciado um mundo particular, distinto e belo não me permite sentir qualquer arrependimento do tempo investido.

Por fim, e sobre a interação. Apesar de ser um grande defensor dos walking simulators, considero que a linha do walking simulator é aqui ultrapassada, aproximando o objeto muito mais de uma animação interativa. A razão baseia-se no facto de não existir verdadeira agência, ou seja, não são dadas opções ao interator, e não falo de diálogos ou história, mas de espaço, de estratégia, ou até de jogo. Tudo o que se pode fazer é apenas carregar em Play e Pausa. Tudo o que apresenta propriedades interativas, são na verdade propriedades reativas à espera de serem meramente ativadas pelo jogador. Nunca o interator é chamado a refletir sobre que faz e/ou porque faz. Deste modo, não temos jogo, não temos história interativa, nem sequer temos mundo interativo, temos antes animação interativa, um artefacto de animação que nos permite, a tempos, atuar sobre os cenários da animação.

Natal com Wes Anderson

Wes Anderson volta à publicidade para criar uma curta de Natal absolutamente deliciosa, para a H&M. Neste pequeno trabalho o que mais me impressiona é ver como a marca autoral de Anderson transpira em toda a estilística do trabalho, desde a direcção dos atores ao design dos ambientes, passando pelo design de som e claro, todo o tratamento do tema.




A curta conta com Adrian Brody como chefe maquinista e líder de um grupo de pessoas sui generis que se dirigem para as suas festas de Natal, mas que por motivos de um atraso inesperado terão de o passar juntos no comboio. São apenas 4 minutos, mas Anderson consegue a nossa atenção durante todos os segundos, fazendo esquecer totalmente a marca publicitária. Mas será mesmo assim? Na verdade a marca surge apenas no início e no final, mas até que ponto não perdurará nas nossas cabeças, como a marca que permitiu a criação desta belíssima obra? E se assim é, não servirá na manipulação dos nossos sentimentos da próxima vez que tivermos de escolher entrar na H&M ou noutra qualquer loja de roupa?!

"Come Together" (2016) de Wes Anderson