“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.
A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.
Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.
Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.
A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.
Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.
Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.
A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.
Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.
Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.
O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.
O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.
Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.
Na generalidade,
“Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.