1400 páginas depois, sinto que conheço melhor Aomame e Tengo, assim como Murakami, sinto que estes se encontraram e para eles valeu a pena, mas sinto que me falta algo. "
1Q84" é uma viagem longa mas que nunca nos entedia, porque progredindo sempre, ainda que a um ritmo calmo, embora dificilmente possamos dizer que nos marca, que se afunda em nós. Murakami desenha a partir do clássico motivo de enredo, “rapariga encontra rapaz”, uma viagem melancólica e indiferente, bem ao estilo daquele que considera ser o seu realizador de cinema preferido,
Aki Kaurismäki.
No ano de 1Q84, (a sonoridade da letra Q em japonês pode confundir-se com o número 9), Aomame e Tengo que não se vêem há 20 anos, estão enamorados, porque quando tinham 10 anos, numa sala da sua escola primária, deram as mãos brevemente mas de forma sentida. Este motivo vai ganhado peso com o passar das páginas, e ao aproximar-se do final do livro torna-se central, criando um momento mágico potenciado pela vastidão de páginas já lidas, geradoras de expectativa e ânsia. Um momento que me fez sair do romance e vaguear dentro de mim, tendo ido parar ao universo de “
ICO” (2001), o videojogo em que o rapaz e a rapariga passam quase todo o tempo de mãos dadas fugindo de um mundo hostil.
O melhor advém das múltiplas histórias que enredam toda a linha narrativa central. Não que o livro tenha muitos personagens, aliás para a sua dimensão são poucos até, mas as histórias estendem as suas motivações muito além do esperado: desde o espiritual ao fantástico, do sexual ao familiar, do intelectual ao violento. Nem todas são boas, mas nenhuma se pode dizer que deveria ter ficado de fora. Algumas são absolutamente excelentes, fazendo o livro vibrar dentro de nós, nomeadamente a história do pai de Tengo e o encontro entre o líder espiritual e Aomame. Admito que me incomodou por vezes as descrições, ou melhor repetições um tanto obsessivas de carácter mais sexual e sensual (nomeadamente a mania com o tamanho dos seios), embora aceite que fazem parte da descrição de um universo que se quer dar a ver, mas quando enfatizadas parecem ganhar todo um outro conjunto de leituras.
Lendo Murakami facilmente se percebem as razões do seu sucesso, por um lado a escrita escorreita, muito simples, pouco dada a experimentalismos ou inovação, o que me faz sempre questionar de onde virão as constantes menções a Nobel, já que não se vislumbra como. Por outro, e talvez o mais importante, o trabalho temático que opera uma ligação promíscua e fácil entre a cultura japonesa e a cultura europeia/americana. Murakami usa o Japão como espaço geográfico, mas preenche-o de cultura ocidental, desde Chekhov a Dostoiévski, passando por Kubrick ou Orwell, ou ainda Proust, Shakespeare ou Carroll tudo isto envolvido por sinfonias e concertos de grandes mestres europeus.
Se juntarmos a este caldo cultural, as discussões existenciais com que os seus personagens amiúde se debatem, percebemos facilmente porque Murakami é tão querido junto das camadas mais jovens. Ao longo das páginas todos os personagens, sem excepção, parecem dotados de uma espécie de curiosidade intrínseca sobre o mundo, questionando continuamente o sentido do tempo, da mudança, do ser consciente e da realidade que os envolve. Se os adolescentes sentem aquelas palavras e questionamentos seus, muitos outros já não adolescentes, recolhidos sobre si, questionando-se sobre o seu lugar neste labirinto a que chamamos vida, sentem aqui também ecos do seu interior.
1Q84 apresenta provavelmente um número excessivo de páginas, não por prolongar o romance desnecessariamente, mas antes por se repetir em excesso. Não raras as vezes damos por nós a avançar linhas em diagonal porque já sabemos o que estará ali escrito. Murakami repete, não poucas vezes, as mesmas acções sem alteração, vistas por diferentes personagens. Mais, repete não raras vezes momentos chave do livro, como se tivesse necessidade de recordar o leitor, de garantir que este está alerta para o que ele quer dizer a seguir. A redundância é uma técnica necessária em seriado, mas, e ainda que o livro seja grande, não faz muito sentido a este nível. De certa forma é como se o autor menosprezasse as capacidades e o envolvimento do leitor.
Um último ponto, não me incomodou propriamente que Murakami deixasse muitas questões sem resposta - quem é o “povo pequeno”? quem andava a bater às portas a fazer-se passar por cobrador da NHK? que foi feito da “verdadeira” Fuka-Eri?, etc. etc. - já que o fechamento do romance entre Tengo e Aomame está tão bem conseguido que nos leva totalmente ao esquecimento desses nós narrativos. Mas a verdade é que ficam suspensos no ar, como que se mais uma vez Murakami desprezasse os seus leitores, achando-se acima dos domínios narrativos da causalidade. Podemos até tentar justificar esta opção como um motivo estético pós-moderno, mas dificilmente se enquadra no resto da estética que se serve da clássica progressão causal para envolver e manter o leitor interessado até à última página.
Posto tudo isto, não é de estranhar as análises mistas que se podem ver a "
1Q84", com muitos a questionarem-se sobre o que dizer sobre tudo o que acabaram de ler. O esforço pedido por Murakami, em termo de páginas, é grande, e em certa medida parece que as pessoas querem atribuir um sentido válido a esse esforço, pelo respeito que o autor lhes merece, mas as dificuldades em fazê-lo são mais que muitas.
Versão: 3 volumes, editado pela Casa das Letras, com tradução de Maria João Lourenço e Maria João da Rocha Afonso.