"Lady in the Lake, smoking joints, eating mushrooms, reading books about life after death ['The Tibetan Book of the Dead']" [fonte]Só faltou referir o aspecto visual de 2001: A Space Odyssey (1968) de Kubrick e Trumbull, para termos o conjunto completo. Lady in the Lake (1947) foi o primeiro, e continua a ser o único, filme inteiramente filmado em primeira-pessoa. Aqui Noé começa na primeira-pessoa, ao fim de algum tempo passa para terceira-pessoa, e passado algum tempo passa para aquilo que nos videojogos definimos como god mode, vista de cima do todo. Muitas das cenas do filme parecem totalmente impossíveis de conseguir, algumas bastante mundanas, como a da casa de banho, mas impressionam quem sabe que naquele espaço delimitado seria impossível colocar uma câmara. Daí que o filme seja todo um universo visual fabricado, mas ao ponto de ser perfeitamente credível. São 2h41m de movimento de câmara, sem pausas nem interrupções, é de tirar o fôlego. Impressiona como Noé nos leva ao longo de tanto tempo, sem nos darmos conta dos minutos que passam, porque nos sentimos tão envolvidos, tão próximos, como se aquela câmara, fossemos nós ali mesmo, a olhar para a realidade.
Noé faz neste filme aquilo que foi sonhado já muitas vezes por críticos de vanguarda como André Bazin ou Chris Marker, a propósito do poder do cinema, da sua capacidade para dar a ver, da sua força expressiva para ilustrar ideias, para comunicar por imagens. É toda uma nova linguagem que temos aqui, profundamente visual, expressiva e ao mesmo tempo tão narrativa. Noé, elevou o cinema a um novo patamar. Nunca antes a primeira-pessoa tinha sido utilizada desta forma tão capaz de comunicar connosco. Lady in the Lake falha, porque apesar de utilizar a primeira-pessoa, narrativamente fá-lo de um modo convencional. Noé, criou toda uma nova gramática para fazer uso desta perspectiva. Para suportar a subjectividade visual, usa a câmara colada ao pescoço do personagem, como nos videojogos, e usa incansavelmente o god mode. Para além disso, usa um artifício narrativo essencial, o protagonista é suportado por um co-protagonista, companheiro emocional, a irmã. Sem isto, seria difícil chegar ao âmago da emocionalidade do protagonista, e claro do filme. Porque tal como em Lady in the Lake, raramente vemos a cara do protagonista, e por isso dificilmente nos conseguimos projectar sobre ele, a empatia seria difícil, se não impossível sem a irmã. Basta pensar no acidente que aparece ao longo do filme várias vezes, para perceber a importância do papel da irmã.
Relativamente à história, Noé parece ser muito directo no que quer dizer, e nem sequer o esconde por detrás de simbolismos, como por exemplo podemos ver Leos Carax fazer. O filme introduz-nos de imediato ao que vem, apresentando-nos ao Livro Tibetano dos Mortos, e chega mesmo a fazer uma breve um introdução ao seu essencial por meio de um personagem. O filme abre-se, é narrativo apesar de todo o ultra-experimentalismo a que podemos assistir. Dificilmente poderíamos ter tido um objecto tão perfeito como este, capaz de segurar de um lado a essência do storytelling, com causa-efeito coerentes, e ao mesmo tempo tanto deslumbre técnico-visual, que poderia quase por si só sustentar todo o filme, como tantos ousaram no passado fazer.
Noé leva-nos através de uma viagem filosófica sobre a vida. Sustenta as suas teses na visão budista do corpo e mente, e dá-lhes corpo por meio de drogas alucinogénicas, as únicas capazes de abrir as nossas "portas da percepção" segundo Aldous Huxley (1954). Jim Morrison tinha-se encarregado de verter as portas da percepção para poemas e música. Agora Noé conseguiu materializar essa ideia em imagem, e mostrar finalmente de que são feitas essas portas, por meio do cinema.