maio 08, 2013

a Forma das Histórias

Kurt Vonnegut foi um reconhecido autor americano - Cat's Cradle (1963), Slaughterhouse-Five (1969) - para além disso tornou-se conhecido também no âmbito dos estudos narratológicos pelo trabalho que dedicou a tentar compreender o modo como construímos histórias. Num curto vídeo de uma conferência sua, transcrita no livro A Man Without a Country (2005) sob o título Here is a lesson in creative writing, podemos ver Vonnegut desenhar as formas clássicas das histórias.

Visualização das formas de Vonnegut por Maya Eilam

Fica bastante claro até pela forma como Vonnegut vai explicando as formas, que estas não são uma originalidade criativa, antes fazem parte do modo como a nossa biologia necessita delas, tal como discuti recentemente num artigo na Eurogamer sobre Memória da Experiência. Razões da estrutura do storytelling (2013). Daí que o mais relevante para mim em tudo o que é dito nesta conferência e que torna tudo isto ainda mais interessante para o storytelling moderno, fica expresso quando Vonnegut diz: "não há nenhuma razão para que as simples formas das histórias não possam ser introduzidas num computador". Realmente, com curvas narrativas tão simples, porque é que então os computadores ainda não conseguem gerar novas histórias? Aliás, por isso mesmo é que me ri esta semana quando li uma notícia do NYTimes em que uns iluminados da análise de dados estão a ajudar a hollywood na descoberta da fórmula de sucesso para os seus filmes.

Infografia "Vonnegut: Simple Shapes of Stories" de David K Yang [Visual.ly]

A primeira forma traçada e descrita como "Man in Hole" é aquela que acaba por dar corpo a todas as outras formas. Deixo a descrição de Vonnegut sobre o modo como essa forma surge, e vejam o vídeo a seguir.
"Now let me give you a marketing tip. The people who can afford to buy books and magazines and go to the movies don’t like to hear about people who are poor or sick, so start your story up here. You will see this story over and over again. People love it, and it is not copyrighted. The story is ‘Man in Hole,’ but the story needn’t be about a man or a hole. It’s: somebody gets into trouble, gets out of it again. It is not accidental that the line ends up higher than where it began. This is encouraging to readers."
Conferência Shapes of Stories de Kurt Vonnegut

Apesar do vídeo terminar com a forma de Cinderela, no livro Vonnegut descreve ainda a linha de Metamorfose de Kafka e Hamlet de Shakespeare. Podem ver essas linhas no Brain Pickings da Maria Popova. Além destas podemos ainda ver a teoria aplicada aos conceitos criacionistas, ou ainda aos testamentos bíblicos realizado por Maya Eilam a partir dos trabalhos de Vonnegut.

maio 07, 2013

Ray Harryhausen (1920-2013)

Hoje morreu Ray Harryhausen uma das mentes brilhantes dos efeitos especiais da arte cinematográfica. Em homenagem deixo aqui uma parte do texto que lhe dedico no livro Emoções Interactivas (2009:96-99). No livro além desta breve história do seu trabalho, analiso mais extensamente a cena da luta de esqueletos de Jason and the Argonauts (1963).

Jason and the Argonauts (1963)

"A carreira cinematográfica de Harryhausen, propriamente dita, começa com Mighty Joe Young em 1949, uma espécie de sequela de King Kong, filme no qual O’Brien supervisionava os Efeitos Visuais e terá dessa forma pedido a Harryhausen  para integrar a equipa de animadores. Harryhausen começava assim a sua carreira profissional pelas mãos do mestre, demonstrando um verdadeiro talento para o stop-motion e acabando por ser ele próprio, sozinho, a concretizar cerca de 85% da animação total do filme. O’Brien que, após King Kong, poucas mais oportunidades terá tido para desenvolver o stop-motion, relegava assim para o seu aluno Harryhausen, a tarefa de desenvolver e aperfeiçoar uma arte em que ele praticamente tinha sido o pioneiro. Mighty Joe Young, foi um sucesso popular, chegando mesmo a receber o Óscar de melhores efeitos visuais em 1950, o que possibilitou a Harryhausen aspirar a uma verdadeira carreira nos efeitos visuais.


Harryhausen animando Mighty Joe Young (1950)

Em 1953, após a exploração espacial de George Pal, Harryhausen trouxe a ficção científica de novo à Terra, adaptando um conto de FC do seu grande amigo Ray Bradbury, The Beast from 20,000 Fathoms, 1953. Um filme que marca o início de destruições massivas no currículo de Harryhausen, começando aqui pela cidade de Nova York. Em 1955, a destruição chega a São Francisco em forma de Octopocus. O filme chamava-se It Came From Beneath, 1955. De forma a cortar nos custos, Harryhausen desenvolve um polvo com apenas seis patas. Dessa forma poupou imenso trabalho e tempo na animação das patas do Octopocus e o único constrangimento que teve foi, não poder deixar o monstro sair totalmente de dentro de água na sequência em que este destrói a ponte Golden Gate. Já em 1956, a devastação continuava na mente de Harryhausen, trazendo agora a destruição até Washington D.C. pelas mãos de extraterrestres. Earth Vs. The Flying Saucers, 1956 vai criar os cânones para a representação de naves extraterrestres no cinema, de tal forma que passados quase 40 anos, Tim Burton continuará a usar a mesma forma de representação em Mars Attacks, 1996. Em 1957, Harryhausen faria a ultima incursão no reino da destruição com 20 Million Miles to Earth, 1957 curiosamente a primeira destruição fora do território americano, talvez por já pouco restar para destruir nos Estados Unidos! Sendo desta vez o alvo, o Coliseu de Roma em Itália e o monstro um ser alienígena trazido por uma viagem de regresso à terra. 20 Million Miles to Earth fecha assim um ciclo de filmes que se enquadram na perfeição na idade da “Imaginação do desastre” que Sontag descreveu. Harryhausen confessa mesmo que a determinada altura se sentiu acossado pela onda de destruição em massa, tudo nos seus filmes era destruição.



Tinha destruído praticamente todas as cidades importantes americanas – Nova Iorque, São Francisco,Washington D.C - sentia necessidade de mudar, de abandonar conceitos destrutivos. A construção de sonhos foi a sua visão seguinte. É assim que chega em 1958 a The 7th Voyage of Sinbad, uma clara mudança no estilo de Harryhausen. Para além de uma mudança, será uma entrada em grande no mundo dos mitos, e com um sucesso tal que o levaria à concretização de mais três sequelas. A fantasia continua com The 3 Worlds of Gulliver em 1960, passando por Mysterious Island, 1961, uma sequela de 20,000 Leagues Under the Sea. Chega finalmente o ano da consagração de Harryhausen, com Jason and the Argonauts, 1963, uma entrada directa para dentro do verdadeiro universo do fantástico, a mitologia grega, entrada que voltaria a repetir com o último filme da sua carreira The Clash of Titans em 1981.


Para Harryhausen, “a essência da fantasia é transformar a realidade em imaginação”, ou seja, ele vê o seu trabalho como uma porta para o imaginário. Ao criar animação, ele pretendia desenvolver um universo tal, apenas reconhecível numa perspectiva de sonho. Harryhausen fez o último filme em 1981 e em 1982, surge Tron da Disney. Talvez a aparição de Tron tenha levado Harryhausen a desistir de uma arte, que de alguma forma se revelava incapaz de lutar em pé de igualdade contra uma indústria tão poderosa como os gráficos por computador que, por sua vez, davam sinais fortes de domínio, através de aumentos sucessivos nas capacidades de produção de fotorealismo. No entanto, apesar dessas capacidades, Harryhausen considera ainda hoje, que a arte por detrás do stop-motion é a única capaz de fazer verdadeira justiça ao reino da fantasia. Nas suas palavras, “a fantasia é o mundo do sonho, e o stop-motion, não sendo completamente realista, consegue dar o extra que aproxima a imagem do sonho”.

Para as referências e notas de rodapé consulte o livro Emoções Interactivas (2009). 

maio 06, 2013

uma segunda leitura

Wreck-It Ralph (2012) surpreendeu-me completamente, se na primeira vez que o vi fiquei com a ideia de que o filme era meramente bom, mas tinha ficado aquém das expectativas mais adultas, num segundo visionamento comecei a encontrar coisas que não me tinha dado conta inicialmente. Estranho porque o segundo visionamento de um filme meramente bom, costuma perder em termos de experiência. Wreck-It Ralph não só não perde, como ganha, abrem-se novas camadas de significado. Claro que tudo isto funcionará apenas para os amantes de videojogos que possuem o background para descodificar esses significados.

“Eu sou mau e isso é bom. Nunca serei bom e isso não é mau. E não gostava de ser de outra forma.”

Essencialmente o filme passa-se no interior de máquinas de salão de jogos, algo que já tínhamos visto em Tron (1982). Mas o interessante é que aqui as personagens ganham vida, no sentido em que expressam o que pensam e sentem. Verbalizam traços da sua personalidade e identidade, expressam sentimentos sobre os companheiros de jogo, sobre os seus problemas e alegrias. Gerando toda uma discussão riquíssima, que na primeira leitura me pareceu que poderia ter ido mais longe, mas que uma segunda leitura revela em maior detalhe. Na componente do storytelling também nos parece numa primeira leitura demasiado colado à lógica de jogo, tornando-se demasiado formulaica. Mas depois de entranhar começamos a sentir o verdadeiro misto entre storytelling de cinema e storytelling de jogo. Nesse campo, acaba por nos arrastar pelas emoções cinematográficas, construídas com base na racionalidade do videojogo. É um universo muito específico, mas muito bem elaborado, apenas possível por quem conhece bem ambos os terrenos.


Em termos temáticos, a narrativa evolui dos jogos 8bits para os jogos atuais, criando um sentimento de progressão narrativa e histórica. Discute-se muito ao longo de todo o filme sobre o que define um jogo – os gráficos, jogabilidade, personagens, guião. Tudo isto é construindo fazendo uso de dezenas de personagens do imaginário dos videojogos que funcionam como verdadeiros estímulos emocionais para qualquer jogador. Mas o que eleva a densidade desse imaginário, é que o jogo não se centra sobre os heróis, mas antes roda em torno dos personagens “Maus” dos jogos. Um dos pontos altos do jogo acontece logo no início com uma reunião dos Personagens Maus Anónimos. O facto de se ter avançado por este lado permitiu construir uma narrativa com elementos normalmente secundarizados. Obriga-se o espectador a empatizar com um personagem com quem no passado pouco empatizou. E por isso mesmo o filme ganha toda uma outra leitura, e profundidade, levando os jogadores a questionarem-se sobre os pressupostos do filme muito para lá da sua visão. Aliás em certa medida isso foi o que me levou a rever o filme. Os personagens complexificam-se, abandonam os rígidos quadros morais, e apresentam as suas facetas mais humanas.

maio 04, 2013

Filmes de Abril 2013

Abril de 2013 terá sido o mês dos últimos anos em que vi menos filmes. A razão disto chama-se Tomb Raider (2013), e vem mais uma vez colocar o dedo sobre a extensão dos jogos. Investi 20 horas para chegar ao final do jogo. Como não era apropriado para menores, tive de jogar nas horas em que normalmente vejo cinema. Nesse sentido, foi tempo que me podia ter rendido uns 7 ou 8 filmes. Tirando isso, o mês ficou marcado pelo mais recente Malick.

xxxx To the Wonder 2012 Terrence Malick USA [Análise]

xxxx Barbara 2012 Christian Petzold Germany

xxxx Wreck-It Ralph 2012 Rich Moore USA [Análise]

xxxx Toto le héros 1991 Jaco Van Dormael Belgium

xxx Safety Not Guaranteed 2012 Colin Trevorrow USA

xxx Valhalla Rising 2009 Nicolas Winding Refn Denmark

xxx Das Experiment 2001 Oliver Hirschbiegel Germany

xx Jack Reacher 2012 Christopher McQuarrie USA
xx The Man From Nowhere 2010 Jeong-beom Lee South Korea


Nota: Para ver os meses anteriores basta seguir a etiqueta FilmeMês. Podem ver a listagem de todas as notas numa folha online. As notas dadas seguem os critérios: x - insuficiente; xx - a desfrutar; xxx - bom; xxxx - muito bom; xxxxx - obra prima.

maio 03, 2013

"To the Wonder" (2012), fluxo do maravilhamento

Parti com a ideia de que não seria tão bom como Tree of Life (2011), não só porque Tree é uma espécie de projecto irrepetível, mas também porque percebi que alguma crítica não tinha ficado muito satisfeita com Wonder. Na verdade Wonder é mais focado, mais específico, não pretende enquadrar toda a "árvore", quer apenas focar-se no movimento de uma das suas folhas, tentando compreender o seu movimento.



Wonder é um filme sensorial, a sua comunicação é feita quase exclusivamente a partir do que mostra, e pouco a partir do que diz. A música incita, os personagens dançam, o espaço cola-nos à realidade estática e rígida do mundo, enquanto a câmara se move tão fluída como a própria vida. É isto Wonder, um deixar-se maravilhar pela “insustentável leveza” da vida, pela sua variabilidade, mutabilidade, elasticidade, pela total inconstância do que nos espera, sem previsões nem antevisões.

Wonder maravilha-nos porque usa a caneta de escrita do cinema, a câmara, e a singularidade do seu tempo, a montagem, para exactamente nos dar a ver o que é o maravilhamento. São pouquíssimos os planos estáticos, a edição é muito rápida, mas quase nem se sente porque se entrecortam planos de movimento de câmara dóceis e brandos, que transportam consigo a inconstância, criando um puro fluxo entre o espectador e a imagem. Mas todo este movimento perceptivo que o filme ganha, não ultrapassa nunca a linha do espetáculo, do chamar a atenção sobre si, do fim em si mesmo. Malick cria o fluxo, mas fá-lo de uma forma tão contida, quanto os sentimentos que percorrem as peças centrais da narrativa. Ao longo do filme sentimos um vai e vem constante, não só entre países, não só entre pessoas, sentimentos e emoções mas também e entre razões e lógicas. E é graças a esta espécie de espontaneidade contida da visualização que tudo isso ganha um significado congruente e coerente.



O espaço dá-nos a entender que existe algo ali, algo que não muda, mas os espaços apresentam-se vazios, seja nos EUA ou em França. Somos brindados com espaços amplos enquadrados de forma majestosa, filmados sob a luz da "hora mágica" (amanhecer e entardecer), variando entre o sol cheio de verão e o pleno cinzento de inverno. Mas a ausência de vida em redor, leva-nos a acreditar que o espaço não é aquele, que este é apenas uma expansão do verdadeiro espaço do filme, os corpos, a sua comunicação não-verbal, é aqui que se centra a espacialidade de Wonder. Os próprios espaços interiores são tão desprovidos de vida quanto os exteriores. Se na rua não existem quase pessoas, em casa não existe quase mobília, porque a mudança é uma constante, e os sentimentos estão em fluxo, não param, sentem e deixam de sentir, mas continuam a voltar atrás para a apanhar de novo o fluxo antes conhecido, apenas para descobrir, que o que antes se teve, já não volta. O fluxo é um contínuo, sempre em movimento, sempre em mutação, o fluxo é o maravilhamento, é a vida.


To the Wonder (2012) de Terrence Malick

maio 02, 2013

Tomb Raider, problemas da usabilidade nos videojogos

É bom, mas é só isso mesmo. Em termos de jogabilidade e estrutura narrativa consegue manter-nos conectados ao longo da extensa missão (~20h), já a história deixa imenso a desejar. Toda a experiência é bastante fluída e quase sempre em alta rotação, nunca se sente a monotonia, assim como poucas vezes se sente a frustração, na verdade existe pouco espaço para a contemplação, mas esse também não é o propósito de uma aventura.


Em relação ao tema, percebo agora porque o jogo foi catalogado para maiores de 18, só não percebo a necessidade deste tema. A história centra-se nas origens de Lara Croft, procura explicar como é que ela se transformou numa guerreira salteadora de túmulos arqueológicos. Saltar daqui para a necessidade de termos gigantescas extensões carregadas de esqueletos e corpos ensanguentados espalhados pelo chão, não vejo a ligação. Claro que se pode dizer que isso a ajudou a tornar-se mais imune à violência, mas é um exagero visual, um dos maiores festins de gore a que já assisti. Chegando ao final, fico na dúvida se estive a jogar Tomb Raider ou Silent Hill. Era desnecessário, e o jogo teria tido muito mais a ganhar se se tivesse mantido na faixa dos 12 anos. Trabalhar um icon como Lara Croft e vedá-lo a uma imensidade de jogadores não me parece que faça o menor sentido. Os criadores podem ter pensado que o seu target tem agora mais de 30 anos, o que é verdade, mas Tomb Raider não devia ser apenas mais um jogo que segue as tendências, devia antes marcar as tendências.



No campo da estrutura o jogo assemelha-se bastante a Uncharted 3 (2011), e pouco a Uncharted 2 (2009). A narrativa é clara, tal como na série Uncharted, são utilizadas cutscenes para fazer passar os nós centrais da narrativa, e as lutas são mais dirigidas ao foco narrativo do que muitos outros jogos. No entanto ao contrário de Uncharted 2, existem poucos momentos inesquecíveis, seja de jogabilidade, dificuldade, beleza visual ou evolução da história. Por outro lado tal como em Uncharted 3, existe um excesso de repetição de lutas. Estas sim vão progredindo em dificuldade, mas uma dificuldade caótica, pouco estruturada e pouco dada à melhoria das competências do jogador. Sentimos que se melhora apenas a IA dos guerreiros e que somos jogados no meio da arena, numa tentativa de bloquear o avanço e assim fazer render mais tempo a jogabilidade. Apesar de contar com uma componente de RPG em que podemos ir melhorando as competências de Lara Croft em três frentes distintas, na verdade depois não sentimos o verdadeiro reflexo destas melhorias na nossa interacção com o jogo. Percebemos que a Lara vai ficando mais forte, mais ágil, mais competente, mas não nós enquanto jogadores.



Em relação à navegabilidade espacial a equipa de Darrell Gallagher conseguiu criar um jogo extremamente fluído, são raras as vezes em que nos sentimos bloqueados. Se por um lado gostei, por outro lado senti algum desconforto. Não por não ficar bloqueado, mas porque percebi porque não aconteciam esses bloqueios. O jogo está completamente inundado de marcas visuais que nos guiam durante toda a navegação*. Ao ponto do sistema implementado de ajuda, denominado de "Survival Skills", se tornar quase dispensável durante a maior parte do jogo. O que podemos ver aqui é um apuradíssimo trabalho de estudos de usabilidade, e foi exatamente por isso que me senti incomodado. Senti que estava a jogar um produto, e não um artefacto. Senti que estava a jogar uma experiência que já não era fruto da visão autêntica de um criador, mas que era o que tinha restado depois de centenas de testers terem passado a pente-fino toda a interatividade de navegação. Em termos metafóricos, é como comer um gelado industrial tão límpido e perfeito, que sabe igual, em qualquer lugar, e para qualquer pessoa, ao contrário do gelado artesanal que contém ainda vestígios da polpa de morango, diferente de copo para copo. As experiências constroem-se no tempo, e precisam de individualização para se tornarem memoráveis, de outro modo, estamos apenas a repetir doses do que já conhecemos, até que elas simplesmente deixem de nos emocionar.

*Marcas brancas que indicam que se deve subir ali

Este é o problema da aplicação da usabilidade nos videojogos. Os videojogos, podem até enquadrar-se no mundo do software, mas não podem ser vistos como mais uma aplicação, um produto. Os videojogos são obras artísticas, que comunicam uma ideia pessoal, uma forma de ver o mundo. O testing é importante para garantir a ausência de bugs, mas passar daí para a limpeza das mecânicas da jogabilidade, procurar aperfeiçoar a interacção de um jogo por via do testing, é destruir o que faz deste um videojogo, o que os torna autênticos e únicos.

abril 30, 2013

os livros contra as séries e jogos

Ainda ontem aqui falei dos problemas da enorme duração das experiências das séries TV e dos jogos. Agora trago uma belíssima campanha da Asociación De Editores De Madrid que se foca sobre isso mesmo, com o objetivo de alertar as pessoas de que é preciso salvar a leitura!


Esta é a realidade, por muito que aos jogadores e amantes das séries lhes custe. O tempo que se gasta com séries e jogos intermináveis é valioso, e pelo meio muito fica para trás. Não coloco aqui em questão deixar de jogar ou ver séries para ir ler, apenas relembro que como em tudo, é preciso moderação. É preciso conseguir distribuir melhor o tempo que se investe em cultura. E queiramos ou não, entre ler Dom Quixote ou jogar centenas de horas de Angry Birds, ou ver centenas de horas de Lost, existe uma clara diferença no retorno cognitivo. Aliás, além destes consumidores de horas, como muito bem diz o Carlos Merigo do Brainstorm9, era bom ter visto um cartaz destes com o Facebook como "assassino" de tempo.



A campanha é constituída de três cartazes em que personagens clássicos da literatura morrem: Dom Quixote por Angry Birds, O Pequeno Príncipe por Call of Duty, e Moby Dick por Lost.

Comunicação e as falácias da Sociedade de Informação (Copyright, MOOC, Democracia Directa, Open Access, Rankings)

No dia em que se comemoram 20 anos da WWW trago algumas reflexões sobre o impacto da internet no pensamento contemporâneo. Ao longo dos últimos meses envolvi-me em discussões mais ou menos acesas sobre o Copyright. As discussões sobre o copyright nunca foram pacíficas, mas acentuaram-se com a massificação do acesso à internet. De uma forma geral e a um nível internacional os detractores defendem a legalidade da partilha de conteúdos sob copyright desde o Napster aos torrents, até ao acesso aberto às publicações científicas. Em Portugal temos vários defensores desta ideologia, e nos últimos dois meses tive oportunidade de me debater com dois deles – Ludwig Krippahl, especialista em bioinformática na UNL e Eloy Rodrigues especialista em sistemas de documentação na UM.


Tive uma discussão no blog do Krippahl que se prolongou por dois textos seus - Um acidente histórico, 15.2.2013; Censura, 29.3.2013  - que nos serviram para discutir os fundamentos do copyright ao longo de mais de uma dezena de respostas e contra-respostas nas caixas de comentários. A discussão circulou à volta da defesa da inovação, criatividade, liberdade de expressão e censura. Ludwig Krippahl defende que o copyright confere aos criadores um direito monopolista sobre a informação, o que tem como consequência a transformação a lei do copyright numa lei censória, porque impossibilita as pessoas de poderem transmitir determinada informação. Nesse sentido defende que o copyright deve ser extinto, porque este não pode sobrepôr-se à liberdade expressão. Quanto ao modo como podem os criadores ganhar vida com aquilo que criam, não apresenta qualquer solução. Deixo um resumo daquilo que eu defendi nessa discussão,
- O que se pede à sociedade no respeito do copyright e das patentes está relacionado com um ponto único, o estímulo à inovação e criatividade humana.

- A internet será tão livre quanto tudo o resto nas nossas vidas em sociedade. 


- Sobre a Liberdade de Expressão, leia-se o ponto 2 do Artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sobre a Liberdade de Expressão. Não existe sociedade sem cedências de princípios, por muito que custe a cada um de nós.


- O fundamentalismo é mau, seja em que direcção for, para proteger seja o que for ou seja quem for. A vida é demasiada complexa, cheia de variáveis, e em constante transformação para estar sujeita a fundamentalismos.


- A grande questão é que terei muita dificuldade em incentivar jovens a investir 10 anos da sua vida (10 mil horas para atingir a mestria) para se tornarem músicos de excelência, ou escritores, ou desenhadores, etc. se souberem que todo esse investimento terá um retorno igual a zero. 


- Nem toda a arte é produzida por uma única pessoa... Fernando Pessoa foi um grande artista e não precisou do dinheiro de ninguém. Aliás podemos dizer o mesmo de Saramago. Mas não comparemos a escrita de um livro ao longo de anos em part-time, com a criação de um filme ou de um jogo que pode necessitar na sua produção de dezenas e até centenas de pessoas para ser criado, fora as tecnologias. Pessoas que não fazem nada genial e brilhante aos olhos comuns, mas são peças essenciais na engrenagem da criação do artefacto final, sem eles não existe um grande maestro, nem um grande realizador.


- Continuo a discordar da rotulagem de censura… A censura não quer saber da estrutura das palavras, quer saber das ideias. Já o copyright protege a estrutura, não as ideias… Ninguém é impedido de dizer o que pensa. Como já disse, para mim censura, é impedir alguém de expressar os seus pensamentos, ideias e visões. Um acto de censura implica impedir alguém de comunicar as suas ideias a outras pessoas. Isso não acontece, nunca. Mesmo que a sua ideia seja igual à do escritor A ou B, ele não é impedido de expressar a ideia, apenas de o dizer numa determinada organização de palavras. Basta ler o ponto 2 do artigo 1º do CDADC
 
- A investigação científica também é protegida, não com copyrights, mas com patentes. A indústria farmacêutica, a indústria automóvel, a indústria informática, etc. etc. está cheia de investigação protegida. Por isso não é porque nós que fazemos a nossa investigação com dinheiro público, que a investigação científica é toda pública. E o progresso aí não parou por estar protegido, antes aumentou, porque existem muitos mais meios para quem trabalha nesses laboratórios. É claro que a patente não dura o mesmo do copyright. Está entre os 15 e os 20 anos. Aliás como já tinha dito lá atrás, não concordo que o copyright possa durar uma vida. [Não concordo com várias coisas da Lei do Copyright, mas uma coisa é lutar por uma melhor lei, outra é procurar bani-la sem apresentar qualquer contra-solução. Fiquei contente com a decisão do tribunal americano de permitir a apropriação fotográfica, um sinal de que o remix deve ser respeitado.]

- Eu gostava de ver a sociedade viver sem cinema, literatura, música, pintura, escultura, videojogos, arquitectura, etc. etc. etc.
 
- Enfim. É tudo muito giro, mas é quando não nos toca a nós. Todo este discurso da partilha e da liberdade é muito giro, mas qualquer pessoa que tenha de viver do que cria, sabe bem do que falo aqui. [Para se perceber melhor o que acontece quando não existe forma de rentabilizar os produtos que se criam aconselho jogarem a versão pirata do Game Dev Tycoon]
Numa segunda discussão online no Facebook com o Eloy trabalhou-se os fundamentos do Open Access na publicação científica. A ideia de que não faz sentido vedar o acesso a informação produzida pelos investigadores, até porque muita desta já foi antes paga pelos próprios contribuintes. Eloy defende uma abertura do acesso ao conhecimento, propondo como ideal a atingir, o fim das revistas científicas internacionais, vistas como os grandes promotores do fechamento do conhecimento. A ideia passa por colocar toda a produção científica em repositórios públicos, sistemas de disponibilização de artigos com custos reduzidos para as instituições, e deste modo garantir que a informação fica disponível para todos de modo gratuito.
- O mundo da comunicação todos para todos é muito bonito na teoria, mas quando enfrenta a realidade das nossas limitações de gestão de tanta interacção, percebe-se que afinal, existem outras razões por detrás de estruturas [editoras, gatekeeping, etc.] que se criaram no passado.
- Resta algo mais problemático. O conhecimento de que a informação existe, e mais importante ainda, de que essa informação é credível. Ou seja os repositórios são interessantes, enquanto eu souber que o que lá está foi triado antes por Revistas e Conferências de renome que garantem a credibilidade, pagando-se por isso. A partir do momento que um repositório passe a aceitar todo e qualquer artigo sem discriminação, perde o interesse para a comunidade. Obriga-me a investir mais tempo na filtragem do material.
- O que me preocupa em toda a discussão à volta do acesso aberto, e também do copyright, é aquela crença de que Editar e Distribuir, é algo menor, ou algo sem custos. As pessoas esquecem que a informação a que acedem, antes de lhes chegar, foi triada, preparada e disponibilizada nos sítios certos para que as pessoas dela ganhassem conhecimento. Existe todo um processo social que demora tempo, em que as pessoas vão ganhando respeito, em que a credibilidade se joga. É um pouco como a "confiança dos mercados", para falar na linguagem corrente.”
Simplificando. Se não existissem revistas, e cada Universidade tivesse um repositório de todos os artigos publicados pelos seus investigadores, como é que eu poderia triar o que é novo? Triaria apenas o que é do MIT, de Harvard e mais meia-dúzia de universidades respeitadas mundialmente. E os investigadores de universidade menores passariam à história. Mais valeria dedicarem-se só às aulas. As revistas apesar de parecerem pouco democráticas, são-no muito mais do que se possa pensar.

Contra mim existem os argumentos suportados por pessoas como Lawrence Lessig catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Ou Aaron Swartz a pessoa que ousou pôr à prova as revistas científicas, tendo instalado um computador dentro do MIT e feito o download de milhões de artigos para depois os disponibilizar em modo aberto. Swartz era uma mente brilhante, mas com sérios problemas de gestão de emoções, tendo recentemente posto fim à vida e assim tornando-se num mártir da causa. Lessig e Swartz trabalharam juntos na criação dos Creative Commons, vale a pena ver a palestra de Lessig no dia do início da sua cátedra, como homenagem a Aaron Swartz (vídeo e transcrição). Sobre Swartz vale a pena ler os artigos Requiem for a Dream da New Yorker e ainda A cidade e o futuro do mundo, segundo Aaron Swartz. Além destes temos Cory Doctorow um escritor de ficção-científica, conhecido pelo seu blog Boing Boing, e que num artigo no mês passado no Guardian, Copyright wars are damaging the health of the internet, resume tudo aquilo que Kripahl defende, propondo o fim do copyright em nome da liberdade expressão, nem que para isso tenha de trucidar todos aqueles que vivem das indústrias criativas.
"Oh, sure, I worry about the income of artists, too, but that's a secondary concern. After all, practically everyone who ever set out to earn a living from the arts has failed – indeed, a substantial portion of those who try end up losing money in the bargain. That's nothing to do with the internet: the arts are a terrible business..." Cory Doctorow
E se já era ridículo dizer isto, uma vez que as indústrias criativas são reconhecidas como um dos braços mais relevante das economias desenvolvidas, a alucinação de Doctorow em redor da sacrossanta liberdade da internet vai ao ponto de propôr que se termine com todo o tipo de vigilância da rede desde o terrorismo à pedofília. Aqui a única coisa que posso dizer é que Doctorow não tem a menor ideia do que está a falar. Aconselhava-o a fazer uma visita a uma qualquer conferência sobre a temática e ver responsáveis por brigadas falar, ouvir algumas histórias reais sobre o submundo da internet, para perceber o quão ingénuo e perigoso é aquilo que afirma. Na verdade é aqui que chegamos, quando optamos por defender ideias de modo extremista. Nada se pode intrometer no nosso caminho, seja o que for, tudo é tratado pela mesma bitola.

Mas perguntam, como posso eu não defender a Liberdade de Expressão, como posso eu não defender o Acesso ao Conhecimento para todos? Como posso ir contra fundamentos que considero basilares? A primeira constatação está relacionada com o facto de que nada no mundo é sagrado, e tudo pode e deve ser questionado sempre. Nesse sentido as nossas posições devem ser casuísticas, e não de princípio. Tão importante como a liberdade de expressão, é a liberdade de pensar. Enredar o pensamento em fundamentalismos cega a nossa capacidade de apreender o diferente, e condiciona o nosso pensamento.

Neste sentido julgo que estamos perante um discurso que apenas consegue ver uma parte da problemática, querendo resolver essa parte, sem se preocupar com todas as variáveis que lhe dizem respeito. E se resolvi escrever este artigo foi para me ajudar a mim próprio a compreender as razões que toldam o pensamento desta abordagem. É algo que comecei a perceber apenas a partir da última discussão sobre os repositórios de conhecimento, quando comecei a notar paralelos com os discursos dos defensores dos cursos universitários massivos online (MOOCs), dos rankings de publicações científicas, dos rankings de escolas e os exames nacionais, entre outras coisas. Venho-me debatendo internamente e em discussões online contra aquilo que considero serem acções de uma minoria que pretende passar a "gerir" a sociedade através de verdades estatísticas, económicas e quantitativas em desfavor da singularidade individual e da criatividade humana. Considero que isto é em parte resultante do deslumbramento com a chamada "sociedade de informação" que choca com algumas teorias sobre o embebimento de conhecimento em Tecnologias Criativas que venho estudando.

As tecnologias criativas têm sido o meu pet project dos últimos anos, para o qual tenho trabalhado conceitos muito abrangentes como a criatividade, a tecnologia, a internet, o artesanato, a revolução industrial, o conhecimento, etc. Muitos dos discursos que vou lendo nestes domínios estão a maior parte do tempo apenas concentrados num único assunto: os impactos da internet nos sistemas de informação. Muito desses impactos têm-nos levado a discutir a suposta gratuitidade do digital, as modificações das massas, dos processos de distribuição, dos processos de produção. Muitas destas discussões têm vindo a promover a crença em teorias que comparam o funcionamento da internet com o funcionamento do nosso cérebro, como Doctorow diz, nós precisamos de "acknowledge that the internet is the nervous system of the information age."

Por outro lado toda uma outra barricada se começou a levantar do lado oposto e tem acusado os defensores da internet e das ideologias subjacentes, de fundamentalistas e crentes, defensores cegos da tecnologia a qualquer custo. Um dos mais conhecidos detractores e que se tem afirmado internacionalmente é Evgeny Morozov que no campo da ciência política tem procurado demonstrar a falácia por detrás destes pensamento hegemónico com The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom  e To Save Everything, Click Here: Technology, Solutionism, and the Urge to Fix Problems that Don’t Exist (2013). Mas mesmo no campo da própria tecnologia temos visto vozes a levantar-se. Jaron Lanier um dos principais mentores da Realidade Virtual escreveu o manifesto, You Are Not a Gadget (2010) nesse sentido. Ou ainda Andrew Keen um dos maiores evangelistas de Silicon Valley que a uma dada altura começou a escrever a propósito do assunto, The Cult of the Amateur: How Today's Internet Is Killing Our Culture (2007) e Digital Vertigo: How Today's Online Social Revolution Is Dividing, Diminishing, and Disorienting Us (2012). E vão aparecendo já alguns artigos mais honestos sobre as limitações dos MOOCs. Alguns acusam este lado da barricada de mero “ludditismo”. Não aceito porque ao colocar-me deste lado da barricada, não estou de modo algum a apontar o dedo à tecnologia. Para mim as grandes questões subjacentes ao copyright e ao acesso ao conhecimento científico não estão condicionadas pelo surgimento da internet ou qualquer outra tecnologia. Antes pelo contrário, esta tem servido para ajudar a promover tudo o que defendo no campo da criatividade.

Posto tudo isto os problemas que eu identifico e que estão na base da minha rejeição da abordagem Messiânica da Internet, grande responsável pelas ideias subjacentes ao fim do copyright, fim das revistas científicas, e fim das Universidades, não se relacionam com a tecnologia, mas com a forma como concebemos o seu uso. As tecnologias da comunicação se bem utilizadas podem servir o ser humano, se mal utilizadas colocarão o humano ao serviço da tecnologia a médio prazo. Muito já se ouve falar sobre a escrita de poemas por máquinas, a criação de filmes por algoritmos, a mais recente é a correcção de exames por máquinas. Deixo apenas uma nota a todos os crentes nestes sistemas: Só as máquinas não erram, mas é o erro que nos torna únicos, é do erro que brota a nossa criatividade. Dizer ainda que a internet não se assemelha, de forma alguma, ao nosso sistema neuronal. É uma falácia, e é uma clara tentativa de colar uma metáfora de fácil compreensão no sentido de lhe garantir maior credibilidade. O nosso cérebro funciona de forma muito diferente, acima de tudo porque a informação não circula apenas orientada pela cognição, é também trabalhada pela emoção.

Assim a grande questão por detrás de todas as discussões sobre o copyright e o acesso gratuito à informação está ligado à confusão que existe entre os processos de Comunicação e os processos de Informação. Ao longo dos últimos anos assistimos a uma tentativa de colagem da Informação à Comunicação. Desde da aceitação internacional do termo “Tecnologias de Informação e Comunicação”, à integração nas mesmas áreas científicas das Ciências da Comunicação e Ciências da Informação. Para quem está de fora, não existe diferença. Apercebi-me disto apenas após discutir intensamente com pessoas que claramente dominam os pressupostos das Ciências da Informação, mas a quem falta conhecimento sobre as Ciências da Comunicação. Esta discussão colocou bem em evidência as diferenças fundamentais entre ambas. Mais sobre estas diferenças pode ser visto no texto que publiquei aqui a propósito do livro de Dominique Wolton, "Informar não é Comunicar".

Primeiro modelo de comunicação, de Claude Shannon (1948)

Deste modo ao longo de todas estas discussões percebi que os defensores do fim dos modelos atuais -  copyright, revistas especializadas, universidades - baseavam toda a sua argumentação num processo simplificado de comunicação, ou seja no primeiro modelo de comunicação de Claude Shannon de 1948. Nesta altura a comunicação encerrava-se sob um mero processo de transmissão de um produto, a informação. Estes modelos surgidos no pós-guerra procuravam melhorar os processos de transmissão de informação, daí que a sua preocupação fosse o meio ou canal. O relevante da discussão reduzia-se aos modelos de redução dos ruídos do canal. Assim os Emissores e Receptores não eram tidos em conta, eram meros recipientes, variáveis independentes, sem condicionantes sociais, psicológicas ou de competências.

Modelo unificado do processo de comunicação (Foulger, 2004)

Mas o conhecimento sobre a Comunicação evoluiu, transformou-se, e hoje sabemos muito mais sobre o que está em jogo. Quando comunicamos não estamos apenas a emitir ou a receber informação através de um canal, estamos a calcular uma imensidade de outras variáveis, que por vezes têm tanta ou mais importância que a própria mensagem que se quer transmitir. Ou seja, para além daquilo que é dito, importa a forma como é dito, mas sobretudo o contexto no qual é dito, e o contexto no qual é recebido. Tudo isto cria um processo complexo, que precisa de ser trabalhado para que a mensagem chegue verdadeiramente a ser compreendida e partilhada. Como dizia Watzlawick já em 1968, o processo de comunicação é relacional, ou seja cada mensagem partilhada contém em si mesma metacomunicação que diz respeito ao modo como deve ser lida pelo receptor. No diagrama acima apresenta-se um modelo unificado da comunicação de Davis Foulger que apresenta algumas, ainda que de modo introdutório, das questões que normalmente preocupam os investigadores das ciências da comunicação.

Deste modo torna-se inevitável pensar que toda esta discussão é fruto de um ressuscitar de modelos de comunicação há muito defuntos. Um novo meio de comunicação surgiu, com novas potencialidades, e de repente esquecemos tudo o que aprendemos. Fazemos tábua rasa do conhecimento acumulado, e assumimos a internet como um novo messias da comunicação. O meio que tudo coloca em causa, que tudo pode, que tudo revoluciona. Assume-se uma sociedade que se adapta ao modelo desenhado pela internet, e não o seu contrário. Para os crentes na salvação pela internet, a sociedade passa a ser definida tal qual uma rede perfeita de relações (a internet) entre vários nós (as pessoas), desconsiderando os parâmetros da natureza humana que promovem a acção dos nós, responsáveis pelo estabelecimento dos laços do conhecimento. Deste modo toda a informação passa a ser livre e grátis, o copyright deixa de fazer sentido, e o ensino à distância substitui a necessidade de contacto interpessoal. Mas vai ainda mais longe, os países passam a ser governados por democracia directa, a salvação da democracia trazida pela internet, que abre caminho a que todas as decisões sejam tomadas por referendos. Do mesmo modo que as escolas já passaram a ser medidas em função das notas que os alunos tiram em exames nacionais, e a ciência passou a medir-se em função do número de publicações que os cientistas publicam. O que conta é apenas e só o resultado medível da quantidade de informação que é passada de um ponto A para um ponto B.

No final, tudo isto seria perfeito, e um gestor do alto do seu pedestal, conectado à internet, recebendo os dados em tempo real, directamente na sua folha de excel que tudo filtra através de algoritmos perfeitamente calibrados, poderia finalmente descansar, porque a sociedade estaria a funcionar tal qual uma grande fábrica de produtos em série, fruto da grande revolução industrial. Seria tudo assim, se os laços da comunicação humana, se pudessem criar desse modo. O problema é que não criam, não emergem e sem eles o Conhecimento não se constrói, não acontece. Transmite-se informação, acumula-se informação, transacciona-se informação, mas isso muda pouco os sujeitos envolvidos.

Ao longo de milhares de anos desde a criação da escrita, mais acentuadamente desde o aparecimento dos métodos de impressão, desenvolvemos sistemas de gestão de informação, envolvidos em sistemas humanos de comunicação, que foram evoluindo e sendo aperfeiçoados à medida que fomos compreendendo como construímos o conhecimento. Não massificámos as escolas para servirem a mera transmissão de informação, elas surgiram para estimular a criação de competências cognitivas nas pessoas de modo a permitir-lhes chegar ao conhecimento autonomamente. Não criámos a ciência para produzir mais informação, a descoberta científica não se traduz em qualquer artigo ou citação, o seu impacto só pode ser medido pelo avanço que provoca no nosso auto-conhecimento. Do mesmo modo não criámos editores nem copyrights para serem meros gestores de informação, eles existem porque têm uma função específica na cadeia de construção do conhecimento humano.

Podemos mudar, devemos evoluir, mas não devemos pôr tudo em causa simplesmente porque descobrimos um novo meio de comunicação. Para quem ainda pensa que a Internet veio para salvar o mundo, imagine-se em 1895 numa sala às escuras, ver um comboio em andamento vindo em direcção a si, a partir de um rectângulo de luz projectado numa parede! Imagine as ideias fantásticas que não passaram pela cabeça de muitos quando viram como a realidade podia a partir daquele momento ser registada e preservada para todo o sempre e ser mostrada em qualquer parte do mundo. A verdade é que a sociedade humana é bastante mais complexa, e as faculdades cognitivas do ser humano não mudam à velocidade do surgimento de cada nova tecnologia. Olhemos para a nossa história, temos conseguido criar muita tecnologia nova, mas a nossa biologia continua quase intacta passados vários milénios. Deixemo-nos de ilusões quanto a definir os tempos que se vivem como diferentes de tudo o que já passou, alguns colam-lhes adjectivos fortes como revolucionários ou de velocidade vertiginosa. Mas o passado será sempre visto como algo mais simples que o futuro, não porque verdadeiramente o foi, mas apenas e só porque é agora certo e imutável, sem as variáveis impossíveis de quantificar que o futuro nos reserva.

O ser humano é criativo por natureza, mas a capacidade de criar conhecimento pode ser posta em causa se deixar de interessar o processo e a descoberta, e passar a interessar apenas o produto resultante.

abril 29, 2013

Séries TV e RPGs, a dura duração da ilusão das experiências

Esta semana escrevi na Eurogamer a propósito das memórias que guardamos das experiências que vivemos, A Memória da Experiência. Não é algo que eu tenha investigado, antes me baseio no excelente trabalho da dupla Daniel Kahneman e Amos Tversky. Mas se tinha sido interessante a descoberta destes estudos, foi ainda mais interessante este fim-de-semana a coincidência que se deu com o relato de experiências distintas por parte de dois amigos no Facebook, um sobre as Séries de TV e outro sobre os RPGs. A eles digo apenas, leiam o artigo que escrevi, e se puderem deixem nos comentários as vossas memórias.

Tiago Sousa 27.04.2013: "Finally finished watching Lost series - was great but that's it, not watching more series without a begin/end on same freakin episode - too much addictive/time waste ^_^"
Luis Melo 29.04.2013: "How can you gamers play so many games a year? I just got back to Dark Souls (finally got it for PS3) and a whole week just flashed before my eyes. I'm not going to touch any games for several months after this. Not kidding."
Achei muito interessante ler os comentários ao artigo que fiz para a Eurogamer, ver como os jogadores desesperadamente tentam demonstrar que estou errado. Totalmente ao contrário daquilo que é aqui dito pelo Tiago e pelo Luís, que tiveram um momento de lucidez racional no final das suas experiências. Muito do discurso presente nas caixas de comentários, encaixa numa inversão daquilo que Kahneman define como a "ilusão cognitiva". Ou seja, a nossa mente lembra apenas o pico mais intenso, e o final das experiências, mas nós queremos acreditar que não. Queremos acreditar que vale a pena investir todo aquele tempo, passar por todas aquelas experiências menores mas durante mais tempo, porque elas racionalizadas como um cálculo somatório representariam mais prazer do que aquele que verdadeiramente a nossa memória preserva de cada experiência.