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agosto 06, 2020

Vigiar e Punir, segundo Foucault

Do Caos à Ordem por via da Disciplina e Punição, é o que nos diz Foucault nesta carismática obra de 1975, talvez a mais relevante de todo o seu trabalho, pelo modo como atravessa tudo e todos, obrigando a uma reflexão profunda sobre o que somos enquanto indivíduos parte de uma sociedade, fruto de processos de civilização. Em última análise, Foucault lança a ideia de que aquilo que distingue a civilização da barbárie, que nos distingue do primitivismo assim como dos animais, é a Ordem e essa é conseguida por via de dois grandes conceitos: Disciplina e Punição. Aliás, o título da obra sendo originalmente, em francês “Surveiller et Punir”, traduzido corretamente para português como “Vigiar e Punir”, ao ser passada para inglês ganharia o título de “Discipline and Punish” (“Disciplinar e Punir”).
Mas a ênfase de Foucault na vigilância não é secundária, porque segundo ele, a disciplina é resultado da vigilância. Claro que resulta da punição, que treina o comportamento humano para se manter na linha reta traçada por essa sociedade. Mas a manutenção dos indivíduos na linha reta só se consegue por via da constante vigilância. Daí que Foucault tenha recorrido ao modelo de prisão criado no século XIX para dar conta de uma figura central da sua teorização, o panoptismo. Aliás, vai além da prisão, resgatando os modos de atuação das sociedades perante a peste no século XV, que parece tão próximo destes tempos de COVID-19 que atravessamos, como se vê neste excerto do capítulo “O Panoptismo”:
“Em primeiro lugar, uma repartição espacial estrita: encerramento, obviamente, da cidade e dos arredores, interdição de sair dela, sob pena de morte, eliminação de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões distintos, onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um síndico; este vigia-a; se a deixar, será punido com a morte. No dia marcado, é ordenado que todos se fechem em casa: proibição de sair de casa, sob pena de morte. O próprio síndico vai fechar, do exterior, a porta de cada casa; leva a chave e entrega-a ao intendente de quarteirão; este guarda-a até ao fim da quarentena (..) Circulam apenas os intendentes, os síndicos, os soldados da guarda (...) “A inspeção funciona incessantemente. O olhar está alerta em toda a parte (...) guardas nas portas, na câmara municipal e em todos os bairros para tornar mais eficiente a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados, «bem como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens.”
“Todos os dias, o intendente visita o bairro pelo qual é responsável, verifica se os síndicos cumprem as suas tarefas e se os habitantes têm queixas; «vigiam as suas ações». Também todos os dias, o síndico passa pela rua pela qual é responsável; para em frente de cada casa; chama todos os habitantes às janelas chama cada um pelo seu nome; informa-se do estado de todos, um por um – «os habitantes são obrigados a dizer a verdade sob pena de morte»”

“Esta vigilância baseia-se num sistema de registo permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos magistrados municipais ou ao presidente da Câmara. (...) Tudo o que é observado durante as visitas – mortes, doenças, reclamações, irregularidades – é anotado, transmitido aos intendentes e aos magistrados (...) O registo do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com a sua doença e com a sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registo que estas fazem e pelas decisões que tomam.”
“Este espaço fechado, dividido, vigiado em todos os pontos, onde os indivíduos são introduzidos num lugar fixo, onde os mínimos movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem partilha segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente referenciado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – tudo isto constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. ”

“À peste responde a ordem;”

“A peste como forma simultaneamente real e imaginária da desordem tem como correlativo médico e político a disciplina. Por detrás dos dispositivos disciplinares, lê-se o terror dos «contágios», da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, que vivem e morrem na desordem.” 
Capítulo 7: O Panoptismo

O ataque à desordem busca o reequilíbrio, ou normalização dos processos, um voltar ao que era a linha anteriormente definida. Por seu lado, estes processos, demonstrando os seus frutos acabariam sendo importados para outros domínios, como diz Foucault:
“lentamente, vemo-los aproximarem-se; no século XIX, aplicou-se ao espaço de exclusão do qual o leproso era o habitante simbólico (..) isto foi operado regularmente pelo poder disciplinar desde inícios do século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada e, de certo modo, os hospitais.”
Capítulo 7: O Panoptismo

O sistema de ordem e punição, ou nos dias hoje, de regulação, serve então a marcação binária da sociedade entre “louco-não louco, perigoso-inofensivo; normal-anormal”, com os mecanismos de poder a agirem sobre o anormal para o fazer regredir ao normal. Mas para que os mecanismos funcionem, é necessário todo um sistema de vigilância e informação permanente que permita a punição nos momentos adequados, o treino que permite dobrar o anormal, alertando e corrigindo. Daí que Foucault invoque a figura arquitetónica do panótico, que se define por um edifício circular com uma torre de vigia no centro. Os indivíduos sabendo-se vigiados, 24/24, e o efeito punitivo da não anuência da normalização, acabarão por se auto-normalizar. Aliás este mesmo processo foi utilizado em Portugal, e em muitas ditaduras do século XX, no uso das polícias de informação e o recurso a informadores no centro das comunidades, que tudo relatavam, induzindo o medo constante, e a manutenção da aparente normalidade.

Isto explica, para Foucault, porque passámos de um mundo medieval em que a tortura e morte era o normal na atribuição de justiça, para um mundo a partir do século XVIII, feito de prisões, em que os crimes, fossem de que ordem fossem, eram sempre punidos pela clausura. Segundo Foucault, houve uma transição da tortura do corpo para o controlo da “alma”, da mente, por via do fim dos maus tratos físicos via clausura em prisões. Esta transição foi operada pela pressão da sociedade, como modo de por fim à degradação humana representada pelos enforcamentos, guilhotinagens e torturas em praças públicas. Deste modo, Foucault aponta uma espécie de génese para a regulação da ordem assente na vigilância e disciplina, pela invasão e devassa da interioridade individual, apontada como reduto último, e aquele que necessita de ser quebrado para regressar à normalidade. A justiça abandona assim o simples ato punitivo vingativo em favor do ato corretivo de normalização, de suposto reajustamento psicológico. 

Daqui aponta o nascimento da Psicologia, a nova arte de normalização do humano, e aponta a normalização do indivíduo como o objeto último das sociedades, em que todos são moldados e formatados pelas ideias centrais comungadas pela comunidade em que se envolvem. Repare-se como Foucault define o processo de otimização da prisão a partir da cadeia exemplar de Mettray, aberta em 1840 e dada como grande exemplo em 1848 por funcionar em contraponto às revoltas que surgiam nas comunidades e escolas, como lugar em que a calma se tinha redobrado ao longo dos anos em que tinha funcionado:
“Os chefes e os subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem «pais», mas um pouco de tudo isto e segundo um modo de intervenção que é específico. São, de certo modo, técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. Têm a função de fabricar corpos dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho diário (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas, os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, os recolheres, as marchas com clarim e apito; comandam a ginástica; verificam a limpeza, presidem aos banhos. Adestramento que se acompanha de uma observação permanente; retira-se constantemente um conhecimento do comportamento quotidiano dos colonos; este saber é organizado como instrumento de avaliação perpétua:”

“Os suportes institucionais e específicos desses processos multiplicaram-se a partir da pequena escola de Mettray; os seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície; os seus apoios multiplicaram-se, com os hospitais, as escolas, as administrações públicas e as empresas privadas; os seus agentes proliferaram em número, em poder e em qualificação técnica; os técnicos da disciplina criaram raízes. Na normalização do poder de normalização, na organização de um poder-saber sobre os indivíduos, Mettray e a sua escola marcaram uma nova época.” 
Capítulo 10. O Sistema Prisional

Todos estes processos buscam a normalização, mas não só, ou melhor, essa normalização não é um qualquer princípio natural ou inscrito na pedra por um qualquer Deus, mas é antes a tal linha reta definida por cada sociedade. Ora as sociedades só existem enquanto grupos de interesses comuns, se não comungam do mesmo, não se podem manter juntos. Daí que a normalização opere no sentido de unificar e levar a comungar. Neste sentido, todas as estruturas criadas pelas sociedades, das prisões às escolas, dos hospitais às empresas, tudo opera segundo o mesmo objetivo de normalização. Iria mais longe, e sendo atual, e próximo de uma área que me é cara, diria que tudo opera segundo processos de gamificação. As estruturas de jogo vivem inerentemente do vigiar e punir. O jogador precisa de puxar pelo melhor de si, de se tornar no mais exímio competente, para não ser punido, e poder atingir um alegado objetivo final.

Isto é tanto verdade no século XXI, como no XV, ou no -V, o que mudou foi a evolução do aparelho que se aprimorou com o conhecimento científico, nomeadamente a enorme evolução das ciências sociais, que nos levaram a compreender melhor o humano, e por fim, aquilo que cada sociedade e civilização considera moralmente bom e mau ou fundamental para a sua coexistência. Porque as sociedades do século XXI não pretendem o mesmo das do século XV, e menos ainda do século -V. Reflita-se sobre mais este excerto:
“A escola (...) é apenas o exemplo de um fenómeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para controlar o tempo das vidas singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para assegurar uma acumulação da duração; e para transformar em proveito ou em utilidade sempre maiores o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, nos seus corpos, nas suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja suscetível de utilização e de controlo? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também vistas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

É por isso que dizer, nos dias de hoje, que a Universidade não existe para profissionalizar, ou que não funciona como certificador de competências, é uma falácia. A sociedade aceita a Universidade com tanta omnipresença, com a maioria dos jovens a chegar aos 18 anos a procurar nela ingressar, apenas e só porque ela garante o aumento de rendimentos aos indivíduos e claro às sociedades como um todo. A Universidade não tem hoje qualquer relação com a Academia grega, desligada da realidade do quotidiano, desinteressada da posse material, focada exclusivamente no conhecimento, porque a universidade se transformou numa extensão da instituição da Escola. É preciso transformar pessoas em máquinas de competências no tempo mais curto possível, para o que se requer obrigatoriamente o treino pela repetição e divisão do saber analógico em classes discretas elementares. As unidades discretas de conhecimento permitem o treino isolado, a repetição acelerada do que não foi adquirido, e consequentemente a vigilância por via do exame que:
“tem a tripla função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, garantir a conformidade da sua aprendizagem com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo.” 
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

Este modelo opera por toda a sociedade atual, nos hospitais com a doença e os doentes, nas fábricas e empresas, com os empregados e os seus objetivos a cumprir, nos tribunais com os arguidos, obviamente nas prisões e nos militares, mas também no desporto e na política. Porque tudo na sociedade atual é regulado por processos de gamificação dirigidos ao aumento de consumo e de produção. Esse é o modelo que nos regula, o Norte do jogo que a nossa civilização aceita jogar. 

Se dúvidas houvesse, analise-se o momento que atravessamos com o COVID-19, e perceba-se como todo o discurso, em todas as dimensões que constituem a nossa sociedade, se resume aos impactos no abaixamento do consumo e da produção. Como tudo e todos se focam naquilo que dizem ser a busca pela normalização que é o atingir do estado anterior à paragem forçada criada pelo COVID-19. Queremos a escolas abertas porque os pais precisam de ir trabalhar, porque os cafés, restaurantes, táxis, lojas de roupas, perfumes, bijuterias, papelarias e livrarias precisam de servir pais, professores e alunos, porque as fábricas precisam de servir todos esses estabelecimentos. Em redor destes nós, crescem múltiplos outros, em que todos dependem uns dos outros, e a paragem de um qualquer dos nós, implica diminuição de consumo e logo de atividade produtiva. 

Foucault não escreve enquanto crítico, mas enquanto cientista social, recorrendo ao método de análise histórica focada sobre as sociedades, procura padrões, indicadores, relações, leituras, buscava sentido interpretativo que explicasse porque funcionavam as sociedades como funcionavam. Claro que não foi o único a fazê-lo, mas a sua capacidade para identificar padrões macro e ligá-los a micro, tanto societais como individuais, por meio de teorização filosófica, sociológica e psicológica fez com que Foucault atingisse níveis de profundidade na sua análise únicos. O seu discurso é científico, baseado em evidência empírica, não se move por sentidos de correto ou incorreto, isso cabe ao leitor final decidir o que fazer com o novo modo de compreender a realidade apresentado por ele.

Do mesmo modo, não me interessa aqui apontar o dedo à Justiça, Escola, Políticos ou sequer ao Capitalismo ou qualquer outra ideologia económica. Na verdade, importa compreender que este foi o caminho escolhido para dominar o caos e a desordem, importa compreender como gerimos esse controlo, que ferramentas usamos para vigiar, punir e normalizar. Não porque sejam erradas, mas porque se quisermos mudar algo no modo como vivemos enquanto sociedade é sobre estas ferramentas que teremos de agir. Foucault não oferece caminho alternativo, só explica como montámos este caminho, que é apenas à superfície aparente natural, mas é profundamente artificial. 

Aliás, o que este seu trabalho demonstra é exatamente a evolução societal no sentido da adoção da ciência, no modo como evoluiu os seus métodos de ordem e normalização da sociedade, conduzindo a população a desejar jogar o jogo das suas vidas sob as mesmas regras. Já não estamos sob o jugo das religiões que exigem na base da fé cega, ou sob o jugo ditatorial que pune sem questionar, ambos os sistemas incapazes de se justificar perante as pessoas. Tanto os sistemas religiosos como ditatoriais, falharam por falta de feedback, mas acima de tudo por falta de objetivos macro. A ciência permitiu que as sociedades criassem novas estruturas que per se conseguiram instituir nas sociedades sistemas contínuos de feedback, que por sua vez garantem o desejo de submissão, de aceitação de ordem. Em última análise, o consumo parece ser o desejo último que a todos motiva de forma igual. Bem ou mal, de uma forma ou de outra, todos parecem desejar consumir mais, seja mais conhecimento, mais experiências, mais coisas ou mais poder, estando dispostos a aceitar as regras da vigilância e punição para o conseguir.

julho 14, 2020

Nietzsche, o psicoterapeuta

Não lia Nietzsche há mais de 25 anos, já tinha esquecido a sua força retórica, tinha-me habituado a pensar que os seus aforismos serviam apenas os sonhos de adolescente. Aliás, ao longo dos anos fui lendo, aqui e ali, algumas interpretações e teorias sobre as suas ideias, umas interessantes, outras bastante críticas, mas nunca me apeteceu lá voltar. Agora ao ler "Quando Nietzsche Chorou" (1992) acabei por dar comigo a viajar no tempo até às leituras de "Assim Falava Zaratustra" (1885), "Para além do Bem e do Mal" (1886) e de "O Anticristo" (1888). Recordei o “super-homem”, mergulhei de novo no destemido conceito que tanto apaixonou Jim Morrison, mas tenho de dizer que o que extraí foi bem diferente, para o que contribui imenso a escrita pedagógica de Yalom, mas também o facto de ter mais do dobro da idade que tinha.
Li a versão portuguesa da Saída de Emergência, mas não coloco aqui a capa porque a mesma usa uma foto da catedral de Notre Dame em Paris quando toda a ação se passa em Vienna.

"Quando Nietzsche Chorou" é um trabalho brilhante de Irvin D. Yalom, pelo modo como usa o meio de contar histórias, e em concreto o modelo do romance, para “ensinar os leitores”. Yalom é muito frontal, não pretendia escrever um mero romance, nem pretendia com ele dizer grandes verdades, o que lhe interessava era contar uma história através da qual se pudesse aprender mais sobre o psicologia do humano e nomeadamente sobre a arte da psicoterapia. Obviamente que Nietzsche não foi psicólogo, mas o conceito criado por Yalom, colocando o filósofo primeiro no divã e depois no lugar de terapeuta, é absolutamente brilhante. Ao longo das páginas temos a oportunidade não só de compreender como nasceu a psicoterapia, Freud aparece como amigo do médico de Nietzsche em algumas sequências, mas essencialmente porque nasceu. A isso acrescenta-se o uso que Yalom faz da psicoterapia para analisar, diria mesmo “esventrar”, o corpo teórico de suporte às grandes teorias de Nietzsche desde o choque entre o niilismo e a verdade suportada pelo conhecimento absoluto, da crítica à religião — “Deus está morto.” —, ao desprezo pela moral "Torna-te quem tu és!" e “O que não me mata torna-me mais forte!”.

Enquanto ia lendo, pensava para mim se muitas das ideias que carrego não estariam contaminadas deste espírito a quem dei bastante atenção no final da adolescência, mas de quem muito sinceramente nada recordava, ou pensava nada recordar. Várias vezes ao longo dos últimos anos me fui questionando se realmente teria compreendido alguma coisa “Assim Falava Zaratustra” que me ficou como o texto mais denso e intrincado que alguma vez li. Mas ao terminar esta leitura, percebi que tinha reencontrado Nietzsche, ele estava ali na minha frente, completo e íntegro, como desde sempre. Não que o tenha seguido, julgo que nunca seguimos ninguém em exclusivo, mas algumas das suas ideias martelaram parte daquilo em que me transformei. Talvez a mais evidente de todas tenha ficado pelo valor que atribuo ao conhecimento, à razão e à ciência, em detrimento de qualquer outro atributo humano, seja do foro material ou imaterial. Podemos questionar tudo, o niilismo tem esse problema, e chegar a um ponto de nada adiantar nada, mas é aqui que Nietzsche se distingue, porque vê o conhecimento como a única via capaz de criar e manter entreaberta uma porta no nosso caminho, sempre quase lá e ao mesmo tempo sempre inalcançável, instigando-nos a continuar todos os dias. 

O livro não será uma obra simples para quem desconheça os domínios da psicoterapia ou Nietzsche, mas não é complexa. Aliás, a desconstrução de Nietzsche é imensamente conseguida, dada a construção do personagem totalmente moldada pelas suas ideias. Talvez o seu maior problema seja o excesso de exposição, com Nietzsche e Breuer a investirem muitas páginas de diálogos pejados de ideias, conceitos e teorias. Mas este não é um mero livro de entretenimento, é um livro com uma missão, e como com todas as obras dotadas desse propósito, é preciso aceitar a proposta do autor para poder retirar o máximo do que nos é proposto. 

Deixo alguns dos excertos que marcaram esta leitura, e me fizeram dar voltas às ideias, nomeadamente alguns diálogos entre o médico Josef Breuer e Friedrich Nietzsche. Os excertos são da edição brasileira.

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Nietzsche: “A sensualidade é uma cadela que morde nosso calcanhar! E quão habilmente essa cadela sabe mendigar um pedaço de espírito, quando se lhe nega um pedaço de carne (..) “O desejo, o estímulo, a voluptuosidade... são os escravizadores! A ralé desperdiça a vida como suínos alimentando a vala do desejo.”

Nietzsche: “Você quer voar, mas não se pode começar a voar voando. Primeiro, tenho que lhe ensinar a andar, e o primeiro passo ao aprender a andar é entender que quem não obedece a si mesmo é regido por outros. É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo.”

Nietzsche: “afirmei que havia uma divisão básica no estilo dos homens: aqueles que desejam a paz de espírito e a felicidade têm que acreditar e abraçar a fé, enquanto aqueles que desejam a verdade devem renunciar à paz de espírito e devotar sua vida à investigação. Eu sabia disso aos 21, há meia vida. É tempo de você aprendê-lo: deve ser seu ponto de partida básico. Você deve escolher entre o conforto e a verdadeira investigação! Caso escolha a ciência, caso opte por ser libertado das cadeias sedativas do sobrenatural, caso, conforme alega, escolha evitar as crenças e abraçar o ateísmo, então não poderá ao mesmo tempo ansiar pelos pequenos confortos do crente. Se você matar Deus, terá também que deixar o abrigo do templo.”

Nietzsche: “– Não estou muito preocupado. Acho que tenho tido quarenta anos desde que cheguei aos vinte!”


***Cap. 16***

Breuer: “Tenho pensamentos mórbidos, sombrios. Com frequência, sinto como se minha vida tivesse atingido o cume. – Breuer pausou para se lembrar de como o descrevera a Freud. – Escalei até o pico e, quando observo além da borda para ver o que existe adiante, vejo apenas deterioração: a queda no envelhecimento, netos, cãs ou talvez– deu um palmadinha no centro calvo do couro cabeludo– simplesmente a calvície. Mas não, isso não está exatamente certo. Não é a queda que me incomoda... é a não ascensão.”

Breuer: “– Às vezes, imagino que todos têm uma frase secreta, Friedrich, um tema profundo que se torna o mito central da vida da pessoa. Quando eu era criança, alguém uma vez me chamou de "o rapaz infinitamente promissor". Adorei esta frase. Entoei-a para mim mesmo milhares de vezes.”

Nietzsche: “– E o que aconteceu com aquele rapaz infinitamente promissor?
Breuer: “– Ah! Esta pergunta! Formulo-a com frequência. O que ele veio a ser? Sei agora que não há mais promessa... ela se esgotou!”

Nietzsche: “– Diga-me, o que quer dizer exatamente com "promessa"? 
Breuer: “- Não sei exatamente. Pensava que sabia. Significava o potencial de escalar, de me alçar às alturas; significava sucesso, aclamação, descobertas científicas. Mas provei o fruto dessas promessas. Sou um médico respeitado, um cidadão respeitável. Realizei algumas descobertas científicas importantes: enquanto existirem registros históricos, meu nome será sempre conhecido como um dos descobridores da função do interior do ouvido na regulação do equilíbrio. Além disso, participei da descoberta de um importante processo de regulação respiratória conhecido como reflexo de Herring-Breuer.”

Breuer: “As metas realizaram-se, sim. Mas sem satisfação, Friedrich. De início, a euforia de um novo sucesso durava meses. Gradualmente, porém, foi se tornando mais volátil – semanas, depois dias, até horas – até que agora o sentimento se evapora tão rapidamente, que já nem penetra em minha pele. Acredito agora que minhas metas foram imposturas: jamais foram o verdadeiro destino do rapaz infinitamente promissor. Muitas vezes, sinto-me desorientado: as antigas metas deixaram de funcionar e perdi o dom de inventar metas novas. Quando penso no fluxo de minha vida, sinto-me traído ou enganado, como se tivesse sido vítima de uma piada celestial, como se tivesse esgotado minha vida dançando à melodia errada.”

Nietzsche: “- Mas, como é que não ajudou à sua própria carreira”
Breuer: “- Eu protelei a redação e publicação de artigos científicos. Recusei-me a dar os passos formais preliminares necessários à nomeação para a cátedra. Não aderi às associações médicas corretas, nem participei de comissões universitárias, nem fiz os contatos políticos corretos. Não sei por quê. Talvez isso tenha a ver com poder. Talvez eu recue da arena competitiva.”

Nietzsche: “– Então, isso foi aos 29. E ao chegar aos quarenta, a segunda crise?
Breuer: “– Uma ferida mais profunda. Chegar aos quarenta abalou a ideia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabê-lo aos quarenta foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que "o rapaz infinitamente promissor" foi meramente uma ordem de marchar, que "promissor" é uma ilusão, que "infinitamente" não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens marchando em direção à morte.”

*** Cap. 18 ***

Nietzsche: “– O problema, Josef, é que sempre que abandonamos a racionalidade e recorremos às faculdades inferiores para influenciar os homens, resulta um homem inferior e mais vulgar. Quando diz que deseja algo que funcione, tem em mente algo capaz de influenciar as emoções. Bem, existem especialistas nisso! Quem são eles? Os sacerdotes! Eles conhecem os segredos da influência! Eles manipulam com musica inspiradora, eles nos apequenam com pináculos altaneiros e naves monumentais, eles encorajam o desejo de submissão, eles oferecem a orientação sobrenatural, a proteção contra a morte, até a imortalidade. Mas veja o preço que cobram: escravidão religiosa; reverência pelos fracos; estase; ódio ao corpo, à alegria, a este mundo. Não, não podemos recorrer a esses tranquilizantes, a esses métodos anti-humanos! Precisamos de encontrar formas melhores de aprimorar os nossos poderes da razão.”

abril 25, 2020

Problemas do Estoicismo, de Seneca a Epictetus

Passei os últimos meses à volta de vários livros de Seneca (4 a.C. — 65 d.C) — “De brevitate vitae” e “Epistulae morales ad Lucilium” — e Epictetus (55—135) — "Enchiridon” e “Discursos”. A razão pelo que fiz este investimento tem que ver com um certo encantamento pelo Estoicismo que me perseguia há décadas e que acabaria por aumentar ainda mais com a leitura de “Meditações” de Marcus Aurelius (121—180). Contudo, ao chegar a este ponto, pós-leitura dos textos originais, dos dizeres de cada um, tenho de dizer que o encantamento se desfez. Nem Seneca nem Epictetus me convenceram, antes pelo contrário ditaram o fim da minha procura. Apesar de tal, continuo a reconhecer qualidades em ambos, mas separo-os de Marcus Aurelius, e espero conseguir explicar porquê ao longo das próximas linhas.

Epictetus e Seneca


Mais Religião do que Filosofia
O estoicismo tem sido, do meu ponto de vista, definido erradamente como corrente filosófica. Na verdade, o estoicismo é mais uma religião, e é aqui que reside o seu principal problema. Porque, de uma forma simples, o estoicismo nunca esteve preocupado em estudar e compreender a realidade, a existência, ou sequer as morais. O estoicismo, objetivou muito mais à determinação do que era certo e do que era errado. O pensar sobre ou a reflexão aprofundada sobre causas e motivações pressupõe uma evolução contínua das dinâmicas que sustentam a realidade que não se coaduna com a determinação de certos e errados, de deveres e direitos. Isto faz sentido no âmbito de uma religião, sem qualquer carga pejorativa, já que ela serve na determinação de caminhos de pertença a grupos: “é certo isto, é errado aquilo, és igual a nós porque aceitas o certo e condenas o errado” se “acreditares no mesmo que nós, serás verdadeiramente feliz”, de outro modo “a infelicidade irá perseguir-te para todo o sempre”.

Repare-se como Seneca não está preocupado em discutir o que cria a sensação de passagem de tempo, ou porque sentimos que o tempo passa rápido ou lento, ele tem apenas certezas, e é isso que oferece a quem o quiser ouvir:
“Não é que tenhamos um curto espaço de tempo, mas que desperdiçamos muito dele. A vida é longa o suficiente e foi dada em medida suficientemente generosa para permitir a realização das maiores coisas, se a totalidade dela for bem investida.” In “Da Brevidade da Vida”
Todo o seu discurso assenta na ideia de estar na posse da verdade e de a poder demonstrar, mesmo quando aquilo que diz vai contra aquilo que fazia. Seneca foi um dos principais conselheiros das artimanhas políticas do Imperador Nero e também um dos homens mais ricos de Roma, repare-se nalgumas das frases do “Epistulae morales ad Lucilium”:
“De longe mais importante será viver como se estivéssemos sempre perante o olhar de algum homem de bem; eu já me darei por satisfeito se tu agires sempre como se estivesse a ser observado, uma vez que a solidão é conselheira de todos os vícios.” LIVRO 3, CARTA 25
“Faz o que te digo, pede conselho à filosofia, e ela te convencerá a não te importares com as contas! É esse então o teu problema, é por isso que adias a tua formação:  para não teres de recear a pobreza! E não será a pobreza desejável?” LIVRO 2, CARTA 17
Muitos de nós procuram na religião respostas, pressionados por um desespero criado pela ausência dessas. O melhor exemplo do verdadeiro filósofo foi e continua a ser Sócrates, conhecido pelo homem que fazia perguntas para as quais não tinha respostas. O mundo e nós, continua tudo a ser uma incógnita: de onde viemos e porque estamos aqui? O problema são os nossos receios e fantasmas internos, por sua vez alimentados pela nossa intrínseca necessidade de viver em comunidade. Não podemos viver sozinhos, precisamos dos outros, por isso é mais fácil encaixar no pensamento de um grupo e prosseguir. Porque o pensamento precisa de um corpo biológico para estar vivo, sem corpo não existe pensamento, logo o corpo e as suas necessidades sobrepõem-se inevitavelmente aos desejos existenciais. Assim torna-se preferível atirar para o fundo do nosso interior existencial a voz que clama por repostas, tapando a dúvida com verdades redondas e aceites por todos, concluindo que “viver na ignorância é uma bênção”.

Seneca e Epictetus não pretenderam oferecer respostas à razão por que estamos aqui, nesse sentido nunca quiseram tornar-se gurus religiosos. Ambos reconheceram a complexidade da realidade, e a nossa incapacidade para alcançar a compreensão do todo. Existem alguns princípios enunciados por ambos que servem de guia ao resto do seu trabalho, mas de uma forma geral, ambos se focaram muito mais na moral e comportamento. E se isto nos obriga a reconhecer que de algum modo foram mais do que simples religiosos, quando analisados em detalhe, parecem-nos ainda menos, talvez não menos, mas igualmente pouco relevantes.

Tenho de confessar que o meu primeiro choque com a possibilidade do Estoicismo na ser nada daquilo que eu entendia ser, me chegou tarde e apenas por via da leitura de “A History of Western Philosophy” de Bertrand, não tanto pela forma como ele destrói por completo a Ética de Aristóteles, mas primeiramente pela forma como ignora totalmente Seneca. Bertrand na pequena sumula dedicada ao estoicismo fala quase apenas dos pensadores gregos, dedicando pouco à vertente romana, e nessa falando quase exclusivamente das perspetivas de Epictetus e Marcus Aurelius. A principal razão prende-se com o facto de os romanos em nada terem avançado a filosofia proposta, e terem apenas se dedicado à discussão da moral, ainda que sustentados na base filosófica grega. Vejamos então essa base.

Fatalismo, a base da Contradição Estoica
O principal ataque às ideias dos estoicos surge normalmente por causa do determinismo. Os seus primeiros proponentes, os gregos Zenão (333 — 263 a.C.) e Crísipo (280 —208 a.C.), enredaram-se num conjunto de ideias que numa primeira linha parecem imensamente atrativas mas quando escrutinadas desembocam em paradoxos.

Zenão, o impulsionador da doutrina, defendeu a felicidade humana com base no abandono da emoção — emergente das paixões e posses —, contudo para garantir esse abandono era preciso uma recompensa lógica, para o que se agarrou a ideia de que tudo é comandado pelo destino, nada do que façamos alterará o percurso das coisas. Quando se acredita na ausência de esperança, na ausência de possibilidade de se atuar sobre as condicionantes, não é apenas a resignação que se instala, com esta emerge algo poderoso, a perda do medo, que acaba por oferecer uma força tremenda para continuar a sonhar interiormente.

A base teórica é típica de um helenismo ligado ainda ao misticismo, oferecendo a perspetiva de um mundo feito de elementos — fogo, ar, água, terra — que tudo condicionavam em ciclos. Assim tudo vinha do fogo e tudo voltava ao fogo. O mundo que vivemos é um ciclo eterno, de construção e destruição, não adianta lutar contra isso. De algum modo isto liga-se aos ciclos da vida do Budismo e às suas noções do carma. Mas podemos ligar aqui o próprio cristianismo, apesar de não se apresentar como ciclo, porque recorre à perspetiva narrativa — uma história com princípio, meio e fim — com o paraíso onde tudo termina! O budismo e o estoicismo só em aparência diferem, já que o ciclo continuado é mera fuga à questão do: “e depois do paraíso?”

Crísipo, sucessor de Zenão, foi mais longe. Sendo, de todos os personagens do Estoicismo, aquele que mais se preocupou em criar pensamento estruturado e capaz de ligar todas as esferas da realidade numa corrente filosófica, acabaria sendo o que mais longe levaria a questão do determinismo, exatamente pela necessidade de sustentar a argumentação. Assim para Crísipo, segundo Cícero:
“Se houver algum movimento sem uma causa, nem toda proposição será verdadeira ou falsa. Pois aquilo que não tem causas eficientes não é verdadeiro nem falso. Mas toda a proposição é verdadeira ou falsa. Portanto, não há movimento sem uma causa. E se é assim, todos os efeitos devem a sua existência a causas anteriores. E se é assim, todas as coisas acontecem pelo destino. Segue-se, portanto, que o que quer que aconteça, acontece pelo destino.” In “Tratado do Destino” (44 a.C.)
Se tiverem curiosidade em aprofundar esta ideia, recomendo vivamente a série de televisão “DEVS” (2020) de Alex Garland que usa exatamente este princípio para estruturar toda a epistemologia de suporte ao universo da série.
Mais tarde Epictetus proporia uma variação deste determinismo no seu Manual do Estoicismo (Enchiridion), dividindo o mundo em duas metades, logo na primeira regra:
“Todas as coisas existentes se dividem da seguinte forma: as que estão sob o nosso poder, e as que não estão.
Em nosso poder estão o pensamento, o impulso, a vontade de adquirir e a vontade de evitar e, resumidamente, tudo que resulta das nossas ações.
As coisas que não estão sob nosso poder incluem o corpo, a propriedade, a reputação, o cargo e, resumidamente, tudo aquilo que não resulta das nossas ações.
As coisas sob nosso poder são, por natureza, livres, não encontram obstáculos à sua frente, não são por nada limitadas; já as coisas que não estão sob nosso poder são fracas, servis, sujeitas a limitações, dependentes de outros fatores.”
In Enchiridion (135)
E aqui as coisas tornam-se mais complicadas, já que se coloca em convívio aparente, o determinismo e o livre-arbítrio, ou seja a essência do paradoxo do Estoicismo, como diz Bertrand Russell:
“Por um lado, o universo é um todo rigidamente determinístico, no qual tudo o que acontece é resultado de causas anteriores. Por outro lado, a vontade individual é completamente autónoma e nenhum homem pode ser forçado a pecar por causas externas.” In “A History of Western Philosophy” (1945)
No entanto, é aqui mesmo que que reside muito do interesse atual no Estoicismo, nesta conexão entre a inevitabilidade e a liberdade interior, já que a ausência de esperança no exterior, induz à perda de medo interior, e desse modo aumenta tremendamente a resiliência. Isto é tanto mais relevante quanto mais dura for a realidade vivida. Podemos ver isto mesmo em ação na terapia psicológica — Logoterapia — proposta por Viktor Frankl para lidar com o horror da vivência no campo de concentração de Auschwitz, que propõe:
“em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.” Em Busca de Sentido (1946)
Para este efeito, Frankl usa a divisão de proposta por Epictetus, entre o exterior e o interior. Em que podemos estar condenados por esse exterior, mas só nós podemos decidir sobre o interior. Assim, Frankl acaba a demonstrar que o paradoxo aparente do Estoicismo faz sentido em termos psicológicos, já que a ausência de medo faz nascer uma nova esperança:
“O prisioneiro que perdeu a fé no futuro — o seu futuro — estava condenado. Com a sua perda de crença no futuro, perdia também o seu domínio espiritual; deixava-se declinar e ficava sujeito à decadência mental e física.” in "Em Busca de Sentido" (1946)
Ou seja, e para terminar esta parte, nem tudo é menosprezável, e não é por acaso que o estoicismo serviria na definição do cristianismo, e o próprio cristianismo acabaria a durar séculos. Na verdade, em face da adversidade, estas abordagens ajudam, consolam, mantém-nos despertos para a possibilidade de algo melhor. O problema é que estas abordagens requerem a manutenção dessa adversidade, e se a vida é feita de adversidades, ela pode ser mais do que isso, por isso não se estranhe todo o caráter opressivo que a Igreja Católica soube tão bem imprimir no universo — desde o salvador torturado e preso numa cruz à imponência da sua arquitetura e claro, talvez o mais importante de tudo, a definição detalhada do Inferno e Purgatório — pois sem isso a teorização que a suporta não teria qualquer adesão.


A Psicologia da Ética e Modelos
Já acima falei do problema de Seneca, do “olha para o que eu digo, não para o que eu faço”, algo que não se aplica a Epictetus, este que nasceu como escravo, e teve de fugir de Roma por ordem do Imperador Domiciano que proscreveu todos os filósofos por volta de 93 d.C. Contudo, ambos se apresentam como portadores de verdade, e a questão nem sequer é saber se dizem ou não a verdade, a questão é saber se importa.

Vejamos aquilo que nos diz a psicologia sobre o modo como aprendemos a lidar com o mundo. A principal base da nossa ação constrói-se pela imitação. Tendemos a imitar os comportamentos daqueles que reconhecemos como gratificantes. Ou seja, se vir alguém roubar e viver uma boa vida sem nunca ser punido, enquanto ser humano tenderei a seguir esse caminho. Por outro lado, se vir que esse comportamento é efémero, que tarde ou cedo se é apanhado e punido, compreendo que é um comportamento que não devo seguir. O mesmo acontece quando vejo alguém que estuda e faz uma licenciatura, e depois tem um bom emprego, versus quem desiste de estudar e é depois fracamente recompensado.

Isto difere da venda de ideias sobre o que é certo ou errado, já que o certo e errado surge apenas pela avaliação das consequências, não da autoridade de quem fala. Que importa que os pais ou os governos digam que é importante estudar e fazer uma licenciatura, se depois as pessoas conseguem empregos piores, ou nem sequer emprego conseguem? Ou de que serve o pai dizer para não roubar ou não bater, e depois bater na mãe?

É por isso que é estranha a ideia dos gurus de auto-ajuda, dos pregadores de qualquer tipo, que pregam ideias que não praticam. Repare-se no paradoxo de termos um guru que vive dos rendimentos dos livros que escreve e das conferências que faz, que lhe permitem viver numa bela casa, com um bom carro, acesso a médicos e férias em bons hotéis e que depois vem clamar junto de pessoas na miséria, sem empregos, ou empregos precários, pessoas sozinhas sem família, ou com famílias disfuncionais, como se devem comportar para serem felizes. De que servem essas indicações? Essas pessoas e famílias precisam de saber como se comportar para serem felizes ou precisam de oportunidades para conseguirem sair da situação em que estão? Essas pessoas não precisam que lhes digam que a felicidade está dentro delas, precisam antes que lhes mostrem como sair da situação, que lhes proporcionem oportunidades para o efeito, e não serem usadas como coitadinhos a quem o guru explica o que é o mundo.

No entanto os gurus sobrevivem, porque produzem um discurso retórico que une os membros de uma comunidade e os faz sentir que estão todos no mesmo barco, ainda que cada um tenha de se desenrascar como puder. Reparem como as seitas e religiões emergem, não é graças ao pregador, elas vão buscar pessoas à comunidade que oferecem como exemplos de cura ou de ultrapassagem de problemas. Porque efetivamente, as pessoas não se deixam convencer por simples pregadores, sejam eles quem forem, as pessoas são convencidas pelo grupo que segue o pregador, “se os outros fazem?”, “se os outros continuam a ir atrás?”, “devem ter visto algo que eu ainda não vi”, “sabem algo que ainda não sei”, ou ainda, “não me interessa nada disto, não acredito, mas se sair deixarão de me falar, fico sozinho”. Isto não é uma questão de professor-aluno, o pregador não está a ensinar as suas audiências a tornarem-se pregadores. O que ele supostamente ensina, ou a razão por que as pessoas o vão ouvir, é porque ele detém, segundo a comunidade, um segredo, uma formula para a felicidade.

Na verdade, questões éticas e morais, não podem ser ensinadas por decreto, precisamos de as praticar e exemplificar, e sendo algo prático, mudam no tempo. Os decretos tendem a manter-se em registo para todo o sempre, as práticas e comportamentos evoluem, variam em função das condições de cada local e cada momento. Aquilo que era certo ou errado no tempo de Seneca é distinto do que é certo ou errado hoje, basta pensar na condição dos escravos ou da mulher nesses tempos.


Para finalizar, quero voltar a Marcus Aurelius, e a "Meditações", que é um livro diferente dos textos de Seneca ou de Epictetus. O livro de Aurelius foi escrito como registo diário íntimo, representa o seu pensamento em ebulição e evolução. Aurelius debateu-se com as teorias do estoicismo, defende-as porque quer acreditar nelas, mas debate-se com elas exatamente pela posição que ocupava tanto como general, como político e claro Imperador. Marcus Aurelius não pregou para que seguissem o que ele pensava, os seus escritos foram o escape que encontrou para lidar com aquilo que sabia estar errado em muito do que sentia. A escrita era a forma de lidar com a realidade bastante mais complexa do que a teoria. O seu papel enquanto modelo de moral servirá na medida daquilo que fez enquanto imperador, não daquilo que escreveu.



Nota: Não sou formado em filosofia. Estas notas dizem apenas respeito às leituras que fui fazendo e ao modo como as interpreto face ao restante conhecimento que detenho em distintos campos do saber. Deste modo assumo desconhecer grande parte da discussão filosófica em redor do Estoicismo. As ideias apresentadas dizem respeito a uma leitura de obras muito restrita.

abril 21, 2020

“Devs” (2020)

Alex Garland deu-nos anteriormente o livro “The Beach” (1996), depois escreveu os filmes de “28 Days Later” (2002) e “Sunshine” (2007), o videojogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2010) e o guião para “Never Let Me Go” (2010). Em 2014 fez direção pela primeira vez com “Ex Machina” e novamente em 2018 com “Annihilation”. Todas estas obras, sem exceção, possuem em si uma parte do talento de Garland. Mesmo em adaptações como “Never Let Me Go” do nobel Kazuo Ishiguro,  ou “Annihilation” de Jeff VanderMeer é possível sentir um pulsar que nos transporta até ao universo particular de Garland. “Devs” (2020) não é diferente, antes pelo contrário, é puro Garland estendido por 8 episódios, 6 horas de experiência audiovisual. Depois de começar, somos enredados numa trama de ficção-científica que cruza todos os nossos dilemas com as grandes empresas tecnológicas atuais e o desenvolvimento de um conceito hipotético que atiça a nossa curiosidade a ponto de só conseguirmos descansar nos créditos do último episódio.
O conceito apresentado é distinto, surpreende-nos e puxa pela nossa imaginação, contudo pouco depois percebemos como é posto em prática, o que o sustenta, no caso o determinismo, e começamos aos poucos a desligar por via de alguma descrença, mas Garland antecipa claramente isso e traz para a discussão a antítese do multiverso. Somos assim brindados com várias discussões instigantes sobre ambas as possibilidades e acompanhamos as mesmas até ao final. Não posso dizer que seja totalmente inovador, além do choque entre as ideias, muitas dessas têm sido amplamente discutidas, tanto nos diferentes media — livros, jogos e filmes — como na Física e Filosofia ao longo de séculos.
Provavelmente existe aqui a funcionar todo uma arte própria de Garland, tanto no domínio da escrita como no domínio do universo atmosférico da série que se edifica em cenários, música e fotografia absolutamente graciosos. Não posso dizer o mesmo das interpretações que têm momentos muito bons, mas apresenta também alguns momentos mais fracos. No entanto, a série consegue elevar-se a um nível de erudição raramente visto em televisão e manter a atração audiovisual intacta.

Deixo duas estrofes do poema "Aubade" de Philip Larkin, recitados por um dos personagens, já perto do final, que espero que sirvam para vos abrir o gosto e instigar a ir ver a série.
“I work all day, and get half-drunk at night. 
Waking at four to soundless dark, I stare. 
In time the curtain-edges will grow light. 
Till then I see what’s really always there: 
Unresting death, a whole day nearer now, 
Making all thought impossible but how 
And where and when I shall myself die. 
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.” 
 
The mind blanks at the glare. Not in remorse  
—The good not done, the love not given, time  
Torn off unused—nor wretchedly because  
An only life can take so long to climb 
Clear of its wrong beginnings, and may never;  
But at the total emptiness for ever, 
The sure extinction that we travel to 
And shall be lost in always. Not to be here,  
Not to be anywhere, 
And soon; nothing more terrible, nothing more true. 


       excerto de "Aubade" (1980) de Philip Larkin

março 24, 2020

“O Mar, o Mar” de Iris Murdoch

“O Mar, o Mar” (1978) é um romance feito de múltiplas camadas concebidas num entrosamento de modos, o explícito, ocupado com as necessidades narrativas de manter a história viva e apelativa ao longo de centenas de páginas, e o implícito, de questionamento reflexivo inerente à veia filosófica da autora. Murdoch foi professora de filosofia na Universidade de Oxford, sendo reconhecida tanto pela sua ficção como pelo seu trabalho filosófico. Dito isto, o livro não é nenhum tratado de filosofia, mas não deixa de ser uma obra imensamente densa, talvez até mais pela profundidade descritiva do que propriamente pelas argumentações. Nesse sentido, a escrita de Murdoch recorda Proust através do modo como descreve cenas interiores, pensamentos e memórias, na sua miríade de detalhes, como avança e recua dentro dos personagens, pondo a nu a diferença liminar entre o real exterior e alegadamente objetivo, e o mundo subjetivo criado na cabeça de cada um de nós.
O protagonista é um encenador de teatro, célebre, que na entrada da idade de reforma se retira de Londres para habitar sozinho, numa casa à beira-mar completamente isolada, sem eletricidade nem água. Apesar de desejar estar sozinho, Charles Arrowby acaba por encontrar muitos dos principais personagens da sua vida, tanto recente, como da sua infância, o que vai provocar enormes tumultos interiores, que tornarão evidente o tipo de pessoa que temos em cena, dando a entender que existe ali pouco que se possa qualificar de boa pessoa, mas no entanto vamos avançando e compreendendo que má pessoa também não é, porque no fundo é apenas um humano. Murdoch penetra pelo pensamento de Arrowby adentro e dá-nos a ver e a sentir o mundo da indecisão, da incerteza, da dúvida, do questionamento e ao mesmo tempo o da certeza, do autoritarismo, do desprezo e da discriminação. A leitura senta-nos no ombro do personagem e deixa-nos ouvir e sentir tudo o que ele pensa, o que acaba por inevitavelmente se colar a nós, às nossas próprias incertezas e desejos. Não admira que Murdoch seja comparada a Dostoiévski ou Tolstói, ou nutra grande amor por Shakespeare.

A escrita apesar de apresentar um vocabulário acessível é bastante densa, mas é exatamente por meio dessa densidade que se produz uma aura reflexiva que nos transporta continuamente para o domínio do pensar. Apesar de toda a ação se passar numa casa junto a uma praia de rochedos em que os personagens podem banhar-se, passamos a maior parte do tempo dentro de ideias, quase desligados da realidade espacial-temporal, com muitas cenas a fazer-nos recordar os mundos-história dos filmes de Ingmar Bergman.

Existem algumas partes que me parecem interessantes reter, nomeadamente o modo como olham para a arte, no caso particular do teatro, mas também como discutem a nossa ilusão de realidade, ou ainda como nos introduz à discussão dos nossos anseios e desejos. Aliás, para mim, todo o livro acaba sendo isso, uma introdução aos problemas da crença no desejo de Ser. Porque passamos vidas inteiras em busca do nosso próprio eu, de uma suposta felicidade, sem considerar que essa mesma busca, ou essa mesma felicidade, pode não corresponder àquilo que verdadeiramente queremos, mas apenas àquilo que nos parece que verdadeiramente desejamos. É daqui que emergem as maiores incertezas sobre nós mesmos, somos alguém, mas não sabemos que alguém é esse que somos, temos intuições, fazemos inferências e lançamos suspeitas, mas ao longo das nossas vidas vamos aprendendo que muito daquilo porque tanto ansiámos e acabámos por conseguir afinal não era assim tão importante...

Deixo alguns excertos em inglês, a única versão digital que tenho, apesar de ter lido o livro na edição da Relógio d'Água numa tradução para português de José Miguel Silva.

Sobre o teatro:
“The theatre is an attack on mankind carried on by magic: to victimize an audience every night, to make them laugh and cry and suffer and miss their trains. Of course actors regard audiences as enemies, to be deceived, drugged, incarcerated, stupefied. This is partly because the audience is also a court against which there is no appeal. Art’s relation with its client is here at its closest and most immediate. Drama must create a factitious spell-binding present moment and imprison the spectator in it. The theatre apes the profound truth that we are extended beings who yet can only exist in the present. It is a factitious present because it lacks the free aura of personal reflection and contains its own secret limits and conclusions. Thus life is comic, but though it may be terrible it is not tragic: tragedy belongs to the cunning of the stage. Of course most theatre is gross ephemeral rot; and only plays by great poets can be read, except as directors’ notes. I say ‘great poets’ but I suppose I really mean Shakespeare. It is a paradox that the most essentially frivolous and rootless of all the serious arts has produced the greatest of all writers.”
Nós e a realidade
“We are such inward secret creatures, that inwardness is the most amazing thing about us, even more amazing than our reason. But we cannot just walk into the cavern and look around. Most of what we think we know about our minds is pseudo-knowledge. We are all such shocking poseurs, so good at inflating the importance of what we think we value.”
“Time can divorce us from the reality of people, it can separate us from people and turn them into ghosts. Or rather it is we who turn them into ghosts or demons. Some kinds of fruitless preoccupations with the past can create such simulacra, and they can exercise power, like those heroes at Troy fighting for a phantom Helen.”
“in a few weeks or a few months you’ll have run through it all, looked at it all again and felt it all again and got rid of it. It’s not an eternal thing, nothing human is eternal. For us, eternity is an illusion. It’s like in a fairy tale. When the clock strikes twelve it will all crumble to pieces and vanish.”
“The worshipper endows the worshipped object with power, real power not imaginary power, that is the sense of the ontological proof, one of the most ambiguous ideas clever men ever thought of. But this power is dreadful stuff. Our lusts and attachments compose our god. And when one attachment is cast off another arrives by way of consolation. We never give up a pleasure absolutely, we only barter it for another.”

Nota quantitativa no GoodReads.

outubro 26, 2019

Romances que nos questionam

Ben Roth é professor de Filosofia em Harvard, onde dá aulas de escrita baseadas em filosofia aos alunos dos primeiros anos, sendo o seu domínio de especialização a Narrativa do Eu. Para os seus alunos, Roth criou um fluxograma de recomendações de leitura no domínio dos romances filosóficos que foi agora partilhado na rede.  O fluxograma é enorme, mas é excelente no sentido em que proporciona um conjunto de livros de reconhecida qualidade e conteúdo reflexivo por meio de orientações gerais que ajudam a quem quiser aventurar-se neste tipo de leituras. Gostei particularmente de uma dessas recomendações — O romance filosófico mais subestimado — sem dúvida um dos romances que não me canso de recomendar. Mas existe ali muito mais, muitas delas de inestimável valor, algumas pela forma, mas a maior parte pelo conteúdo.


Tendo em conta que o fluxograma é enorme, podem descarregar o JPG, ou então aceder à versão PDF aqui abaixo, usando o zoom para perscrutar todo o gráfico. Recomendo esta segunda abordagem para uma visão geral. Se desconhecerem as capas e precisarem de ler alguns dos títulos menos legíveis, será melhor descarregar o jpg ou pdf porque o leitor aqui embebido não permite ampliação total.

Fluxograma de Ben Roth

setembro 08, 2019

Para evitar a Crise Existencial evitem a Narrativa

Kieran Setiya é professor de filosofia no MIT e escreveu o livro “Midlife: A Philosophical Guide” (2017) que se tornou uma espécie bestseller no tema das crises existenciais da meia-idade. Li o artigo que deu origem ao livro (passei depois os olhos pelo livro mas acrescentava pouco mais) e deixo aqui as linhas principais defendidas pelo autor, sendo que a razão que me levou a realizar esta partilha é de que a conclusão maior vai contra tudo aquilo que tenho feito e estudado nas última décadas. E o pior é que conhecendo tão bem como conheço o modo de organização da vida no formato narrativo, tendo a dar a razão a Setiya. Diz-nos ele que não podemos resolver a crise se continuarmos a tentar construir histórias sobre aquilo que fomos, somos ou queremos ser. Para Setiya, o problema assenta na diferença entre os valor atribuído ao que fazemos, entre o télico e atélico, ou seja, entre "ter um fim" ou ser simplesmente "interminável".


Como  surge a crise existencial de meia-idade:
“As we have seen, what elicits the crisis, for many, is a confrontation with mortality. Something about the fact that we will eventually die, that life is finite, makes us feel that everything we do is empty or futile. It is essential to the experience I have in mind, however, that this sense of emptiness or futility is not an apprehension that nothing matters: that there is no reason to do one thing instead of another. Even in the grip of the crisis, I know that there is reason to care for those I love, read the books and watch the movies I admire, do my job well, if I can, be responsible, help and not do harm. It does not seem worthless to prevent the suffering of others, or impossible to justify action. Yet somehow the succession of projects and accomplishments, each one rational in itself, falls short.”
Isto levaria a pensar que o problema é a falta de narrativa:
"What is missing is narrative unity: a story of development and progress over time, not just of repetition. "
Mas Setiya diz-nos:
“Imagine someone who accepts the underived value of intellectual progress. It matters in itself, according to her, whether we answer scientific questions and solve mathematical problems. These things are worth doing apart from their relation to anything else. As she sees it, the value of discovering truths and proving theorems does not derive from their technological applications. It does not even derive from the prior value of knowing. What matters most fundamentally is finding out. Her days are dedicated to pure science, replete with activities of these kinds.”
“There are problems involved in living an episodic life, a life devoted to consecutive, limited projects, but the answer does not lie in the construction of a larger story into which the episodes fit. My description of the scientist anticipates this point, since it does not rest on the absence of an over- arching narrative. Even if she has a consuming goal, the search for a grand theory of widgets, and she is convinced that the search has underived value, the scientist may wonder what, in the end, she will have achieved. Suppose she has the final theory. Now what?”

Preparando a resposta:
A) Telic: “What I will call a “telic activity” includes in its nature a terminal point, the point at which it will be finished and thus exhausted. The scientist’s activities are telic in this sense. They are finished, and exhausted, when she has proved the theorem, discovered the truth, solved the scientific problem. Walking home tonight is a telic activity, since it aims at getting home. So is writing this essay, since it is over when the essay is done. Almost anything we would be inclined to call a “project” will be telic: buying a house, starting a family, earning a promotion, getting a job. These are all things one can finish doing or complete.”
B) Atelic: “Importantly, however, not all activities are like this. Some do not aim at a point of termination or exhaustion: a final state in which they have been achieved and there is no more to do. For instance, as well as walking home, getting from A to B, you can go for a walk with no particular destination. Going for a walk is an “atelic” activity. The same is true of hanging out with friends or family, of studying philosophy, of living a decent life. You can stop doing these things, and you eventually will, but you cannot finish or complete them in the relevant sense. It is not just that you can repeat them, as you could repeatedly walk home, but that they do not have a telic character. There is no outcome whose achievement exhausts them. They are not in that way limited.” 

A explicação:  
“This is what disturbed the scientist: not that her ends had only derivative value, but that they were projects she would complete, one after another. Hence the feeling of repetition and futility. Again and again, her engagement with what she cares about removes it from her life, as a completed task, and she is forced to start over. (..) [the] work is devoted to destroying its own purpose. It is not a mistake to have ends like this. But it is a mistake for them to dominate one’s life.”
“the appeal to telic ends explains the connection between death and the midlife crisis. Pausing in the midst of the life, in the rush of demands and deadlines, I know that I am half-way through. Death is not imminent. I am not afraid that I will not finish the projects I am engaged in right now. But the best I can hope for is another forty years. In the end, my works, whatever they count for, will be numbered. This is distinctive of telic ends. One asks how many, not how much. How many essays published? How many books? How many students taught? To think about the finitude of life in the face of death is to see that one’s ends are telic, if they are. It is in this mood that I imagine looking back, counting my achievements and failures, wondering “What do they add up to, after all?” 
"If the problem is that our ends are telic, we can see why death elicits the crisis and why immortality does not help. Gaining infinite duration does not affect the nature of our projects. It does not change how we engage with them; nor does it give us atelic ends. Unlike the diagnosis in terms of derivative value, this argument explains how the midlife crisis involves our relation to time (..) So long as your new ambitions are telic, however, they will at most distract you from the structural defect in your life. Fast cars and wild affairs are not the answer.”

Como proceder:
“You can resolve the midlife crisis, or prevent it, by investing more deeply in atelic ends. Among the activities that matter most to you, the ones that give meaning to your life, must be activities that have no terminal point. Since they cannot be completed, your engagement with atelic ends will not exhaust or destroy them.”
“Instead of studying Aristotle in order to write an essay, which is a telic end, one writes an essay in order to study Aristotle (..) Do not work only to solve this problem or discover that truth, as if the tasks you complete are all that matter; solve the problem or seek the truth in order to be at work. When you relate to it in this way, your life is not a mere succession of deeds. There is no pressure to feel that the activities you care about are done with, one by one, and so to ask, repeatedly, what next? The projects you value may end but the process of pursuing them does not.”

A demonstração final da irrelevância da narrativa:
“If this is the answer to the midlife crisis, it is clear why narrative is not the point. The defect of the episodic life is not that the episodes do not fit into a larger structure of development and growth, but that their temporal structure is telic. The remedy is to engage in them for the sake of atelic ends, in a life that need not have variety, suspense, or drama. The contemplative life may be quite dull from a novelist’s point of view. But if it is shaped by a concern for contemplation that is not purely instrumental, it is not subject to the sense of exhaustion and emptiness that marks the critical phase.”
“A focus on atelic ends, which have no future goals, may even conflict with the desire for narrative. Stories differ in many ways, and I have no theory of narrative to propose. But it tends towards closure: beginnings, middles, and ends. If what you care about most of all is that your life have a certain arc, then in travelling along that arc you are moving towards a point at which the arc is complete and your purpose is lost. If you are telling the story of your life, and you hope to avoid the midlife crisis, better not to tell a story of this kind.”

E assim temos a Filosofia a tentar responder a algo que a Psicologia continua a ter problemas em desvendar. Por outro lado, demonstra que estudar filosofia, que estudar a cultura que nos transforma todos os dias naquilo que somos, ainda tem muito a dar a sociedade, ao contrário daquilo que os colegas das exatas teimam em propagandear.

junho 23, 2019

A ciência de Steven Pinker, e dos seus

Uma rápida passagem pelas discussões genéricas em redor de “Enlightenment Now” passa a ideia de que uma boa parte não o leu, focando-se mais nas entrevistas e textos promocionais da obra do que no texto em si. Parece existir uma fixação da elite intelectual, mais de esquerda, em atacar os dados quantitativos e otimistas de Pinker, e uma fixação da elite científica, mais à direita, em defender esses mesmos dados. Quanto ao progresso visível nos dados, passo a discussão, Pinker não diz nada que Hans Rosling não tenha já dito em “Factfulness: Ten Reasons We're Wrong About the World – and Why Things Are Better Than You Think” (2018) (análise). Por outro lado, é tonto, para não dizer algo mais rude, ver Pinker ao longo de todo o livro a acicatar estes dois grupos de pessoas, querendo ele próprio colocar-se de fora, citando amiúde a seminal obra de CP Snow “The Two Cultures” (1959) (análise), mas de cada vez que o faz só se afunda mais num desses lados. Repare-se que estas duas culturas — que prefiro sintetizar pelos perfis dos modelos mentais, lógicos e ambíguos —, não são uma invenção do século XX, elas estão presentes desde a oposição entre Platão e Aristóteles, passando pela oposição entre Descartes e Hume, chegando aos estereótipos delineados por William James — “tender-minded” vs. “tough-minded” — que C.P. Snow opta por diferenciar como — “cientistas” e “intelectuais literários” — e que podemos apresentar, nos dias de hoje como — positivistas e interpretivistas.

Este mapa de conceitos explica muitos dos problemas do livro de "Enlightenment Now" (2018). No entanto se Pinker se coloca do lado do positivismo para defender o seu modo de ver, quando lhe interessa passa para o lado do interpretivismo, nomeadamente no que toca a atacar académicos como Bauman ou Foucault ou filósofos como Nietzsche.

Dito isto, teria pouco mais a dizer sobre o livro, porque como já disse Pinker não diz nada, em termos de dados económicos mundiais, que Rosling não diga muito melhor. Por outro lado, ao longo do livro as leituras que vai apresentando sobre esses dados são não só pouco novas, como pouco estimulantes, nomeadamente quando comparadas com as de Yuval Harari (análises dos seus livros). No entanto, não posso deixar de dizer algo mais sobre esta obra, mais concretamente sobre a terceira parte, e em especial os últimos dois capítulos — “Ciência” e “Humanismo — nos quais considero que Pinker destrói completamente a sua credibilidade enquanto académico moderado e conciliador, para não dizer mesmo enquanto académico.


No capítulo sobre Ciência, Pinker ataca diretamente Bauman e Foucault, rotulando-os de pós-modernos, anti-verdade, anti-ciência, anti-dados, tudo rótulos que não colam com nenhum dos autores, mas de que Pinker abusa para assim poder agregar valor ao trumpismo, populismo, conspiracionismo, etc. etc. O pior é que ao fazê-lo, rotulou esses dois autores com estes mesmos rótulos, o que é do muito ponto de vista, não um erro grosseiro, mas uma filha-da-putice (peço desculpa pela linguagem). É inadmissível que Pinker para defender as suas ideias, atire para a lama dois dos mais respeitados pensadores das ciências sociais, duas mentes dotadas de uma capacidade visionária impar. Não vou defender Foucault, que tem andado na boca de muitos, mas sobre o ataque  a Bauman tenho de falar.

Pinker não compreendeu, ou não quis compreender Zygmunt Bauman. Optou por simplesmente pegar nele e metê-lo no saco duvidoso em que estavam Adorno e Horkheimer, levando de arrasto o próprio Foucault. Ao fazê-lo cometeu um erro que destruiu tudo o que tinha para dizer. Adorno era um filósofo da Estética, não era sociólogo, ainda assim não se pode dizer que tenha só dito banalidades, muito do seu discurso de ataque à Arte Moderna na relação com o Nazismo faz algum sentido, claro que no final as suas teorias valem o que valem, falo extensivamente sobre isto na análise do “Doutor Fausto” (1947) de Mann (análise). Mas Bauman não era crítico de arte, foi um dos mais importantes sociólogos do século XX, judeu-polaco fugido dos Nazis para União Soviética, o seu impacto cresceu durante toda a segunda metade do século, recebendo as mais diversas premiações e condecorações científicas. Pinker comete um erro que vejo amiúde, misturar a discussão sobre Arte pós-moderna com a análise sociológica que define o tecido social como pós-modernista.

Vejamos então como para defender a sua visão otimista Pinker opta por dizer que a ciência não trouxe mais guerra, antes o contrário, e por isso não aceita que Bauman veja os nazis, o Holocausto, como fruto do Iluminismo. Ora, em primeiro lugar, isso mesmo diz Bauman, a evolução científica trouxe mais paz, mas isso não serve para eliminar a ciência da leitura, antes serve sim para tornar o Holocausto uma aberração ainda maior. Pinker do alto do seu racional lógico é incapaz de aceitar a anomalia à regra. Repare-se então como o tamanho e a brutalidade do que foi feito no Holocausto não é igual a nada na História anterior. Desde logo aqui seria preciso questionar-nos, então porquê agora? Mas Pinker, em vez de questionar, atira para o lado, do mesmo modo como faz noutros assuntos ao longo do livro, e menoriza mesmo, dizendo sobre o Holocausto apenas e só que racismo sempre existiu.

É preciso ler Bauman, ler como ele desmonta toda a máquina Nazi desde a burocracia à criação de rotina e desumanização, todo o modo como se constrói o distanciamento moral do ato violento. Nada disto era possível noutro tempo, porque nunca antes houvera civilizações tão racionalmente avançadas e organizadas para criar uma máquina que funcionasse sem controlo central, em cadeias autónomas. Repare-se como passados 75 anos não se sabe se a ordem para uma Solução Final chegou alguma vez a existir, pelo menos registos escritos não existem (ver “Shoa” (1985) análise), porque talvez a ordem nunca tenha mesmo sido proferida, mas tenha resultado de um conjunto de ideias, ordens, pressões, que se foram amontoando e culminaram em algo que provavelmente ninguém conseguiria sequer imaginar enquanto sujeito humano normal, e sim, a maior parte daqueles alemães eram pessoas normais, empáticas, com aversão à violência, mas o sistema conseguiu furar essas barreiras do humano. Repare-se ainda no modo como a racionalização científica atuou sobre a ideia de raça, não pela simples ideia da diferenciação de raças, mas pela lógica e causalidade, como fica explanado num excerto de Goebbels que Bauman cita:
"There is no hope of leading the Jews back into the fold of civilized humanity by exceptional punishments. They will forever remain Jews, just as we are forever members of the Aryan race." Goebbels
Ou seja, o racional está ali, não há como transformar judeus em arianos, por isso só nos resta aniquilá-los. A razão é lógica, só a compaixão poderia derrubar este racional, algo completamente inaceitável num sistema brutalmente lógico como o Nazi. Veja-se como as pessoas foram selecionadas para ser levadas para os campos, no caso de judeus regulares era direto, mas para aqueles que tinham casado fora do reduto judeu, criou-se uma fórmula de cálculo das gerações até às quais se contava o parentesco e a presença de sangue judeu. Isto não é algo que um grupo de simples racistas se lembrasse de fazer, isto é feito assim para garantir a solidez da razão lógica, inquestionável, justificando plenamente a ação (leia-se “La Storia” (1974) (análise)).

É muito triste ver Pinker a desancar em Bauman e Foucault, dizendo barbaridades como o facto de eles não utilizarem dados quantitativos, ou de se dedicarem a meras abstrações (sendo a abstração o reino por excelência do racionalismo e positivismo) e depois pondo-os no mesmo saco de comentadores de jornais, e extremistas que atacam a ciência a partir do seu mero fervor religioso, ou simplesmente, porque financeiramente não lhes dá jeito, como no caso dos Republicanos e o aquecimento global.

Mas não posso dizer que me tenha surpreendido totalmente, Pinker é psicólogo, mas o seu discurso está completamente imbuído de positivismo, mesmo que ele vá dizendo amiúde que a ciência é um contínuo refinar de hipótese e teses, amiúde vai dizendo que a ciência é a última verdade. Ora um posicionamento destes é inaceitável. Não podemos querer tudo, não podemos querer fazer da ciência religião e política, porque ela nunca quis tal lugar. Sim, vivemos tempos de Humanismo, em que as religiões caíram e resta-nos a ciência, mas usemos a ciência para nos ajudar, não para nos controlar. Aliás, é isso mesmo que se discute em “Doutor Fausto”, o problema da racionalização é que impede o subjetivismo, levado ao extremo seremos todos tão racionais quanto iguais, e nisso a única coisa que poderemos ganhar é o fim da nossa liberdade interior.

No fundo Pinker ataca todos, tanto os que ousam duvidar do discurso científico, como aqueles que duvidam de tudo ou simplesmente são lunáticos, e assim acaba a juntar-se à turba de lunáticos, atirando indiscriminadamente sem olhar a quem. Se alguém ousa falar mal da ciência, deve ser imediatamente excomungado. Esquece Pinker que a ciência só existe enquanto criação humana, não nos foi enviada por nenhuma entidade exterior e divina. Como tal a ciência tanto nos dá a Penicilina como nos dá Hiroshima. Não se pode simplesmente contorcer o discurso, porque se não não estamos a falar de ciência, mas de política, de aniquilação do pensamento daqueles que não podem exercer pensamento crítico.

No fundo, falta a Pinker tudo aquilo que ele passa mais de metade do livro a pregar: abertura suficiente para reconhecer que só podemos viver em paz se nos aceitarmos uns aos outros nos diferentes modos de viver. Porque o progresso científico sendo um ganho fenomenal para a raça humana, deve evoluir ao ritmo que for possível, e não ao ritmo que teoricamente, ou racionalmente, nos pareceria desejável.  Para fechar, deixo um apanhado do último capítulo, que entretanto tinha colado no Facebook, e que julgo falar por si, sobre o que podem esperar deste livro, em termos de cientificidade:
“If one wanted to single out a thinker who represented the opposite of humanism (indeed, of pretty much every argument in this book), one couldn’t do better than the German philologist Friedrich Nietzsche”
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“Nietzsche helped inspire the romantic militarism that led to the First World War and the fascism that led to the Second.”
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“Nietzsche posthumously became the Nazis’ court philosopher”
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“The link to Italian Fascism is even more direct”
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“The connections between Nietzsche’s ideas and the megadeath movements of the 20th century are obvious enough: a glorification of violence and power, an eagerness to raze the institutions of liberal democracy, a contempt for most of humanity, and a stone-hearted indifference to human life.”
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“So if Nietzsche’s ideas are repellent and incoherent, why do they have so many fans? (..) A sample: W. H. Auden, Albert Camus, André Gide, D. H. Lawrence, Jack London, Thomas Mann, Yukio Mishima, Eugene O’Neill, William Butler Yeats, Wyndham Lewis, and (with reservations) George Bernard Shaw,”
..
“he was a key influence on Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Jacques Derrida, and Michel Foucault, and a godfather to all the intellectual movements of the 20th century that were hostile to science and objectivity, including Existentialism, Critical Theory, Poststructuralism, Deconstructionism, and Postmodernism.”
..
“the [Nietzsche] mindset has sat all too well with all too many of them. A surprising number of 20th-century intellectuals and artists have gushed over totalitarian dictators, a syndrome that the intellectual historian Mark Lilla calls tyrannophilia (..) Ezra Pound, Shaw, Yeats, Lewis (..) H. G. Wells (..) Sartre, Beatrice, Sidney Webb, Brecht, W. E. B. Du Bois, Pablo Picasso, Lillian Hellman (..) Foucault, Louis Althusser, Steven Rose, Richard Lewontin (..) Graham Greene, Günter Grass, Norman Mailer, Harold Pinter, Susan Sontag"
Atente-se na irracionalidade dos pesos colocados nesta interpretação, pois aqui Pinker esquece completamente a sua preciosa busca pela verdade, pelos dados de suporte. Para Pinker, um movimento de transformação global da sociedade, em que a ciência tudo revoluciona pela força da tecnologia colocada ao serviço da industrialização, não tem qualquer relação com o Holocausto. Mas um simples professor universitário que passou por várias crises de insanidade, pode perfeitamente ser o responsável pelas guerras mais devastadoras até à data.

Leituras adicionais recomendadas:
The World's Most Annoying Man, Current Affairs, Maio 2019
Unenlightened thinking: Steven Pinker’s embarrassing new book is a feeble sermon for rattled liberals, New Stateman, Fevereiro 2018

junho 02, 2019

História da Filosofia Ocidental (1945)

O melhor do livro é sem dúvida o derrube de vários mitos e ideias criadas no imaginário ocidental a propósito da extensa linha temporal de filósofos que liga Sócrates a Russell. Pode-se dizer que se aprende imenso, que no final da leitura se vê a produção de conhecimento, e os seus principais responsáveis, a uma luz totalmente distinta. Apesar de sabermos que temos de colocar algum travão nas impressões imediata, já que Russell não se coíbe nunca de ser crítico, mesmo quando está a falar de milhares de anos atrás, em contextos sociais completamente opostos àquele em que hoje vivemos. Leia-se com calma, sempre com o filtro crítico ativo, preparado para por vezes ter de dar a volta a cabeça tentando compreender o que Russell nos quer dizer, mas acima de tudo leia-se pelo prazer de viajar pela história das ideias.


Para se poder criar um bom crivo crítico desta leitura é preciso começar por compreender a bagagem de Russell, alguém que começou por estudar matemática e filosofia naquilo que mais une ambas as disciplinas, a lógica, a partir do que viria lançar a corrente de pensamento que ficou conhecida como: filosofia analítica. Como se depreenderá, este cenário faz de Russell um positivista, e é exatamente por isso que precisamos de ler todo o livro com algumas cautelas. O positivismo funciona a partir de propriedades imensamente relevantes no que toca à criação de conhecimento, assente numa base em que a argumentação lógica é o cerne, contudo padece de alguns problemas. Desde logo, os positivistas assumem que tudo tem de ter uma lógica, que tudo tem de ter uma causa, que o conhecimento se constrói à imagem de uma equação matemática que tudo pode explicar. Na verdade, existem domínios em que esta forma de inquirir faz sentido, contudo não é passível de se poder aplicar a toda a realidade, menos ainda quando entramos na órbita da definição do ser-humano.

Por isso, não é de estranhar que Russell ataque praticamente todos os filósofos que lista ao longo das várias centenas de páginas. Russell realiza a sua História como arguente de provas, estando sempre à procura nas teses dos outros de problemas e defeitos, falhando demasiadas vezes no enaltecimento dos seus feitos e contributos, agravando as acusações realizadas pelo olhar totalmente racional que usa. Ou seja, a sua filosofia analítica não comporta espaço para uma análise contextualizada pelo tempo em que as ideias foram produzidas, interessado apenas no como se comportam essas ideias quando passadas pelo filtro da lógica atual. Deste modo Russell começa logo por atacar fortemente Sócrates, seguido de Platão, e até mesmo Aristóteles que diz admirar, e a quem tece alguns dos maiores elogios, acaba bastante mal-tratado. Por vezes, é preciso dar alguma razão a Russell, a "República" de Platão é realmente um manifesto em defesa do autoritarismo, mas daí a dizer que Sócrates provavelmente nunca existiu e pode ter sido inventado por Platão... Noutro campo, e graças à sua veia crítica, é interessante ver como desmonta os mitos de Esparta, nomeadamente o seu criador Plutarco.

Repare-se também como Russell imbuído do seu espírito lógico descarta totalmente Seneca, numa única linha, simplesmente porque este foi imensamente rico, o que para Russell choca totalmente com os valores professados. Adianto que me deixei convencer alguns dias por esta abordagem, mas refletindo sobre alguns dos personagens mais ricos da nossa contemporaneidade como Warren Buffet ou Bill Gates, podemos ver como o facto de ser rico não é incompatível com os valores estóicos. O problema dos sistemas estritamente lógicos é que não admitem exceções. Do mesmo modo, ou talvez ainda mais agressivamente, Russell ignora completamente a Fenomenologia, apesar de no entanto nos apresentar nos dois últimos autores, toda a escola do Pragmatismo, ainda que essa sua apresentação sirva apenas para demonstrar o quão errada estava, para Russell.

Repare-se que aquilo que Russell apresenta e aquilo que ignora não é fruto de falta de espaço, Russell chega a dedicar um capítulo a Byron, um poeta. Por isso, na verdade aquilo que Russell faz é montar uma História que vá de encontro à sua mundovisão, e nesse sentido fá-lo com grande qualidade, já que não se limita a trabalhar ideias e conceitos, contextualiza, nalguns casos de modo muito profuso, com o sentir social e seus impactos políticos. Aliás, é por isso mesmo que cita Byron, pelo impacto que teve no desenvolvimento do romantismo que por sua vez viria a contaminar todo um século intelectual. Mas não deixo de considerar estranho que alguém profundamente ateu, e determinado na defesa do racional lógico, invista tanto tempo do livro à discussão da filosofia católica. Sobre este último ponto, tenho de dizer que é algo que sempre me tinha feito alguma confusão, o modo como a filosofia estava tão carregada de religião, de deuses ou forças universais que tudo explicavam. Russell interessantemente não embarca, antes expõe o problema como um dos maiores da filosofia: paradoxalmente os pensadores mais racionalistas eram quem mais acreditava numa entidade externa, já que ao definirem o universo como um sistema lógico, em que tudo tinha de obedecer a um conjunto de regras perfeitas, matematicamente puras, os tornava reféns de uma entidade superior, a única capaz de gizar tal molde. Seria apenas com Darwin, e a partir do seu evolucionismo que faria surgir a teoria do Big Bang, que os racionalistas se conseguiriam desprender dessa entidade.

O livro é extenso, mas considero que uma parte demasiada grande foi dedicada à pre-história da filosofia e aos seus intervalos, isto porque ao chegar à Filosofia Moderna, final da era medieval, renascentismo, iluminismo e atualidade, teria sido bom dedicar-lhe muito mais espaço. São muito, demasiado curtas, as discussões sobre Descartes, Spinoza, Hume, Kant, James e Dewey e ficaram de fora nomes que mereciam ter sido chamados à discussão, nomeadamente homens da ciência, que como o próprio Russell diz, passou a fazer parte da própria história da filosofia: Galileu, Newton, Einstein. Por outro lado, a História termina em 1945, o que deixa de fora muito do que se germinava nesses anos e viria a ganhar relevo, para além de toda a segunda metade do século XX. Ainda assim, o trabalho realizado por Russell é imensamente detalhado, mais ainda se tivermos em atenção que foi feito sem recurso à internet que hoje a tudo dá acesso imediatamente, e num tempo de segunda guerra mundial.

Deixo um testemunho do próprio Russell sobre os vieses que lhe apontam no livro, que deixou num apontamento na sua autobiografia:
"I regarded the early part of my History of Western Philosophy as a history of culture, but in the later parts, where science becomes important, it is more difficult to fit into this framework. I did my best, but I am not at all sure that I succeeded.

I was sometimes accused by reviewers of writing not a true history but a biased account of the events that I arbitrarily chose to write of. But to my mind, a man without a bias cannot write interesting history – if, indeed, such a man exists. I regard it as mere humbug to pretend to lack of bias. Moreoever, a book, like any other work, should be held together by its point of view. This is why a book made up of essays by various authors is apt to be less interesting as an entity than a book by one man. Since I do not admit that a person without bias exists, I think the best that can be done with a large-scale history is to admit one’s bias and for dissatisfied readers to look for other writers to express an opposite bias. Which bias is nearer to the truth must be left to posterity.”
 Russell, (1968), "Autobiography", p. 444


Nota: A leitura foi feita entre a edição audio em inglês da Audible e a edição em livro em português da Relógio d'Água. Muitas vezes me vi obrigado a parar o audio, para poder mais tarde retomar a leitura no papel e em maior sossego para confrontar e compreender as ideias.

Resenhas consultadas:
"A History of Western Philosophy reviewed" (1947) de Isaiah Berlin