julho 29, 2018

Monumentos feitos de Livros

Não faltam monumentos, nem tão pouco monumentos dedicados ao Livro, contudo de entre esses trago aqui dois que quando os conheci (ainda que apenas por meio de fotografia), guardei para mais tarde voltar a apreciar e admirar. Não está em causa a forma, o seu impacto estético, belos ou feios, nem tão pouco a mensagem abstrata que muitos dos monumentos normalmente carregam. O que me fez guardar estes registos e trazê-los para esta conversa foi apenas e só os objetos escolhidos — livros e autores em concreto — para figurar em cada um desses monumentos. Ou seja, tendo em conta o número finito de obras que podem figurar em cada monumento, maior ou menor, o que me atrai neles é compreender as razões por detrás das escolhas e das ausências.

"Impressão Moderna de Livros" (2006), na Bebelplatz, em frente à Universidade de Humboldt de Berlim. São 17 livros sobrepostos numa torre de 12 metros, pesando cerca de 35 toneladas.

Começando pelo "Impressão Moderna de Livros", criado em 2006 aquando do Mundial de Futebol na Alemanha, parte de uma campanha de boas-vindas constituída por seis esculturas dedicadas a diferentes áreas da cultura germânica — a imprensa de Gutenberg; os marcos na medicina; a indústria automóvel; os mestres da música (Bach, Beethoven, Brahms ou Wagner), a teoria da relatividade (Enstein); e a bota de futebol (Adolf Dassler, fundador da Adidas). No caso de Gutenberg acabou-se a homenagear não apenas o criador mas também os grandes criadores alemães que a partir da criação de Gutenberg puderam dar a conhecer os seus universos literários e filosóficos. Funcionando como torre, a escultura assume a base como o mais relevante das letras alemãs, começando com Goethe, o nome mais consensual dentro da cultura das letras alemãs.


Depois de Goethe segue-se: Bertolt Brecht, Thomas Mann, Theodor Fontane, Hermann Hesse, Gotthold Ephraim Lessing, Friedrich Schiller, Heinrich Böll, Karl Marx, Irmãos Grimm, Friedrich Hegel, Anna Seghers, Immanuel Kant, Martin Luther, Heinrich Heine, Hannah Arendt e Günter Grass. Terminados os nomes, começa desde logo a surgir nas nossas mentes os nomes que nos faltam, e a tentativa de responder a, "porquê estes?" Porque não temos ali Nietzsche, Heidegger, Schopenhauer, Husserl, Erich Maria Remarque, Hölderlin, Leibniz, Horkheimer, W. G. Sebald, Novalis, Ernst Jünger etc.? Respostas não existem, pelo menos não consegui encontrar informação sobre o método usado para a decisão por estes e não outros.

Este acaba sendo o grande problema dos cânones, porque inevitavelmente têm de deixar obras e autores de fora. Mas é isso mau? Não creio, pela simples razão de que não existe um único cânone, sim já vivemos tempos em que se pretendia existir apenas um. Hoje compreendemos a diversidade de que somos feitos e que sustenta aquilo que constitui a nossa sociedade. As listas e os cânones comportam problemas, mas acredito que são mais benéficos do que problemáticos. É através destes que mantemos a nossa cultura viva. O que precisamos é de vários cânones, de quem lute e defenda as obras. Em certa medida, os autores só permanecem se forem lidos, para o que precisam de ser conhecidos, para o que precisam de ser relembrados e discutidos. E diga-se ainda que estas listas têm ainda outra vantagem, pelo que já vimos acima, de nos recordar os que ficaram de fora.

O segundo monumento é algo menos majestático, em termos de construção, por outro lado é algo com um escopo completamente distinto, optando pela diversidade e universalidade das obras. Falo das "Escadas do Conhecimento" pintadas junto à Biblioteca da Universidade de Balamand no Líbano, e que foram dadas a conhecer por meio de uma foto no Instagram que se tornou viral. Os livros foram escolhidos, segundo a responsável pelo projeto, pelo seu impacto em quatro diferentes áreas — Literatura, Filosofia, Política e Ciência — e estão organizados de baixo para cima em ordem cronológica, começando com a mais antiga obra escrita, "Épico de Gilgamesh" e terminando com o livro de Bill Gates de 1997. Como nos diz Olga Ayoub, o objetivo do projeto assentou na vontade de introduzir, os alunos e a comunidade, a clássicos que ao longo da nossa civilização transformaram a nossa maneira de pensar.

"Escadas do Conhecimento" (2017) na Universidade de Balamand, Líbano

Nas escadas, e por ordem ascendente temos: Épico de Gilgamesh; A República de Platão; Diwan de Al-Mutanbbī; A Epístola do Perdão de Abul ʿAla Al-Maʿarri; A Divina Comédia de Dante;  Muqaddimah de Ibn Khaldūn; O Príncipe de Nicolau Maquiavel; Discurso do Método de René Descartes; A Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant; Fausto de Goethe; A Origem das Espécies de Charles Darwin; Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski; Assim Falava Zaratustra de Nietzsche; O Significado da Relatividade de Albert Einstein; O Profeta de Khalil Gebran; Al-Ayyam de Ṭāhā Ḥusayn; Um Estudo da História de Arnold Toynbee; Cosmos de Carl Sagan; Uma Breve História do Tempo de Stephen Hawking; Os Desorientados de Amin Maalouf; e Rumo ao Futuro de Bill Gates.

Estas escadas, em termos das suas escolhas são ainda mais interessantes do que a escultura de Berlim, porque sendo mais diversa, obrigatoriamente deixa muito mais de fora. Repare-se que estamos a falar de toda a cultura escrita, em todo o globo ao longo de quase cinco mil anos, é impossível não deixar tanto e tanto de fora. E no entanto não deixa de ser gratificante encontrar ali obras em que todos de algum modo nos revemos. Mais, o facto de ser uma obra construída numa região exterior ao que comummente definimos de ocidente, oferece-nos um reflexo daquilo que consideramos relevante, abrindo-nos ainda as portas para autores que são praticamente desconhecidos entre nós. Obras como "Diwan", uma coleção de poemas de Al-Mutanabbi (915-965), considerado um dos maiores poeta da língua árabe, e o mais influente no mundo árabe; "A Epístola do Perdão" de Abul ʿAla Al-Maʿarri (973-1057), considerado um dos grandes filósofos e poetas do mundo clássico árabe, sendo esta obra considerada uma espécie de percursora da Divina Comédia; O "Muqaddimah" foi escrito por Ibn Khaldun em 1377, e é um livro de não-ficção centrado na história universal apresentando primeiras ideias sobre os domínios das ciências sociais, sociologia, economia, etc. "Al-Ayyam" (Os Dias) são uma espécie de diário de Taha Hussein (1889-1973), considerado o mais influente escritor do Egipto do século XX. (Existe uma grande discussão no Reddit sobre estas escadas, onde é possível escavar muita outra informação).

E no entanto, apesar da diversidade não existe ali nada proveniente de África, América do Sul ou Ásia. Podemos ler isto de muitas formas, eu opto por ler como um sinal daquilo que somos, ou seja, as escadas representam aquilo que continuamos a prezar e que conhecemos. Sabemos que o conhecimento é mais vasto, mas como dizia acima, se não falarmos dele, se não o discutirmos, se não tornarmos presentes as suas obras, autores e ideias dificilmente elas poderão fazer parte das culturas locais. Ou seja, não é apenas um problema de esquecimento pelo tempo, mas é essencialmente um problema de conhecimento prático, de uso real dos autores pelas comunidades. Por isso é que estes monumentos, as listas e os cânones são tão importantes. E por isso é que não podemos ter listas únicas, mas precisamos de listas diversas, discutidas, amadas e odiadas, para podermos também compreender melhor não apenas a nossa própria cultura mas a dos outros, tornando-as cada vez mais culturas de todos.


Nota: as imagens foram retiradas da rede, não sendo possível identificar os autores originais, no caso de qualquer infração de direitos serão imediatamente retiradas.

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