novembro 12, 2016

“Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo

Uma das razões que me trouxe à conferência ECREA 2016 em Praga, foi poder ver ao vivo o primeiro filme interativo da história, “Kinoautomat” (1967). A sua produção teve como objetivo uma demonstração tecnológica no pavilhão da antiga Checoslováquia, na Expo 1967, em Montreal. O filme além de requerer comandos distribuídos pela audiência, requer ainda um apresentador que interage com a audiência e com o filme. Neste caso tivemos a sorte de ter a realizar esse papel, a filha do realizador Raduz Cincera, Alena Činčerová.



A sessão dura cerca de uma hora e um quarto, para um filme que terá à volta de trinta minutos. Os comandos originais estavam fixados aos sofás da sala de cinema (com cerca de 124 lugares), neste caso deram-nos comandos portáteis, que tivemos de devolver no final, estando na sala cerca de 60 pessoas. O filme é a preto e branco, e é fundamentalmente uma comédia negra, muito típica dos anos 1960, recorrendo a alguns dos estereótipos mais banais, como “a vizinha do lado”, a “família que chega da província”, o “louco que tudo sabe”, ou ainda “a velha inocente que é muito pouco inocente”. Contudo, e apesar de todos estes clichés, fez-me rir como já não ria há bastante tempo, recordou-me imenso o cinema de Louis de Funés. Claro que estar inteiramente predisposto e altamente expectante terá ajudado, mas a verdade é que Cincera consegue imprimir ritmo, produzir cenas curtas carregadas de leitura de enredo que nos fazem ver múltiplas possibilidades muito rapidamente, e por isso ainda mais desejosos de participar nas escolhas propostas.

O cliché, da vizinha bonita do lado que fica trancada fora do seu apartamento, é o mote para todo o conflito.

O sistema de escolhas, e tendo em conta que é coletivo, funciona numa lógica de maioria. Ou seja, existem sempre apenas duas opções, verde e vermelho, e as cenas são escolhidas em função daquilo que a maioria presente em sala escolhe. Parecendo um sistema meramente mecânico, devemos relembrar que em 1967 a Checoslováquia vivia debaixo de uma sistema totalitário comunista, sem direito a eleições, votos, nem escolhas de maiorias. Nesse sentido, uma das grandes questões que terá estado na base da invenção deste sistema terá sido a crítica ideológica. Num país em que não se pode escolher, poder escolher como deve prosseguir o filme, é no mínimo instigador, mas na verdade revolucionário! Não admira que o filme tenha sido proibido no país, e mesmo impedido de circular durante muito tempo pelo próprio governo da Checoslováquia.



Algumas escolhas são triviais, não nos movem particularmente, outras são até bastante duras, ainda que tratando-se de comédia negra, deixam-nos hesitantes, questionam-nos sobre o tipo de pessoa somos, "Eu não posso deixar de...". Por outro lado, por vezes, a questão passa a um estado meta, em que deixamos de nos colocar no lugar do personagem, e passamos a pensar no efeito na história e no que desejaríamos ver acontecer no filme e com os personagens.

A inovação, ou melhor, a grande distinção, face ao cinema interativo que veio a suceder a "Kinoautomat" está no apresentador, o entertainer. O seu papel era o de orientar a audiência no processo de escolha, explicar e garantir que estes realmente interagiam, já que aquela era uma experiência nova. Mas do que pude apreciar, acaba servindo muito mais do que isso, o facto de termos uma pessoa que fala connosco, que dá ordens ao filme, e nos questiona, faz com que as pausas para interatividade, tão malfadadas pela quebra de ritmo, se tornem prazeirosas, e sejam elas parte da obra. Ou seja, o filme interativo não é apenas o que vai surgindo na tela, nem a interação é apenas o que nós escolhemos no comando, é antes um todo, uma instalação, uma performance, um jogo, que cria um espaço de relação interno à audiência e desta com o apresentador, e desses todos com os personagens no filme, na tela. E é por isso que se gera uma experiência tão vívida, tão entusiasmante. Não sou apenas eu que escolho, enquanto escolho penso nos outros, sinto-os ali, meço-lhes o pulso pelo que a maioria escolhe, a própria apresentadora vai fazendo comentários ao tipo de audiência que temos ali naquela noite — conservadores, curiosos, impulsivos, pecaminosos, etc.

As escolhas da sala surgem no ecrã, em pequenas bolas, que crescem de baixo para cima, como um gráfico que sobe, até que se identifica o lado escolhido pela maioria.


Fluxograma de "Kinoautomat" criado por Brian Moriarty, no qual se pode ver como a maior parte das escolhas, são mera ilusão. Por outro lado, não podemos esquecer que a projeção em 1967 era feita com grandes máquinas de projetar película, controladas manualmente, o que impossibilitaria uma criação real de vários ramos de nós.

Em relação ao desenho das escolhas, e pelo que consegui ver, e depois pesquisar online, elas são bastante limitadas, como seria expetável, criando-se muito mais ilusão de escolha, do que consequência efetiva. Contudo, a audiência não sente essa ilusão, a audiência participa ativamente, envolve-se fortemente, e deseja agir nessas escolhas. Instigada pela força questionadora do filme, mas também pela apresentadora que nos espevita a curiosidade do que poderá vir a seguir. Aliás, um dos elementos que mais funciona para esta ativação da audiência, é que em cada paragem do filme, para cada escolha, a apresentadora levanta ligeiramente o véu do que pode vir a acontecer, deixando rolar alguns frames de cada uma das diferentes opções, o que torna ainda mais estimulante todo o processo de escolha.

Trailer recente da experiência

Para fechar, foi sem dúvida uma sessão de cinema, ou experiência, não só muito animada, mas imensamente participada e sentida, a demonstrar todo o poder do cinema interativo, quando bem pensado. Mesmo que recorrendo a ilusão de interação, mesmo que recorrendo a clichés, o trabalho é irrepreensível, o que acredito ter contribuído, e continuar a contribuir, para inspirar muitos dos que se aventuram por estes caminhos.

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