Gravity (2013) é antes de tudo o mais uma experiência cinematográfica. Temos história, temos personagens, temos emoções, e somos levados por tudo isto, mas no final saímos da sala com a sensação de ter experienciado algo nunca antes sentido, algo capaz de preencher em nós novas ligações sinápticas. Na Variety chegou-se a dizer que
Gravity seria o "
maior filme experimental alguma vez produzido", tendo em conta o custo de produção e a inovação apresentada.
A grande inovação em
Gravity advém da cinematografia arrojada e inventiva da dupla Alfonso Cuarón (realizador) e Emmanuel Lubezki (cinematógrafo), algo que já não nos devia surpreender, nomeadamente depois do trabalho que antes realizaram em
Children of Men (2006) (
aqui já discutido em detalhe). É difícil ver este trabalho e esta dupla, ver este rasgar de convenções e modelos vigentes e não pensar em
Citizen Kane (1941) e a dupla Orson Welles (realizador) e Gregg Toland (cinematógrafo). Se Welles e Toland desenvolveram novas lentes para produzir profundidade de campo e com este tiveram de criar uma nova linguagem narrativa, Cuarón e Lubezki desenvolveram toda uma nova forma de filmar a ausência de gravidade, e com isso foram conduzidos a quebrar com todas as abordagens de montagem em uso no cinema corrente.
Gravity usa e abusa de planos longos, ou seja, existe uma quase ausência de corte, de montagem técnica. A ação é desenhada por meio de grandes planos sequência de modo a garantir a maior sensação do efeito de espaço possível, ou seja a maior imersão num espaço ausente de gravidade e de som. Se Welles nos tinha surpreendido com um magistral plano sequência na abertura de
Touch of Evil em 1958, aqui os planos sequência não abrem o filme, mas são a norma ao longo de todo o filme. Basta comparar as sequências passadas no espaço em
Star Trek Into Darkness (2013) com as de
Gravity, para começarmos a compreender que temos algo de muito diferente à nossa frente. Se vos disser que
Star Trek Into Darkness, tem cerca de
2200 planos ao longo de duas horas, enquanto Gravity tem apenas 200 numa hora e meia, então a evidência da singularidade deste filme torna-se bastante mais clara.
Porque é através desta sequencialidade de imagens, sem cortes nem paragens, que a gravidade ganha presença. A câmara está assente num giroscópio que lhe permite estar em rotação e movimento constante ao longo de cada um desses longos planos. Assistimos a um bailado milimetricamente coreógrafado do nosso acesso ao espaço, como se a câmara fossemos nós ali, também "pendurados" no ar, sustentados pelo vazio, mas num movimento flutuante constante. Esta é uma particularidade dos planos sequência que emerge ainda mais quando são usadas gruas, capazes de criar uma sensação de leveza, e ao mesmo tempo um acesso mais próximo ao espaço diegético, gerando assim uma força imersiva imensamente poderosa.
Todo este trabalho é envolvido por um trabalho de design de som e de música absolutamente perfeitos. Perante um filme que assume a noção de que no espaço além da ausência de gravidade existe também a ausência de som, então o som do filme não poderia nunca ser algo menor, e não o é. Começando pela própria experiência de vácuo que se sente nessa ausência de som, o desenho do surgimento do vácuo é absolutamente fascinante, como que se os nossos ouvidos fossem sugados pelo próprio vácuo, levando-nos de arrasto para a total imersão no filme. Depois grande parte do desenho da emocionalidade do storytelling ficou a cargo de Steven Price que foi capaz de criar uma
banda sonora com uma identidade bastante forte
. Sem sonoridades cliché de heroísmo ou melancolia Price criou
um trabalho que desenha toda uma atmosfera narrativa muito específica capaz de suportar os objectivos da história e do local onde se desenrola, perdurando em nós muito para além do filme.
Mas se todo este trabalho técnico é soberbo, e é deveras impressionante, o trabalho de Sandra Bullock não lhe fica atrás. Tal como Welles encarna, em
Citizen Kane, totalmente o mundo e a experiência inovadora, aqui cabe a Bullock encarnar e carregar toda essa responsabilidade. E posso dizer que vi a grande maioria dos filmes dela, mas nunca a vi fazer antes o que faz em
Gravity. Amadureceu, mas não é só isso, é todo um trabalho e empenho, amplamente louvado por Cuarón e Lubezki que a traz até aqui. A forma como apenas através de parte da cara, e fundamentalmente da sua voz, nos vamos aproximando de si. As desventuras do seu personagem parecem totalmente impossíveis, mas é ela que nos faz acreditar que no meio de tudo aquilo é uma pessoa com um forte desejo para conseguir fazer o que tem de fazer, apesar de no meio de tudo estar sempre dependente de ter alguma sorte. A cena em que Bullock assume a posição fetal é um daqueles momentos cinematográficos perfeitamente orgásmicos, que nos recordam porque gostamos tanto desta arte. Dificilmente o Oscar deste ano não será para si.
Gravity é um filme que vamos voltar a ver muitas vezes.
Nota de atualização 26.11.2013:
Entretanto descobri que
Gravity apesar de ter sido imensamente louvado pelo seu 3D (estereoscopia),
não foi filmado em 3D. Foi filmado apenas com uma câmara, e convertido à posteriori para 3D, já que o tipo de filmagens pretendidas seriam ainda mais complexas se tivessem de comportar um conjunto de duas câmaras acopladas no set. A ideia que importa assim reter, não é a tecnologia em si, mas o modo como se filma já a contar com o modo como vai ser experienciado pelos espectadores. Ou seja, se Welles teve de lidar com a inovação da profundidade de campo, Cuarón soube também e muito bem, aproveitar este novo "acrescento" à dimensão espacial.