novembro 25, 2013

inovação na ausência de Gravidade

Gravity (2013) é antes de tudo o mais uma experiência cinematográfica. Temos história, temos personagens, temos emoções, e somos levados por tudo isto, mas no final saímos da sala com a sensação de ter experienciado algo nunca antes sentido, algo capaz de preencher em nós novas ligações sinápticas. Na Variety chegou-se a dizer que Gravity seria o "maior filme experimental alguma vez produzido", tendo em conta o custo de produção e a inovação apresentada.



A grande inovação em Gravity advém da cinematografia arrojada e inventiva da dupla Alfonso Cuarón (realizador) e Emmanuel Lubezki (cinematógrafo), algo que já não nos devia surpreender, nomeadamente depois do trabalho que antes realizaram em Children of Men (2006) (aqui já discutido em detalhe). É difícil ver este trabalho e esta dupla, ver este rasgar de convenções e modelos vigentes e não pensar em Citizen Kane (1941) e a dupla Orson Welles (realizador) e Gregg Toland (cinematógrafo). Se Welles e Toland desenvolveram novas lentes para produzir profundidade de campo e com este tiveram de criar uma nova linguagem narrativa, Cuarón e Lubezki desenvolveram toda uma nova forma de filmar a ausência de gravidade, e com isso foram conduzidos a quebrar com todas as abordagens de montagem em uso no cinema corrente.



Gravity usa e abusa de planos longos, ou seja, existe uma quase ausência de corte, de montagem técnica. A ação é desenhada por meio de grandes planos sequência de modo a garantir a maior sensação do efeito de espaço possível, ou seja a maior imersão num espaço ausente de gravidade e de som. Se Welles nos tinha surpreendido com um magistral plano sequência na abertura de Touch of Evil em 1958, aqui os planos sequência não abrem o filme, mas são a norma ao longo de todo o filme. Basta comparar as sequências passadas no espaço em Star Trek Into Darkness (2013) com as de Gravity, para começarmos a compreender que temos algo de muito diferente à nossa frente. Se vos disser que Star Trek Into Darkness, tem cerca de 2200 planos ao longo de duas horas, enquanto Gravity tem apenas 200 numa hora e meia, então a evidência da singularidade deste filme torna-se bastante mais clara.

Porque é através desta sequencialidade de imagens, sem cortes nem paragens, que a gravidade ganha presença. A câmara está assente num giroscópio que lhe permite estar em rotação e movimento constante ao longo de cada um desses longos planos. Assistimos a um bailado milimetricamente coreógrafado do nosso acesso ao espaço, como se a câmara fossemos nós ali, também "pendurados" no ar, sustentados pelo vazio, mas num movimento flutuante constante. Esta é uma particularidade dos planos sequência que emerge ainda mais quando são usadas gruas, capazes de criar uma sensação de leveza, e ao mesmo tempo um acesso mais próximo ao espaço diegético, gerando assim uma força imersiva imensamente poderosa.

Todo este trabalho é envolvido por um trabalho de design de som e de música absolutamente perfeitos. Perante um filme que assume a noção de que no espaço além da ausência de gravidade existe também a ausência de som, então o som do filme não poderia nunca ser algo menor, e não o é. Começando pela própria experiência de vácuo que se sente nessa ausência de som, o desenho do surgimento do vácuo é absolutamente fascinante, como que se os nossos ouvidos fossem sugados pelo próprio vácuo, levando-nos de arrasto para a total imersão no filme. Depois grande parte do desenho da emocionalidade do storytelling ficou a cargo de Steven Price que foi capaz de criar uma banda sonora com uma identidade bastante forte. Sem sonoridades cliché de heroísmo ou melancolia Price criou um trabalho que desenha toda uma atmosfera narrativa muito específica capaz de suportar os objectivos da história e do local onde se desenrola, perdurando em nós muito para além do filme.

Mas se todo este trabalho técnico é soberbo, e é deveras impressionante, o trabalho de Sandra Bullock não lhe fica atrás. Tal como Welles encarna, em Citizen Kane, totalmente o mundo e a experiência inovadora, aqui cabe a Bullock encarnar e carregar toda essa responsabilidade. E posso dizer que vi a grande maioria dos filmes dela, mas nunca a vi fazer antes o que faz em Gravity. Amadureceu, mas não é só isso, é todo um trabalho e empenho, amplamente louvado por Cuarón e Lubezki que a traz até aqui. A forma como apenas através de parte da cara, e fundamentalmente da sua voz, nos vamos aproximando de si. As desventuras do seu personagem parecem totalmente impossíveis, mas é ela que nos faz acreditar que no meio de tudo aquilo é uma pessoa com um forte desejo para conseguir fazer o que tem de fazer, apesar de no meio de tudo estar sempre dependente de ter alguma sorte. A cena em que Bullock assume a posição fetal é um daqueles momentos cinematográficos perfeitamente orgásmicos, que nos recordam porque gostamos tanto desta arte. Dificilmente o Oscar deste ano não será para si.

Gravity é um filme que vamos voltar a ver muitas vezes.


Nota de atualização 26.11.2013:
Entretanto descobri que Gravity apesar de ter sido imensamente louvado pelo seu 3D (estereoscopia), não foi filmado em 3D. Foi filmado apenas com uma câmara, e convertido à posteriori para 3D, já que o tipo de filmagens pretendidas seriam ainda mais complexas se tivessem de comportar um conjunto de duas câmaras acopladas no set. A ideia que importa assim reter, não é a tecnologia em si, mas o modo como se filma já a contar com o modo como vai ser experienciado pelos espectadores. Ou seja, se Welles teve de lidar com a inovação da profundidade de campo, Cuarón soube também e muito bem, aproveitar este novo "acrescento" à dimensão espacial.

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