dezembro 31, 2020

Sobre os padrões do design de narrativa

O livro "Meander, Spiral, Explode: Design and Pattern in Narrative" (2019) de Jane Alison é um trabalho de análise literária incomum. Foge aos cânones estabelecidos, para abraçar um conjunto de ideias mais próximas da análise estética das artes visuais, e por isso realiza um avanço na área que hoje definimos como Narrative Design. A autora resolveu encetar um trabalho de análise de estruturas narrativas, procurando histórias que se demarcam do arco dramático — princípio, meio e fim —, no fundo da linearidade narrativa. A sua proposta pode ser ligada a uma anterior apresentada por Madison Smartt Bell, “Narrative Design” (1997), indo além, aliás oferecendo parte daquilo que tinha sido a minha crítica a Bell, com um conjunto de modelos para o desenvolvimento do design de narrativa. 


Tendo em conta a relevância académica, acabei fazendo um artigo de revisão mais longo e publiquei-o no Journal of Digital Media & Interaction. Podem ler a resenha completa online.

dezembro 30, 2020

Unastoria de GIPI

Gianni Pacinotti é um reconhecido autor de banda desenhada italiano que dá pelo nome de GIPI. Cheguei ao seu trabalho pelo facto de ter sido publicado este ano pela Fantagraphics o seu livro “Unastoria” (“One Story”) de 2013. Surpreendeu-me duplamente: pelo modo como estrutura a narrativa, e pelo impressionismo das suas pranchas.

dezembro 29, 2020

"I Survived Area X"

Quando terminei o segundo volume fiquei chateado com o autor por me ter mantido a ler todo um livro enredado em algo que nada tinha para oferecer. Disse a mim mesmo que não iria ler mais nada dele. No entanto, passadas algumas semanas, acabei por pegar no terceiro volume, "Aceitação" (2014). Porquê?

Ler a análise do volume Um (2014) e volume Dois (2014)

1 - Queria ter direito a envergar a t-shirt "I Survived Area X"?

2 - Queria poder dizer mal com conhecimento de causa?

3 - O mundo-história clamava pela minha curiosidade?

dezembro 27, 2020

Da inconsequência das nossas vidas

"A Vida Modo de Usar" (1978) de Georges Perec é um clássico muito pouco lido, não só pela dificuldade de suster a leitura ao longo das 500/600 páginas, dependendo da edição, mas também pela dificuldade de chegar ao seu propósito. Enquanto o lia, fui-me dividindo entre as qualificações de obra-prima e obra de artesanato. O domínio da arte de contar histórias é virtuoso, tal como é o domínio da escrita, contudo, todas essas competências parecem, em momentos, estar unicamente ao serviço do mecanismo criado por Perec. É preciso chegar ao final, bater com a cabeça na parede, questionar o que acabámos de ler, relacionar, e voltar a equacionar, para chegar a compreender o substrato escondido e reconhecer o génio do criador.

Considerações Breves

1 - Perec era um estruturalista convicto, tendo pertencido ao movimento OULIPO, criado por Raymond Queneau, a quem dedica esta obra. Este movimento precede o pós-modernismo, podendo confundir-se, mas distingue-se por seguir uma via concreta e distinta: a rigidez estrutural. Ou seja, os criadores não escrevem de forma livre, menos ainda caótica como os pós-modernistas, mas antes o fazem seguindo conjuntos de regras, ou como eles preferem dizer: “restrições de escrita”. Um exemplo máximo disto pode ser visto no livro “La Disparition” (1969), também de Perec, escrito integralmente sem nunca fazer uso da letra “E”.

Placa de Rua francesa, apesar de falsa, criada como homenagem a Georges Perec, em particular ao trabalho "La Disparition", demonstrando a ausência do uso do "E".

Esta abordagem baseia-se na ideia de que a criatividade brota das restrições, por isso se ditarmos constrangimentos ao que pode ser feito isso poderá conduzir o criador a ir além. De certa forma, liga-se ao ditado de que a criatividade nasce da necessidade. Contudo, a abordagem apresenta alguns problemas, como veremos à frente na análise do livro em questão.

2 – O plano estrutural usado para conceber “A Vida Modo de Usar” assenta num corte de perfil de um prédio, que nos permite olhar para todas as peças de habitação do mesmo. Perec esboçou assim um diagrama com 100 quadrados, 10 por 10, com cada quadrado a fornecer o constrangimento ao mundo que pode ser contado (ver imagem abaixo do plano do imóvel). Os quadrados, por sua vez, fornecem não só personagens, mas também elementos para a produção de histórias, que foram produzidas previamente em listas — de quadros, livros, mobiliário, animais, objetos, cores, etc. Os elementos em si, são depois emparelhados em duplas e distribuídos pelo prédio, seguindo uma lógica de grelha, do tipo puzzle de Sudoku. Para a passagem entre cada quadrado, Perec não segue a ordenação numérica, mas faz uso do chamado algoritmo do cavalo, do xadrez, que lhe permite saltar entre quadrados sem deixar rastos de aparente relação no discurso. Todas estas regras podem ser estudadas em pormenor, uma vez que Perec as forneceu, e nos dias de hoje podemos analisar as mesmas na net

Desta forma Perec tinha construído a verdadeira "máquina de fazer histórias", já que os espaços de habitação poderiam dar origem a tudo o que pudéssemos imaginar, e as regras fariam o resto funcionar por si.

3 – Apesar das dezenas de histórias contadas ao longo do livro, existe uma história central, que atravessa todo o livro, e se relaciona intimamente com o trabalho de Perec, e diz respeito à personagem de Bartlebooth, alguém tão rico que nada existia na vida capaz de lhe interessar, por isso encetou um projeto para se manter ocupado por toda a sua vida, este consistiria em: passar 10 anos a aprender a pintar a aguarela, de 1925 a 1935; depois passar 20 anos a viajar pelo mundo, pintando 500 aguarelas, que iria enviando para que fossem transformadas em puzzles, de 1935 a 1955; e por fim, passar os restantes 20 anos a reconstruir esses puzzles, após o que seriam reenviados para o local onde foram pintados, com uma lata de diluente, para que fossem destruídos, de 1955 a 1975.
Repare-se como o trabalho de Perec se vai aproximar do trabalho de Bartlebooth, a construção das telas e o seu recorte em puzzle, para que possam ser reconstruídas e esquecidas pelos leitores do seu livro.


Experiência de Leitura

A - Começar por dizer que se as histórias, individualmente, são interessantes e por vezes até bastante envolventes, na generalidade o processo de leitura de quase 600 páginas sem causalidade concreta entre as dezenas e dezenas de histórias, torna o processo bastante penoso. As regras criadas por Perec parecem só funcionar para si, enquanto criador e organizador dos espaços, já para o leitor, não ajudam nem servem qualquer propósito. 

Esta primeira constatação vem ao encontro de uma das minhas primeiras recusas da premissa de Perec, o puzzle de cartão, por o considerar vazio em termos de jogabilidade. Ou seja, o recorte das peças é irrelevante, já que todo o trabalho se centra na reconstrução mental da imagem em causa. Mas, Perec abre o livro defendendo que o puzzle que lhe importa é o de corte vitoriano, em que o criador do puzzle toma decisões sobre como e onde cortar as peças, ao contrário dos contemporâneos que são cortados por máquinas em peças iguais (ver imagem abaixo). Contudo, isso é mera ilusão, já que não decorre daí qualquer tipo de acrescento ao enigma visual. Repare-se que ou o recorte segue as formas concretas do desenho, e se revela muito facilmente (ver puzzle do mapa da Europa, abaixo), ou então segue modelos de recorte externos à representação (ver puzzle colorido e as formas dos recortes, abaixo) que acabam valendo o mesmo que fazendo uso do recorte automático. 

Efeitos do recorte: à esquerda, recorte mecânico; à direita, recorte manual

Puzzles de recorte vitoriano: à esquerda, um puzzle recortado seguindo com as formas dos países do mapa da Europa; à direita, um puzzle colorido e a imagem das suas peças constituintes, os recortes seguem formas externas às formas da representação final.

Da mesma forma, quando olhamos ao trabalho de Perec, na elaboração dos saltos entre histórias, que são as suas peças do puzzle, tanto faz que ele salte em L, como em Z, ou noutra forma qualquer, não se constrói qualquer causalidade daí, de modo que nada se ganha ou perde, é mero artifício vazio, tal como são os recortes de puzzle.

O algoritmo do cavalo, ou saltos em L. Imagem do filme de animação de Clarence Stiernet

Animação que mostra os saltos em L entre cada uma das peças de habitação do prédio de Perec

B – A relação entre Bartlebooth e Perec acontece na inconsequencialidade. Bartlebooth não tinha interesse por nada, concebeu todo um plano para apenas ter um propósito que o mantivesse vivo, de dia para dia, mas sem qualquer objetivo ou vontade de produzir qualquer resultado efetivo, antes pelo contrário, tudo o que resultasse deveria ser destruído. Perec, de certa forma segue a mesma ideia, criar todo um sistema altamente complexo de construção do romance que servisse apenas este em particular e mais nenhum, mas não objetivasse a nada mais do que a criação do próprio sistema.

Este ponto, é talvez o ponto alto do romance, já que nos lança na mais pura indagação filosófica, nos dois pontos que se sucedem:

B1. Deve um romance ter algo para dizer, ou deve constituir-se num mero enredo de eventos e personagens que nos ajudam a passar o tempo?

B2. Enquanto seres humanos e criativos que somos, devemos almejar a ter uma vida consequente? Devemos nos esforçar para deixar a nossa marca? Servir de exemplo e deixar um legado que sirva quem vem atrás? 

A edição portuguesa da Editorial Presença, de 1989, apresenta a belíssima tradução de Pedro Tamen


Conclusão

Olhando aos dois pontos, A e B, a resposta torna-se por demais evidente, apesar de eu só agora, após ter escrito estas linhas, ter visto essa evidência de forma cristalina. Assim, as histórias das nossas vidas não vivem da causalidade, porque não vivemos num mundo predeterminado, antes vivemos numa realidade regulada pelo acaso. Como tal, construir todo um conjunto de regras, com base num conjunto de crenças ou valores rígidos, para com isso chegar a produzir o nosso legado, seja para os nossos filhos ou para a humanidade, é totalmente inconsequente, para não dizer uma perda de tempo.

Georges Perec

Por isso, o título da obra, para a qual não se encontra explicação nas dezenas de histórias contadas, surge do resultado vazio da amálgama final. Perec, como todos aqueles que algum dia se dedicaram a criar algo, questiona aqui a razão essencial de todo o processo de criação humana.

De certa forma, o resultado deste texto liga-se ao que nos foi proposto pela Pixar, através do filme “Soul” (2020) de que aqui dei no dia de Natal. Contudo e paradoxalmente, aquilo que as duas obras fazem é ecoar pela Eternidade o pensamento de Epicuro.

O Mito de uma Revolução sem Sangue

As histórias que contamos e a História nem sempre estão em sintonia. Prevalecem as teorias que queremos, a verdade distorcida pela preferência do como deveria ter acontecido, desprezando-se os elementos que possam perturbar essa visão una e coerente, mesmo que longe da verdade. O caso dos mortos do 25 de Abril 1974 é um caso paradigmático disso mesmo. Se perguntarem à grande maioria dos portugueses, residente ou não no nosso país, eles responderão como esta Guia ou este Polícia responderam em julho 2015:

Guia em Lisboa: "Desculpe, mas deve estar enganada. Não morreu ninguém no 25 de Abril."

Polícia em Lisboa: "Mortes no 25 de Abril? Aqui? Só pode estar enganada."

E no entanto, os mortos existiram, mas mais importante ainda, as pessoas existiram, tinham famílias que deixaram para trás em nome de uma Revolução. Famílias que os continuam a recordar, apesar de lhes dizermos na cara, enquanto país, que os seus entes nunca existiram. 

"Seis nomes sem biografia, encontrados no virar de uma página, são como seis cadáveres desconhecidos, nos quais por pouco não se tropeça ao cruzar uma esquina (...) João Guilherme de Rego Arruda, José James Harteley Barneto, Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Giesteira, António Lage e Manuel Cândido Martins Costa (...) Há 45 anos, foi aqui que eles morreram e de imediato começaram a ser esquecidos."

Isto impressiona mais quando o que se diz a seguir se continua a viver nas nossas livrarias em 2020:

"Este livro não falará de personalidades e vedetas da Revolução de 1974 ou, em particular, do Estado Novo; já há tomos suficientes nas livrarias dedicados ao assunto. Só biografias do ditador de Santa Comba Dão encontram-se pelo menos cinco no mercado – as personalidades canhestras da História sempre foram objeto de contemplação."

Fábio Monteiro tenta traçar nestas páginas um conjunto de biografias dos nomes que deram a vida pela nossa liberdade, mas faz mais do que isso, presta um Serviço Público ao país pela Homenagem que realiza aos 6 cidadãos portugueses, fazendo aquilo que o nosso Estado em quase 50 anos nunca teve coragem de fazer. A história do estudante de filosofia açoriano, João Arruda, é particularmente dolorosa de ler, mas não é menos a de Fernando Giesteira, de José Barneto e Fernando Reis, e sim também as daqueles que todos desejam apagar: António Lage e Manuel Costa.

A placa colocada na Rua António Maria Cardoso, não é um reconhecimento do Estado Português, mas de um conjunto de cidadãos anónimos

Apesar de ser um livro de tom jornalístico, Monteiro não se limita a descrever o que aconteceu e suportar com factos da época, relatos escritos ou fotografias, juntando-lhes o essencial que são as entrevistas realizadas com família sobrevivente, ao longo de todo o livro, o autor procura compreender as razões, dá corpo à interpretação do sucedido, não apenas do esquecimento nacional, mas também do esquecimento de cada nome em particular, das suas implicações familiares, mas também políticas.

“Ninguém neste país se lembra do meu pai e dos outros que, como ele, morreram no dia 25 de Abril. As pessoas da minha idade não sabem sequer que houve mortos naquele dia.” Filho de José Barneto

E é isto que continuamos a contar uns aos outros como fica claro nesta citação que Fábio retira da revista Visão Júnior, de 2016, responsável por moldar as crenças dos mais novos:

“Durante o dia, a população de Lisboa foi-se juntando aos militares. E o que era um golpe de Estado transformou-se numa verdadeira revolução. A certa altura, uma vendedora de flores começou a distribuir cravos. Os soldados enfiavam o pé do seu cravo no cano da espingarda e os civis punham a flor ao peito. Por isso se falava de Revolução dos Cravos. Foram dados alguns tiros para o ar, mas ninguém morreu nem foi ferido.”

Uma nota final. Não se pretende com este reavivar de memórias esquecer muitas outras mortes, à mão dos subalternos do Ditador que governou este território por mais de 40 anos. Essas mortes, serão para sempre lembradas, mesmo quando certas franjas da nossa sociedade se erguem para enaltecer alegadas de virtudes de quem ignorou completamente o povo que julgava para si, e para os seus, estar a governar. Nem, também, se pretende apontar o dedo a quem ousou levantar-se e por fim a tão pérfida governação, porque com ou sem mortos, fizeram aquilo que foi necessário para recuperar a Liberdade para todos os portugueses.

dezembro 26, 2020

Design de Narrativa em Gabriel García Márquez

"Crónica de uma Morte Anunciada" (1981) pode ler-se como crónica, relato de eventos ocorridos, como o próprio título sugere, mas se melhor analisado poderemos ver que é um trabalho de narrativa experimental, como muito bem identifica Jane Alison na sua análise em "Meander, Spiral, Explode" (2019). Alison diz-nos que Márquez não conta uma narrativa linear, cronicando os eventos na sua ocorrência cronológica, mas antes o faz por meio de uma narrativa radial, expondo múltiplos elementos ao redor do evento e em direção ao clímax (ver imagem abaixo). À medida que ia lendo, fui concordando com Alison, e se tentei em parte compreender porque Márquez o fez, centrei-me mais em tentar perceber porque funciona para nós enquanto leitores.

Estrutura narrativa radial, uma proposta de Jane Alison

Se o relato dá conta de um assassinato consumado, logo nas primeiras páginas ficamos a saber: quem morreu e quem assassinou, assim como quando e porquê; ficando pouco para atiçar a curiosidade de quem lê, e no entanto seguimos atrás de Márquez sem qualquer problema, lendo sofregamente tudo, tentando entrar na cabeça de cada personagem que nos propõe, tudo para descobrir mais e mais sobre o "como"; porque é apenas isso que nos falta para fechar a história que se conta.

Mapa dos eventos de "Crónica de uma Morte Anunciada", criado pelo internauta JJ Marquete. Aqui podemos ver como todos os personagens e todos os eventos se ligam de forma centrípeta em relação à personagem principal de Santiago Nasar, o morto.

Enquanto lia, e tendo em conta o design da narrativa, fui-me sentido como no meio de uma pequena aldeia, ouvindo tudo e todos, aprendendo mais e mais sobre o como aconteceu. O crime é algo que nunca para de nos atrair, por mais que a nossa consciência tente dizer-nos que não nos diz respeito, é difícil passar ao lado de um acidente sem tentar olhar. Mas não é pela morbidez, na verdade o mesmo acontece quando o acidente não envolve feridos ou mortes, como um simples assalto. Por isso, o que temos é no fundo uma perturbação do estado das coisas, do padrão de normalidade, e a nossa ânsia ativa-se para perceber o que produziu essa alteração no padrão: o quê, quem, quando, porquê e claro como.

Inevitavelmente, isto prende-se com a nossa insaciável vontade de aprender, porque, evolutivamente, sobrevivemos melhor quanto melhor estivermos preparados, não só para lidar com os problemas, mas também para os antecipar e prever, medindo o alcance das suas consequências e evitando os seus potenciais danos.

E é disto que Márquez se aproveita, como no fundo aproveitam as histórias que se contam sempre, mas neste caso Marquez torna essa nossa avidez muito mais evidente porque poderíamos dizer que já sabíamos tudo o que havia para saber, contudo verificamos que assim não é, que à medida que as pessoas vão falando, vamos apreendendo dados desconhecidos sobre o sucedido e isso mantém-nos engajados, tentando encaixar os novos dados no modelo que já construímos sobre o que aconteceu e tentando compreender se se altera ou não a nossa perspectiva. Como se estivéssemos a tentar chegar a uma espécie de certeza absoluta sobre o sucedido. Enquanto o criador conseguir apresentar novos dados sobre o evento que possam de algum modo transformar o modo como pensamos que tudo aconteceu, a nossa atenção mantém-se e o interesse não desaparece.

dezembro 25, 2020

Filosofia no mundo Pixar

Depois da aventura neurocientífica de "Inside Out" (2015), a Pixar, novamente pelas mãos de Pete Docter, traz-nos uma aventura filosófica com "Soul" (2020). Se em "Inside Out" nos era dado a perceber como a nossa maquinaria interna nos faz sentir e agir em cada momento, agora chegou a vez de compreender o Sentido da Vida, com base em ideias de Aristóteles e Epicuro. Esta é a questão que nos persegue desde a Revolução Cognitiva, mas que teve a sua génese efetiva na Antiga Grécia, não tendo nós ainda encontrado resposta. Apesar de ser um filme para crianças, é um filme também para adultos, por isso não se espere algo menor, basta deixar-se levar e entrar pela reflexão adentro.

Vejamos o que nos disseram na Antiga Grécia:

Sócrates disse, para os seus juízes no seu julgamento final, "não têm vergonha da vossa ânsia de possuir tanta riqueza e procurar reputação e honras o mais possível, enquanto não se preocupam nem pensam na Sabedoria ou Verdade, ou no melhor estado possível da vossa alma?"

Platão passou então a buscar a “harmonia da alma”, algo que acreditava só ser possível por via da conquista do conhecimento mais elevado que para ele residia na Forma do Bem Comum. Contudo Aristóteles quebra com a ideia do Comum e centra-se na felicidade do indivíduo ao longo da vida:

"a função do homem é viver um certo tipo de vida, e esta actividade implica um princípio racional, e a função de um bom homem é o bom e nobre desempenho desta, e se alguma ação for bem executada é executada de acordo com a excelência apropriada"

Aproximamo-nos aqui da ideia de encontrar a razão que nos motiva, a paixão interna que proporciona energia suficiente para chegar à excelência. É por aqui que "Soul" começa, definindo-a como a responsável pela "Chama" de cada um. Por sua vez, a mesma é também defendida por via da psicologia, nomeadamente o Flow de Mihály Csíkszentmihályi, com o filme a dar conta da "Zona", um lugar transcendente entre a vida e o além que se atinge quando se está totalmente focado no desempenho da excelência individual.

Mas é Epicuro que quebra com todas as obrigatoriedades dizendo que tudo depende apenas e só da Eliminação do Medo.


Ou seja, tudo assenta na Busca de Ausência de Sofrimento e Ansiedade, e "Soul" leva-nos até aqui.


E é isto, não assim referenciado, mas está lá tudo, nas peripécias apresentadas pelo filme que nos fazem progredir por entre os múltiplos conceitos ao longo dos 90 minutos. O resto deixo para quando virem, apreciarem e puderem refletir...

dezembro 23, 2020

Comunidade (1964) Luiz Pacheco

Um pequeno livro que é do mais intenso que podemos ler em português, pelo modo como fala rente à carne, à "máquina" humana como lhe chama Luiz Pacheco. É um exercício de forma, mas consegue elevar-se e transcender a mesma para nos tocar, nos fazer sentir o que é ser-se um ser feito de carne, pele, curvas, fluídos e estar-se vivo. O calor do toque, da proximidade, da carne humana é aqui o centro da peça.

Desenho de Teresa Dias Coelho, publicado no livro "Comunidade" (1964), sexta edição (1980:31)

Se o livro nos impressiona e as ilustrações ajudam na atmosfera, ler as palavras do filho de Luiz Pacheco, em entrevista com Anabela Mota Ribeiro para o Público em 2015, faz toda a obra ganhar uma densidade ainda maior:

"Estou lá, é o meu nascimento. Aquilo é a minha terra. Tive cinco famílias de acolhimento, dezenas de casas. Não tenho nenhum sentimento de pertença a uma terra. Quando pergunta onde é a minha terra, é aquilo. Naquele texto está tudo o que é relevante."
Paulo Pacheco, in Público 2015

Vale a pena ler o resto da entrevista para compreender melhor quem era Luiz Pacheco, de onde veio, como viveu, como passou pela vida.

Excerto de "Comunidade" (1964)

Não se compreende como uma obra destas não se encontra à venda e em múltiplas edições de qualidade, ou não é mais discutido na cena nacional. Ainda que se perceba que o sentimento ali plasmado possa não agradar a uma certa elite, o texto tem um enorme alcance e merecia maior apreciação da nossa parte.

Lu Xun, "O comunismo comia crianças"

"O Diário de Um Louco" (A Madman's Diary) (1918) de Lu Xun é um dos livros escolhidos pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo, e não é um livro fácil, apesar de pequeno, por causa da distância temporal e cultural. Não sou especialista em cultura chinesa, menos ainda na do início do século passado, por isso senti dificuldade em compreender o seu verdadeiro alcance numa primeira leitura. Isto agrava-se, porque o texto está escrito como metáfora o que obriga a pesquisa de contexto, sem o que faz parecer tudo muito indiferente. 

Uma cópia de "O Diário de um Louco" no Museu de Lu Xun, Pequim

Lu Xun conta a história de um homem semi-esquizofrénico que sofre de problemas da perseguição e que acredita que os seus amigos, vizinhos e familiares querem não só matá-lo, mas principalmente comê-lo. A meio do conto, percebemos que o personagem está completamente ensandecido, ou parece estar, porque em todo o lado só vê canibais.

Vamos ao contexto. Lu Xun parece pretender com esta história dar conta daquilo que a sociedade chinesa estava a fazer ao indivíduo chinês. A não permissão do livre pensar, o ter de ser igual a todos os demais, é visto por Xun como um processo de canibalização do ser humano. O ato de comer humanos representa o modo como a sociedade chinesa operava na eliminação das diferenças, aniquilando o individual para alimentar o colectivo, criando uma massa homogénea que não se questiona.

Enquanto lia o texto questionei-me sobre uma ideia que é costume ouvir quando se defende o comunismo no nosso país, e noutros lugares: "afinal os comunistas não comem crianças ao pequeno-almoço". No Expresso existe um artigo que só liga a frase aos regimes de Estaline e Mao e a períodos de fome que terão conduzido a surtos de canibalismo. Contudo, parece-me que a origem desse mito é anterior, e reside nesta obra de Lu Xun, não só pelo reconhecimento que o texto teve e continua a ter, mas acima de tudo pela frase com que o conto termina:
"Talvez ainda haja crianças que não tenham comido homens? 
Salvem as crianças...
Esta frase surge no final completamente desligada do resto do texto, já que nunca antes se fala das crianças, mas a interpretação mais comum é simples: Lu Xun já não acreditaria ser possível salvar aqueles que tinham sido endoutrinados, era preciso esperar pelas próximas gerações e para isso era preciso salvar as crianças.


O conto pode ser lido completo no portal Marxists.org.