Cabral cumpre, em parte, com o que se tinha comprometido, dar vida às vidas dos jovens envolvidos naqueles derradeiros dias. Lendo os jornais o que temos é apenas a ideia de miúdos sem nada na cabeça, dispostos a tudo para magoar os outros, sem empatia nem sentimentos, na falta de mais dados especulamos a partir dos efeitos, e vemos na nossa cabeça um bando de energúmenos. A obra de Cabral refaz esta ideia, não desculpando, mas racionalizando sustentando com emoção e realidade vivida alguns dos jovens envolvidos. Posso dizer que consegui chegar bastante perto dos jovens, dos seus mundos, das suas realidades, sentir as suas dúvidas, incertezas e medos do mundo vivido no dia-a-dia. Inevitável pensar em “Deus das Moscas” e olhar para um grupo de jovens que sem regra nem direção acaba seguindo a força do mais forte e o efeito de grupo. Cabral faz-nos sentir o lugar e os seus habitantes, onde viveram aqueles miúdos, os seus devaneios pela cidade do Porto, assim como o prédio abandonado, somos completamente transportados para lá.
Mas era necessário este livro? Senti-me a maior parte do tempo um voyeur. Existe ali uma história, sem dúvida, mas devemos questionar-nos se produzindo obras sobre estas contribuímos para algo mais além do prazer do sofrimento de outrem. Repare-se que não precisamos de um livro para chamar a atenção, o assunto foi amplamente dissecado pelos media, e o artigo referenciado acima foi feito para recordar os 10 anos. Ou seja, o que podia um livro dar-nos mais? Conhecer melhor os envolvidos? Correto, mas com que objetivo, desculpá-los, ou aceitar a normalidade do acontecido? Repare-se que não é um assunto ficcionado para testar temperamentos ou efeitos da fraca educação (que é parcamente definida no livro), trata-se de um caso real, com pessoas que existem e sobre as quais devemos ter uma posição enquanto sociedade. Humanizar é preciso, mas enquanto sociedade precisamos de balizas concretas sobre o que podemos aceitar e o que não podemos de forma alguma. Um livro destes coloca tudo em questão, faz-nos questionar, faz-nos sentir impotentes porque co-culpados pela falta de apoio que aqueles jovens tiveram nas suas infâncias, ou da aparente falta de apoio que Gisberta teve. Mas tudo isto não o sabíamos já antes de ler este livro? Onde está o rasgo da arte para nos despertar do sentimento cliché, para nos transformar? Tenho de dizer que não me preencheu enquanto obra, enquanto Romance, longe disso.
Falando da escrita, é boa apesar de não ser excecional. Cabral consegue algo difícil, encaixar um pensar e diálogos que tinham de ser bastante incompetentes e até incongruentes, num texto de grande elegância, sem que duvidemos todo o tempo da sua veracidade. O mesmo se pode dizer da crueza e calão que vão surgindo, mas muito longe daquilo que é a realidade destes universos. Nota-se um esforço de aproximação aos contextos e à potencial escrita, mas ainda assim muito longe do que seria verdadeiramente um texto escrito por alguém saído daquelas condições. Muito do que se lê percebe-se impossível de germinar ali, mas não deixa de parecer provir daquele mundo, daquele universo, por isso algo foi bastante bem feito por Afonso Cabral para nos fazer sentir deste modo.