novembro 15, 2015

“Everybody’s Gone to the Rapture”

De novo se levantam questões sobre as fronteiras entre jogo, simulação e narrativa. Tenho sempre defendido este tipo de jogos, que agora se vão denominando de “walking simulations” - “Dear Esther”, “Gone Home”, ou o mais recente “The Vanishing of Ethan Carter” - mas desta vez ao iniciar a escrita dei comigo a construir uma nova taxonomia de análise dos videojogos... O trabalho avançou mas perdi-me na imensidade de possibilidades, e por isso resolvi parar e deixar para um próximo texto, aqui vou apenas concentrar-me em "...Rapture", e deixar as considerações sobre jogo ou não-jogo para outra altura.




Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) é um espaço-história que podemos explorar na primeira-pessoa. O espaço situa-se numa pequena aldeia britânica, nos anos 1980, abandonada à pressa a julgar pelo estado da cidade. À medida que avançamos na exploração vamos encontrando espaços em que luzes dão vida a encenações de grupos de pessoas que conversam entre si, como se estivéssemos a assistir a uma cena passada há não muito tempo. A aldeia é relativamente extensa, dada a reduzida velocidade a que nos deslocamos, mas para nos ajudar na escolha da ordem das casas e locais a visitar, existe uma luz forte que deambula por toda a aldeia que parece querer servir-nos de guia. Podemos encontrar mais diálogos ou monólogos em rádios e telefones perdidos, assim como em certos momentos temos de ativar umas luzes mais fortes que surgem e que nos abrem para mais uma cena de personagens de luz, mais extensa, ou pelo menos narrativamente mais significativa e que nos permite progredir na compreensão do que se terá passado ali.

O cerne de “Everybody’s Gone to the Rapture” é a narrativa, que se desenrola por meio de um enredo duplo, por um lado a descoberta do que terá acontecido na aldeia, por outro as vidas e relações entre os habitantes dessa aldeia. Ou seja, ao longo da progressão na experiência vamos descobrindo o que terá acontecido recentemente ali, assim como vamos ganhando conhecimento sobre as personagens que ali habitavam. No final, os dois enredos enlaçam-se para dar um sentido uno a toda a experiência, despoletando toda uma enorme recompensa pelo investimento realizado na compreensão do universo. Esta técnica do duplo enredo é bem conhecida do cinema, e serve por um lado para manter o espectador mais atento já que temos duas linhas de eventos a surgir em simultâneo, e por outro lado, quando o sentido se fecha na união de ambas as linhas de progressão, o espetador sente uma recompensa maior por dar sentido ao todo. Neste caso, posso apenas dizer que tal acontece, mas não posso entrar no detalhe correndo o risco de destruir essa possibilidade.

Pouco depois de estar em “…Rapture” torna-se inevitável recordar o início de “Village of the Damned” (1960), mas aqui a simulação é ainda mais forte na construção do sentimento de abandono do espaço, a falta de vida sente-se, com a nossa navegação em primeira-pessoa a funcionar na enfatização de todo esse abandono. Em sentido contrário, a performance das personagens que vamos encontrando espalhadas pela vila estão cheias de vida, com diálogos que nos chegam quase apenas por meio de voz, já que a linguagem corporal só por vezes nos é mostrada pelas luzes que constituem os corpos, ainda assim dando conta da idade e personalidade de cada um dos seus habitantes, do quão reais todas elas terão sido.

Everybody’s Gone to the Rapture” é um jogo sobre o fim do mundo, mas muito diferente daquilo a que estamos habituados a assistir, aliás esse era o objetivo de Pinchbeck:
“We talked about it, and we said, well, what is the important thing about the end of the world? It’s not about cities being consumed in fire. Take the movie 2012 – the whole of California vanishes and you don’t feel a thing, it’s just ridiculous. The apocalypse is about people, and the connections between them. What’s really touching is parents waiting for their kids to come home - and what they’re worried about is that the buses aren’t running, not that the world is ending. It’s the little moments that get you.” [fonte]
É isso que vemos, ouvimos e sentimos. O cenário escolhido toca-nos pela beleza, infelizmente não tanto como parece tocar os jogadores britânicos, que revelam sentir um enorme impacto nostálgico ao visitar os vários espaços no jogo. Mas a visualização daquele mundo é suportada por brilhantes dramatizações audio, que só poderiam ter sido conseguidas por atores de rádio, que conseguem fazer-nos sentir mesmo sem ver. Se tudo isto trabalha muito bem na construção do conhecimento dos eventos, toda a banda sonora adicionada ao jogo é imensamente poderosa, trabalhando com música coral que enfatiza o sentimento e conduz as sensações que vamos sentindo na progressão do jogo. Posso dizer que existe algum exagero no recurso musical, já que quase tudo é conduzido por este, o que claramente dá conta das fragilidades narrativas do objeto, muito por lhe faltarem personagens que possamos chegar a conhecer e empatizar completamente.

Trailer de “Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) de The Chinese Room

Mas é o no final que tudo se dá, e é poderosamente gratificante, ainda que possamos sentir alguma lógica “new age” em toda a conceptualização da vida e universo, mas a forma como se constrói toda a sequência final é feita de modo gerar arrepios emocionais nos mais sensíveis. Quando tudo começa a fazer sentido dentro de nós, quando as duas linhas de enredo se cruzam e se tornam numa só, quando percebemos o que representa tudo aquilo que experienciámos até ali, dá-se a catarse cognoscente que acompanhada pela banda sonora e imagens finais nos deixa ali colados aos créditos finais, sem vontade de arredar até que o último nome passe...

novembro 14, 2015

“The Vanishing of Ethan Carter”

Um claro sucessor de “Dear Esther” (2012) e “Gone Home” (2013) em termos narrativos, porque se socorre da primeira-pessoa para nos conduzir na exploração de um mundo aberto carregado de indícios que nos permitiem ir ganhando acesso ao sentido da história. Menos críptico que “Dear…”, mais dinâmico que “Gone…”, dotado de uma arte visual verdadeiramente sumptuosa “Vanishing…” procura avançar na arte da mescla entre jogo e história.





The Vanishing of Ethan Carter” tal como “Dear” e "Gone” é um jogo independente mas feito por pessoas que já trabalharam em jogos triple-A, o que não é difícil de perceber dada a qualidade da produção final de qualquer um destes três jogos. Neste caso a The Astronauts é uma empresa polaca dirigida por Adrian Chmielarz, Andrzej Poznanski e Michal Kosieradzki, fundadores da People Can Fly, entretanto comprada e transformada em Epic Poland. A equipa trabalhou antes em jogos como “Bulletstorm” (2011) e “Gears of War: Judgment” (2012), à qual  se juntou para o desenho da narrativa, Tom Bissel e Rob Auten os guionistas de “Gears of War: Judgment”, tendo Bissell trabalhado também em “Batman: Arkham Origins” (2013) e juntamente com Neil Druckmann em “Uncharted 4: A Thief's End” (2016).

Ao contrário de “Dear…” e “Gone…”, “Vanishing…” não se limita a contar-nos a história por meio de textos espalhados nas mais diversas formas no mundo, encontrando uma forma particularmente engenhosa de injetar vida nos eventos do passado através da visualização de memórias psíquicas (espécie flashbacks audiovisuais interativos), às quais só conseguimos aceder depois de dar sentido ao puzzle de elementos que vamos encontrando espalhados pelo mundo. Por sua vez estas memórias depois de ativadas são ainda trabalhadas em termos de reorganização das memórias para as podermos descodificar completamente.

Desta descrição facilmente se pode depreender todo o trabalho envolvido na criação da mescla entre storytelling e jogo, algo que está no centro das preocupações de Adrian Chmielarz, aliás esta mescla em várias camadas não surge por acaso, foi antes perfeitamente delineada enquanto modelo de aplicação narrativa aos videojogos, criado por Chmielarz e Thomas Grip da Frictional Games, sob a designação "4-Layers", tendo sido implementado neste jogo pela primeira vez, e sido seguido também no caso do jogo "SOMA" (2015) da Frictional Games.

No final do jogo deparamo-nos com um twist pouco comum, embora não completamente original, ainda assim suficientemente forte para nos impactar emocionalmente e desejar ir atrás de mais informação, nomeadamente jogar e descobrir alguns elementos ainda espalhados pelo mundo, ou ler a prequela lançada em banda desenhada umas semanas antes do jogo. A nossa compreensão da história ganha novas abordagens, enriquece o sentido, assim como tudo ganha maior coesão.

"Prequel mini-comic The Vanishing of Ethan Carter” (2015) [Ler]

Por outro lado, e em termos negativos diga-se, posso dizer que não gostei da introdução de elementos esotéricos que acabam por funcionar como artificialização do desconhecido, gerando uma camada extra de obstáculos no acesso à descoberta do que se terá passado. Não sendo algo muito interessante, é-o ainda menos quando no final o twist narrativo acontece, e percebemos o que realmente está em questão.

novembro 13, 2015

"How to Read and Why"

Demasiadas coisas más, acabei o livro a bufar, mais ainda depois de um epílogo sobre escritas rabínicas! Opto por justificar esta minha impressão em quatro pontos, o primeiro central, dois menores, e por fim o maior problema deste livro.

"How to Read and Why" (2000) de Harold Bloom

Primeiro, este é um livro que não fala absolutamente nada sobre aquilo que o seu título propõe, ou seja, nada é dito sobre o Como, assim como nada é dito sobre o Porquê, de ler, literatura ou outra forma escrita qualquer. Bloom limita-se a mais uma vez, depois de o ter feito n vezes, a listar e dissertar sobre o seu cânone. No final do livro fica a ideia de que Bloom passou toda uma vida a ler literatura, apenas e só, nunca se tendo importado realmente em perceber o ser humano que lê, a sua biologia, a sua psicologia. A filosofia é importante, mas se queremos compreender o processo de leitura, e o porquê da sua importância, não é aí que estão as respostas.

O segundo ponto, menos relevante, é que Bloom defendendo que a literatura deve ser um prazer, faz o favor de dar conta dos conflitos principais nas obras, revelando todas as suas resoluções, e assim destruindo uma das grandes gratificações que se pode retirar da leitura de qualquer narrativa. Ora se o livro diz que procura instigar as pessoas na leitura, isto mais parece uma abordagem de quem está a falar para quem já leu, e se é para quem já leu, acaba por ser um livro sem sentido, já que muito pouco é acrescenta à leitura das obras.

Terceiro, Shakespeare. É uma caraterística académica, isto de trabalharmos tão profundamente uma área, um tema, uma obra, um autor, tanto que depois todo o mundo passa a ser filtrado por aí. É isso que aqui acontece, Bloom revela uma profunda obsessão com a obra de Shakespeare, citando-o num livro tão pequeno mais de 200 vezes. Não conseguindo libertar-se do mesmo, arrisca a dizer que depois deste nada mais de original foi criado na literatura!

Último ponto, o que verdadeiramente me fez perder a vontade de algum dia mais voltar a ler Bloom, tem que ver com o tipo de crítica realizada às obras. Bloom segue a linha de muitos outros académicos estudiosos de artes narrativas, como os dos estudos fílmicos, que é a de limitar a análise das obras às suas histórias, o que é dito pelo texto, deixando de fora as suas formas, ou seja o como o texto diz. Ora isto não é limitador, é uma autêntica amputação artística, que acaba tendo como efeito principal uma análises estética profundamente deficitária. Não dando conta do contributo artístico do texto, não é possível dar conta da real experiência da obra, a sua estética. Uma pessoa que limite a sua experienciação de uma obra à mensagem passada, à ideia veiculada, e não atenda ao modo como essa ideia é construída, arrisca-se a passar ao lado da arte em si.

Ora isto é tanto mais grave quando se trata de um livro que deveria apontar o "como" e o "porquê" de lermos literatura. Se o "porquê" se limita às histórias, existem histórias por todo o lado, porque razão haveriam as pessoas de investir vidas inteiras na leitura apenas para conhecerem uma história que podem conhecer num filme de duas horas?! Quanto ao "como", Bloom limita-se a listar o seu cânone, e para ele fica explicado o como fazer, basta ler aqueles livros por si indicados. Para além de ser muito pouco, é mesmo contraproducente, acreditar que vamos cativar pessoas para investir na literatura, não fazendo uma pedagogia mínima, não apenas sobre os ganhos efetivos da literatura, mas também sem explicar as complexidades que a leitura de determinadas destas obras contêm, dos requisitos que elas tomam como adquiridos pelo leitor, tudo isto é mau demais.

Fico mais descansado depois de ler a análise de Terry Eagleton no The Guardian, percebendo que não estou sozinho nesta ideia negativa da obra e do autor.

novembro 11, 2015

O desastre anunciado no design da Apple

"How Apple Is Giving Design A Bad Name" é um texto fundamental, escrito por duas das mais importantes figuras internacionais do Design de Interação, Don Norman e Bruce Tognazzini, sobre os problemas de que hoje enferma o design da Apple. Aliás, o texto é tão bom e detalhado que merecia ter sido pago, e bem pago, pela Apple como consultoria externa. Vale a pena ler todo o documento, e refletir não apenas naquilo em que a Apple se transformou, mas também aquilo que continua a ser a essência do Design de Interação.


Vou começar pelo final do texto, o momento em que Norman e Tognazzini identificam aquela que eu acredito ser a origem do problema, e que está na seguinte frase:
“Industrial design is primarily concerned with materials and form, and this is the area in which Apple excels. Graphic design is supposed to be about aesthetics and communication, but Apple has emphasized appearance to the great detriment of the communication component.”
Ou seja, a Apple é hoje uma marca de excelência em Design Industrial, deixou de o ser em Design Gráfico, no sentido em que se perdeu no Design de Interação. Porque aconteceu isto? Julgo que a resposta dá pelo nome de Jonathan Yve. Durante anos Jobs vendeu-nos Yve como um visionário, mas eu só percebi concretamente quem era Yve quando li o livro “Jony Ive: The Genius Behind Apple's Greatest Products“ (2013). Foi aí que percebi de onde vinha, e ao que vinha, o que o motiva verdadeiramente. Nada tenho contra Yve, mas a sua filosofia de design é totalmente distinta da de Jobs, acima de tudo porque a base de Yve é o industrial. Aliás esta diferença entre os dois ficou patente quando Jobs morreu e Yve assumiu as funções máximas dentro da Apple, sendo que uma das suas primeiras ordens foi ditar o fim das metáforas nas interfaces, o esqueumorfismo que Jobs tanto idolatrava, propondo em seu lugar o "flat design”.


A Apple sempre teve problemas com o design de interação, principalmente porque como qualificou Dan Saffer em "Designing for Interaction", optou por uma abordagem centrada no Génio. Ou seja, uma pessoa iluminada capaz de ter ideias suficientemente empáticas que todos os outros vão desejar ter. Isto acontecia com Jobs muitas vezes, apesar de não ser infalível, mas está longe de ser o terreno de Yve, que é antes de mais um designer industrial. É alguém muito bom para desenhar o hardware da Apple, como temos visto desde que ele está na Apple, mas não é a pessoa indicada para estar à frente de todo o design, mais concretamente do de interação do OS.

Como dizem os autores, não culpem a Bauhaus ou Dieter Rams, os princípios seguidos hoje pela Apple nada têm que ver com 10 princípios de Rams, e nem sequer com os princípios originais do design do Macintosh que foram centrais no suporte do chamado design de interação focado no génio, em vez de baseado nos utilizadores. Mas como se pode ver no quadro abaixo esses princípios basilares foram completamente deturpados, tudo em nome da obsessão estética, a forma acima da função.

Quadro comparativo dos princípios de design, entre 1995 e 2015

O que mais me choca neste interessantíssimo quadro, para além do reduzido número de princípios que sobraram, depois do desbaste motivado pela obsessão pela simplicidade, é a inversão de prioridades, com a Metáfora a trocar de posição com a Estética. Imperdoável, e Yve sabe tão bem isto, contudo com o tempo claramente que foi perdendo o contacto com a realidade. Mesmo em termos de design industrial, veja-se o último Mac apenas com uma entrada/saída, apesar de ser um feito de design e engenharia, é-o totalmente à custa da funcionalidade e dos seus utilizadores. Yve, ou melhor a Apple, precisa de compreender que não está a desenhar uma jóia mas uma ferramenta de trabalho.


Problemas identificados por Norman e Tognazzini 
“A woman told one of us that she had to use Apple’s assistive tool to make Apple’s undersize fonts large and contrasty enough to be readable. However, she complained that on many app screens, this option made normal fonts so large that the text wouldn’t fit on the screen. It’s important to note that she did not have defective vision. She just didn’t have the eyesight of a 17-year-old.”
“So often, the user has to try touching everything on the screen just to find out what are actually touchable objects.”
“the inability to recover after an undesired action. One way to do that is with undo, the addition of which to the original graphical user interfaces was brilliant. Not only did it allow for recovery from most actions, it gave users the freedom to try new actions, confident of their ability to recover if the result was not to their liking. Alas, Apple, in moving to iOS, initially discarded this essential element of system design (..) So guess what happened? People complained. En masse. So they put undo back in, sort of: All you have to do to undo is to violently shake your phone or tablet. But undo is not universally implemented, and there is no way to know except by shaking.”
“Apple products deliberately hide complexity by obscuring or even removing important controls. As we often like to point out, the ultimate in simplicity is a one-button controller: very simple, but because it has only a single button, its power is very limited unless the system has modes. Modes require a control to take on different meanings at different times, leading to confusion and errors.”

Diferenças entre formação de designers, segundo Norman e Tognazzini
“In the design arena, interaction designers trained in psychology know the principles of conceptual models, clarity, and understandability, while those trained in computer science may not, and those from the graphic design field seem to think that interaction design means websites, and they often fail to understand either programming niceties or human-computer interaction.”

O que se perdeu no processo, segundo Norman e Tognazzini
1 - Discoverability
2 - Feedback
3 - Recovery,
4 - Consistency
5 - Encouragement of growth
O segundo ponto aqui destacada, da perda do feedback é um autêntico tiro no pé da Apple. Como é possível extrair o feedback, se ele não apenas é central na interação, como é a base de qualquer processo de comunicação? Claramente um indicador de que a Apple não pretende mais comunicar, mas apenas transmitir. Outro princípio fundamental é o 5º, a Apple deixou de encorajar o crescimento das pessoas, está apenas focada na transmissão, como tal no consumo por parte das pessoas (iTunes, iPad, Apple TV, etc.) e não no que elas possam criar.
“Good design encourages people to learn and grow, taking on new and more complex tasks once they’ve learned the basics. Snapshot takers grow to become photographers, personal journal writers become bloggers, and children try programming and end up seeking careers in computer science. For decades, encouraging learning and growth was the life blood of Apple, a principle so important that it was universally internalized and understood.”

Leiam o texto completo:
How Apple Is Giving Design A Bad Name”, Don Norman e Bruce Tognazzini, (10.11.2015)

Arte do storytelling sequencial

Matthew Inman criou sozinho um dos sites de cartoons mais visitado da web, The Oatmeal, sendo capaz de gerar mais de quatro milhões de visitas ao longo de um mês. A banda desenhada de hoje, "It's going to be okay" é baseada na história real de uma personalidade bem conhecida dos amantes de séries de ficção científica televisivas. Se a personagem é um ícone e a história profundamente inspiradora, o mais interessante para mim acabou sendo a belíssima arte sequencial criada por Inman.


Tal como definida por Eisner e McCloud a arte sequencial delimita-se no conjunto de imagens desenvolvidas em sequência para contar uma história, normalmente mais ligada à banda desenhada, mas podendo aplicar-se ao cinema e cinema de animação, já que estes não passam de 24 imagens por segundo, criando na nossa mente uma mera ilusão de movimento. No caso da banda desenhada, a sequência pode surgir de qualquer forma, na vertical, horizontal, direita para esquerda, esquerda para direita, sendo apenas relevante que exista sequência entre as imagens.

Ora a sequência apresentada nesta banda desenhada acontece na vertical e em quadros únicos, o que pensado de raiz pelo autor, abre espaço a toda uma potenciação do storytelling, nomeadamente na gestão da informação e expectativas que se vão criando na cabeça do leitor. Isto não tem nada de novo, o que aqui se releva é antes a mestria com que Inman geriu toda a sequência de imagens e textos, controlando a história e as nossas emoções com um ritmo absolutamente perfeito.

Leiam a história em "It's going to be okay".

novembro 10, 2015

Animação 3d: "Os Laços de Sangue"

Uma animação literalmente sumptuosa. Toda a direcção de arte trabalha de forma soberba a luxuria da relação de sangue em questão, criando todo um universo, que não sendo propriamente inovador é altamente eficiente e consistente na criação do sentimento que subjaz à personagem principal. Mais um belíssimo trabalho de alunos da escola francesa de cinema e animação George Méliès.




Temos todo um conjunto de cenários barrocos, cheios de folhos e formas curvas, cobertas por contrastes de luz intensa e volumosa, tudo toldado por tons de vermelho sangue. As personagens assumem uma caracterização particular, autoral, fina e detalhada, de grande coerência entre si.

O menos conseguido, ainda que falemos de uma curta de 3 minutos, acaba sendo a história, pelo cliché, assim como pela tentativa gorada de sugestão, que acaba por passar mais como explicação. Ainda assim a narrativa trabalha em consonância com toda a restante arte, acabando por funcionar como a necessária cola e justificação da criação do universo.

"Les Liens de Sang" (2015) de Sophie Kavouridis, Manon Lazzari, Marion Louw, Simon Pannetrat e Thomas Ricquier

novembro 09, 2015

Automação da arte

Nos últimos anos temos assistido à automação de tarefas um pouco por todas as esferas da atividade humana. Qualquer atividade que requeira repetição de passos, sem grande variabilidade, é rapidamente sujeita a processos de informatização que permitam a sua automação por máquinas. Ora se existe área onde isto não parece fazer muito sentido é na criação artística, já que aquilo que se espera neste domínio é sempre a criação de novo, diferente, original. Contudo parece que já nem sempre assim é.



O mais recente exemplo surgiu esta semana no campo da criação de ambientes virtuais em tempo real, para usar na plataforma Unreal. Trata-se do Landscape Auto Material criado pela VEA Games, e que permite criar todo um ambiente florestal, altamente original de cada vez, porque personalizado em termos de posição e dimensão, assim como elementos e texturas. Basta arrastar o rato para rapidamente criar um trilho com ervas, pedras, arbustos, riachos, assim como criar relevos. É o mais próximo que já vimos da criação artística através do clique de um botão.

Como dizíamos acima isto não é novo, em 2010 tínhamos visto a Adobe apresentar a ferramenta Content Aware que faz algo muito parecido em fotografia 2d no Photoshop. Estamos no fundo a falar de algoritmos que conseguem usar informação sobre objetos pré-existentes para criar novos. Aliás o próprio mundo do webdesign já imensamente fustigado pelas gigantescas bases de dados de templates, começa também agora a conhecer ferramentas deste tipo, com IA que se adapta às necessidades mais específicas de cada utilizador. Por um lado tudo isto parece em certa medida ficção científica, por outro começa mesmo a parecer o início do fim das artes, mas será mesmo?

Na verdade não. Primeiro, porque falamos de atividades criativas altamente repetitivas, profundamente orientadas a um objetivo, ou mesmo tarefa. Nada nestes processos é muito criativo, tendo em conta a quantidade de objetos semelhantes criados antes. Ou seja, de que modo podemos separar hoje o desenho de um website, ou de um terreno florestal 3d, do esculpir de uma caneca de barro? Na verdade nada, e por isso mesmo é que estas ferramentas surgem, e cada vez teremos mais. Mas isto não quer dizer que deixaremos de precisar de criadores de universos de paisagens virtuais, ou de criadores de websites.

Simplesmente porque estas ferramentas são apenas e só tecnologias criativas, tecnologias que trazem embebidas em si, conhecimento de suporte à criação. Ou seja ferramentas que permitem a quem nada percebe do assunto rapidamente construir algo, e assim aceder ao universo em questão, encontrando-se em termos criativos. Assim como permitem a um criativo profissional rapidamente executar algumas das tarefas mais repetitivas, sem contudo deixar nunca de executar o seu trabalho, aquele pelo qual verdadeiramente é pago, a ideação e a comunicação, ou seja a capacidade de pensar de forma única, inovadora, e de transformar esse pensar, a imaginação, numa forma real e expressiva.

Por mais automação que venhamos a criar, a ideação e sua expressão são uma espécie de último reduto intransponível. Mesmo que venhamos a conseguir dotar máquinas de consciência um dia, aí passaremos a ter entidades por detrás dos processos de ideação, o que implicará que esses processos continuarão a não ser catalogados de automação, mas sim de criação, ainda que não sejam fruto de uma mente humana.

"UE4 Pack: Landscape Auto Material" (2015) da VEA Games

novembro 07, 2015

"Não É Meia Noite Quem Quer"

Li centenas de crónicas de António Lobo Antunes (ALA), contudo este é o seu primeiro romance que termino. Não que me tenha esforçado por ler outros, confesso que outros antes não me motivaram suficientemente, nomeadamente pelo surgimento constante do tema da guerra colonial, que me provoca algum distanciamento. Este perseguia-me quase desde que saiu, pois gostei imenso das primeiras páginas, o retrato que ALA ali desenha abre para uma espécie de cenário tipo do cinema português dos anos 1990: Urbano, melancólico, pausado, reflexivo, e profundamente introspectivo.


Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.

A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.

Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.

São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.

Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.

Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.

novembro 05, 2015

Adereços do storytelling

Rishi Kaneria criou um belíssimo ensaio audiovisual, “Why Props Matter”, no qual dá conta da importância dos adereços no cinema. Apesar de focado no cinema, serve qualquer outra arte narrativa (teatro, literatura ou videojogos), uma vez que a análise se foca no modo como estes impulsionam o contar de histórias.




De forma geral os adereços servem de caracterização, ou melhor de exteriorização dos personagens. Ou seja, as artes narrativas visuais sofrem do problema de terem de traduzir em imagem sentimentos de pessoas, ações internas, o que é por si só todo um trabalho de concepção, desenho e escrita para chegar ao melhor modo de o conseguir. Como posso mostrar que uma pessoa está impaciente ou nervosa? Mostrando-a a olhar incessantemente para o adereço “relógio”. O adereço contém em si mesmo uma carga significativa suficiente para traduzir visualmente aquilo que vai na cabeça do personagem.

Claro que fazer isto com sentimentos universais é até simples, ou quando simplesmente queremos dar conta dos objetivos externos ou das ação necessárias para os conseguir, mas quando queremos ir ao fundo da psyche do personagem, quando precisamos de traduzir complexidade interna e elaborada como o remorso, a vergonha, ou dar conta do crescimento e amadurecimento de um personagem, tudo fica mais complicado, e os adereços começam a fraquejar.

Não é por acaso que muitos dos exemplos aqui dados são do cinema de hollywood, um cinema reconhecido pela acção, pela aposta nos problemas externos dos personagens das suas histórias. "Como diz Kaneria, os adereços são objetos com que qualquer pessoa se consegue relacionar."

Mas quando queremos compreender com que se debate internamente uma criança abandonada pelos familiares, uma jovem violada por um pai, ou uma mãe que perdeu um filho, temos de recorrer ao cinema alternativo, nomeadamente independente ou europeu. E aí os adereços continuam a ter relevo, mas dada a complexidade que representam, a sua leitura é muito menos direta, deixa de existir um acesso facilitado ao mundo representado, ficando tudo muito mais dependente daquilo que o espetador consiga fazer com eles. No fundo assistimos à transformação dos adereços como objetos de representação em objectos de simbolização.



Alguns desses símbolos podem até tornar-se ícones após o seu uso numa obra, por via do contexto narrativo que passa atribuir-lhe valor direto, mas inicialmente surjem numa forma puramente simbólica, sem qualquer objetivo icónico, como uma roda de charrete em "O Dia do Desespero" (1992) de Manoel de Oliveira, ou uma árvore num descampado em “The Sacrifice” (1986) de Andrei Tarkovski.

“Why Props Matter” (2015) de Rishi Kaneria


Agradeço ao Fernando Martins que teve a amabilidade de me fazer chegar este ensaio.