setembro 05, 2012

Viagem a Itália com Scorsese, Rossellini e Antonioni

Neste verão, depois da Minha Viagem a Itália com Scorsese ao longo de quatro horas, não resisti a procurar ver e rever alguns dos filmes que marcaram o período mais importante da história do cinema italiano, o chamado neorealismo, fruto do final da segunda grande guerra na Europa. Vi assim os três primeiros filmes de Rossellini -  Roma, Città Aperta (1945), Paisà (1946), Germania Anno Zero (1948) - a chamada trilogia da guerra, e depois os primeiros três filmes de Antonioni - L'Avventura (1960), La Notte (1961) e L'Eclisse (1962) - definidos como a trilogia do descontentamento com o modernismo.

Il Mio Viaggio in Italia (1999)

Começando por Rossellini, os seus filmes são de um realismo impressionante, não tanto na forma apesar de alguns actores não-profissionais, mas mais na escolha do tema e o seu tratamento discursivo. Roma impressiona-nos muito, mesmo passados 60 anos o filme continua imensamente atual, mas fiquei ainda mais impressionado com Germania que nunca tinha visto.

Germania Anno Zero (1948)

Se Roma é um manifesto declarativo da inocência do povo italiano contra a barbaridade fascista, Germania é um dos poucos filmes em toda a história do cinema a atrever-se a mostrar o outro lado, a ser condescendente com um país odiado por todos. E este filme só o pôde ser porque surgiu exatamente depois de Roma, de outra forma seria muito difícil aceitar tudo o que aqui é exposto sem pensar em segundas intenções por parte do autor. Paisá é por outro lado um retrato do pós-guerra, breves contos que nos transportam por entre diferentes perspectivas e sentires do pós-guerra de sul ao norte de Itália.

Roma, Città Aperta (1945)

Mas se viajar com Rossellini é sentir banhos de realidade em sofrimento visceral, já viajar com Antonioni, apesar de continuarmos sobre bandas largas de sofrimento, é vaguear pelos implícitos e sentir apenas após reflectir. Enquanto Rossellini se preocupou em pôr tudo à flor da pele, e a mostrar provas para nos levar a acreditar e a sentir, Antonioni cria todo um universo de atmosferas introspectivas que nos faz desligar da realidade diária e nos transporta para uma espécie de realidade alternativa que se agarra a nós e teima em não nos deixar muito depois de os filmes terem acabado.

L'Avventura (1960)

Depois de ter visto a trilogia de seguida, o meu sentimento à volta da especificidade antonionesca sai ainda mais reforçado. Tudo nestes filmes transpira Antonioni, sente-se na atmosfera, nos diálogos, na fotografia, no ritmo, na interpretação. Toda a estilística é tão peculiar que se torna inconfundível, é toda uma forma própria de expressar ideias, ainda que usando um mesmo meio, o cinema. Antonioni respira e expira melancolia intelectualizada, pouco se passa, e o que passa nada diz de modo explícito. Cada momento está repleto de sentidos, mas cabe ao espectador encontrá-los, é o minimalismo. Se nos deixarmos levar pelas ideias em imagens, entraremos adentro de uma forma diferente de olhar a realidade, que sem dúvida nos questiona sobre o que nos rodeia.

L'Avventura (1960)

L'avventura consegue de uma forma tão subtil e minimal dar conta de um dos maiores dramas da contemporaneidade, a diminuição do tempo de atenção. O desaparecimento de Anna rapidamente se esvanece sem qualquer resposta, e os personagens nem por ela esperam, para logo reatarem novos romances. Tudo se move muito rapidamente, tudo anda muito depressa, interessa apenas o aqui e o agora. Mas L'Aventtura faz isto de uma forma que podemos dizer narrativamente brutal, como é possível que o filme não dando resposta ao desaparecimento de um personagem os espectadores ainda assim se contentem, e consigam proceder ao fechamento da narrativa. É um olhar crítico à pós-modernidade, em que se aceita a destruturação, a fragmentação, em que tudo é efémero, flexível, re-adaptável e não-durável.

La Notte (1961)

La Notte traz-nos mais uma vez a crítica da nova modernidade representada no escritor de sucesso, na sua ascensão, e na deliberada crítica ao sistema mercantilista em detrimento da cultura. O casal deambula como uma dupla de zombies por entre a sociedade em busca de motivações que os mantenham juntos, tudo está ao alcance, mas tudo é tão desprezível.

L'Eclisse (1962) 

L'Eclisse quer seguir na mesma linha, embora dos três seja o menos forte para mim. Mais uma vez a crítica e sátira ao mercantilismo, com a bolsa de Milão como pano de fundo. Monica Vitti não encontra repostas ao seu desejo de uma relação de amor, mas no fundo será que é mesmo isso que procura. Carrega consigo a melancolia do questionamento constante, para onde vou e porque vou, o que faço aqui. Aliás toda a trilogia é de um existencialismo exacerbado, que por momentos me faz pensar em Camus, embora numa linha diferente.

OffBook #25: The Art of Glitch

A série Offbook traz-nos um dos mais interessantes episódios, The Art of Glitch, que vai aos limites da fronteira da arte para discutir a emergência de novas possibilidades de expressão e comunicação. O glitch é uma manifestação electrónico-digital não manipulável, com a qual se pode experimentar mas que dificilmente se pode dominar. Onde alguns veem frustração outros encontram beleza, onde alguns veem destruição, outros encontram reconstrução.





De certa forma e em termos processuais a arte do glitch é a mais pura forma de experimentação, de subversão do expectável, a base fundamental da criação artística. Já no campo da análise estética, glitch é uma espécie de neo-grotesco pós-moderno e abstracto.

setembro 04, 2012

Making is Connecting (2011) de David Gauntlett

Making is Connecting: The social meaning of creativity, from DIY and knitting to YouTube and Web 2.0 (2011) de David Gauntlett é um livro fundamental na corrente atual de livros (ex. livros de Clay Shirky ou Charles Leadbeater) sobre os efeitos da nova criatividade potenciada pela internet e mais especificamente pela web 2.0.

"This is a book about what happens when people make things." (p.1)

David Gauntlet forma o seu discurso na base de que as pessoas deixaram de lado o tempo que perdiam com a TV para passarem a criar, a nova era do DIY. E justifica essa vontade de criar com base em dois autores do século XIX que vale a pena ler ou reler William Morris e Jonh Ruskin. Estes acreditavam que o processo industrial de produção em massa era desumanizador porque impossibilitava as pessoas de criar, de experienciar a criação e sentir os efeitos da sua realização, eliminando o pensamento que antes se construía enquanto se fazia.

O fosso não criativo criado no século XX pela TV

Em consonância com a discussão da Revolução Industrial surgiram os movimentos que separaram a arte do artesanato, mas Gautnlet vem agora defender que esta separação não faz sentido, e eu concordo integralmente. A arte é fruto da materialização de ideias, se a materialização e as ideias são boas, só depois o saberemos, à partida são ambas iguais. O artesanato não é um processo industrial como se quis fazer crer, é um processo manual através do qual o criador se constrói enquanto pessoa. Fazer e pensar são inseparáveis.

DIY Arduino helicopter

Gauntlett repesca também Ivan Illich há muito adormecido, e opõem-se a Chris Anderson. Esta sua oposição foi uma das mais interessantes, pois depois de ler Free quase que acreditei, ou quis acreditar que seria tudo assim simples como Anderson nos dita. Mas a realidade é que todos precisam de sobreviver, sem pagamento pelo trabalho criativo, deixaremos de ter trabalho de qualidade, porque as pessoas apenas o poderão fazer nas horas livres. E por isso mesmo a cultura do gratuito porque é digital é desprovida de sentido e apenas sustentável numa lógica de "copia dos outros, mas não a mim".


Uma das coisas que menos acredito em todo este discurso da nova criatividade, é que é muito fácil de construir numa cultura de pessoas com formação superior, mas quando os níveis de literacia baixam, torna-se muito difícil sustentar toda esta cultura produtiva de ideias, porque as ideias não germinam no ar. A Taxonomia de Bloom apesar de dizer respeito à aprendizagem, vista num modelo hierárquico, continua a ser bastante elucidativa sobre o modo como evolui a nossa capacidade para inovar. Não querendo com isto dizer que não existem excepções, basta ver Saramago, mas são excepções, ou melhor extraordinárias excepções.

Taxonomia de Bloom

Gauntlett criou um excelente sítio de acompanhamento do livro que está carregado de informação adicional, extractos do livro e vídeos de conferências suas muito interessantes. Deixo aqui abaixo uma das conferências que tão bem resume todo o seu pensamento. Entretanto no número 22 da revista Comunicação e Sociedade do CECS, dedicado às Tecnologias Criativas e que estou a editar com o Pedro Branco, sairá uma recensão alongada do livro por Elisabete Ribeiro. 

setembro 03, 2012

Old School vs. New School

Old School vs. New School (2012) é o último trabalho de Freddie Wong que agora assina pela Rocket Jump. freddiew como é conhecido online criou há algum tempo um canal no YouTube que se tornou um sucesso de visualizações, cada nova curta tem sempre acima de um milhão de visualizações. freddiew trabalho num registo muito semelhante à dupla dos Corridor Digital, curtas que satirizam videojogos e filmes populares, com recurso a uma panóplia de efeitos especiais.


A particularidade de freddiew e Corridor Digital é que ss Fx são sempre muito bem conseguidos, ainda que por vezes se note o lado amador. Mas dá para perceber que tudo é feito com muito poucos recursos, e que raramente se diferenciam das grandes produções de hollywood, daí o sucesso.


O que esta curta Old School vs. New School traz de interessante é uma discussão atual mas aqui tornada visual, e que passa por uma guerra entre a conceptualização do gameplay dos jogos antigos e os conceitos de jogo nos jogos atuais Uncharted, Assassin's Creed, Halo ou Tomb Raider. Quem é mais forte, ou melhor quais são os verdadeiros jogos?


Podemos notar algumas influências na curta de uma outra curta de homenagem aos 8 bits, Pixels (2010) de Patrick Jean. Por outro lado julgo que a ideia do buraco no ceu pode ter sido retirada de Avengers (2012).

 

Filmes de Agosto 2012

Mês de Agosto como sempre fica repleto de bons filmes, passo o ano a guardar filmes para os quais não consigo disposição para ver durante as fases de maior trabalho. Depois no verão dá para relaxar e ver obras mais pesadas, difíceis ou antigas. Nas notas máximas nada de especial a assinalar, tirando a primeira obra de Haneke, todas as outras são referências clássicas do cinema mundial. Depois nas quatro estrelas, um belíssimo filme Turco, e uma repescagem de Carlos Saura. Já nas três estrelas só filmes atuais, nada de especial a dizer, talvez ainda escreva sobre Cabin in the Woods sobre o seu modelo narrativo e o trabalho do género. Já nas duas estrelas aparece um filme que me surpreendeu pela negativa, de tanto ouvir falar em Hunger Games, esperava algo, não que fosse uma revolução estética, mas pelo menos algo novo na história, afinal traz-nos aquilo que já tantas vezes vimos, sem nada de novo.

xxxxx Seventh Continent 1989 Michael Haneke Austria [Análise]

xxxxx La Notte 1961 Michelangelo Antonioni Itália

xxxxx L'Avventura 1960 Michelangelo Antonioni Itália [Análise]

xxxxx Germania anno zero 1948 Roberto Rossellini Itália

xxxxx Roma, Città Aperta 1945 Roberto Rossellini Itália [Análise]


xxxx Once Upon a Time in Anatolia 2011 Nuri Bilge Ceylan Turquia

xxxx Silent Souls 2010 Aleksei Fedorchenko Russia [Análise]

xxxx My Voyage To Italy 1999 Martin Scorsese Itália [Análise]

xxxx Ponette 1996 Jacques Doillon France

xxxx Cria Cuervos 1976 Carlos Saura Espanha

xxxx L'eclisse 1962 Michelangelo Antonioni Itália

xxxx Paisà 1946 Roberto Rossellini Itália


xxx Avengers 2012 Joss Whedon EUA

xxx Madagascar 3: Europe's Most Wanted Eric Darnell EUA

xxx The Cabin in the Woods 2011 Drew Goddard EUA [Análise]

xxx Le Havre 2011 Aki Kaurismaki Finlândia

xxx Machine Gun Preacher 2011 Marc Forster EUA

xxx Headhunters 2011 Morten Tyldum Noruega

xxx My Week with Marilyn 2011 Simon Curtis UK



xx The Hunger Games 2012 Gary Ross EUA

xx The Raid Redemption 2011 Gareth Evans Indonesia


[Nota, Título, Ano, Realizador, País]
[x - insuficiente; xx - a desfrutar; xxx - bom; xxxx - muito bom; xxxxx - obra prima]

setembro 02, 2012

Sete Pecados por Dali

A Divina Comédia (1308- 1321) de Dante Alighieri faz parte da história religiosa da Europa, como tal tem servido de pano de fundo aos mais diversos trabalhos e aos mais diversos artistas. Desde Bosch a William Blake, de Gustave Doré a Rodin, e mais recentemente de David Fincher à Visceral Games, muitos têm trabalhado Dante.


A Divina Comédia é uma obra enorme, contém mais de 14 mil versos, está dividida em três livros - Inferno, Purgatório e Paraíso -,que por sua vez se subdividem em 100 cantos, cada um dos lugares de cada livro é constituído por nove círculos. Toda a obra é construída sob uma lógica matemática que sustenta a construção da narrativa de uma forma férrea. No livro do Purgatório existem sete círculos que são os mais conhecidos da obra, porque representam os chamados Sete Pecados Capitais Orgulho, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria.

O Anjo Caído (gravura)

Descobri recentemente que Salvador Dali foi comissionado em 1951 pelo governo Italiano para desenvolver um conjunto de aguarelas para a impressão comemorativa dos 700 anos. Entretanto a comissão foi cancelada por causa de controvérsias sobre as simpatias manifestadas por Dali para com o Fascismo, e ainda pelo facto de a Itália estar a recorrer a um espanhol para criar um marco histórico italiano. Ainda assim Dali completou 100 ilustrações até 1959 que foram nesse ano publicadas por Joseph Foret numa edição limitada (33) e assinada. Depois disso foram feitas outras edições limitadas, sendo a mais conhecida a da Les Heures Claires.

Assim foi Criada a Terra (gravura)

Entretanto foi através do Open Culture que encontrei o site da Lockport Street Gallery onde é possível ver todas as 100 ilustrações. Para este artigo resolvi seleccionar apenas os Sete Pecados, ainda que estes não sejam todos directamente rotulados, mas da pesquisa que fiz estes parecem aproximar-se o mais possível. O site da Lockport apresenta os títulos para cada ilustração, mas para confirmar cada título é melhor seguir o site da Sociedade de Salvador Dali, porque vários títulos no Lockport estão errados. Abaixo ficam as melhores imagens que consegui de cada uma das sete xilogravuras.


A Vaidade

A Inveja 

A Ira

A Preguiça

A Avareza

A Gula

A Luxúria

Viagem pela Rússia

Silent Souls (2010) de Aleksei Fedorchenko evoca uma etnia milenar desaparecida, os Merja, que foi entretanto transformada pelos Eslavos, chegando à Rússia moderna apenas sob a forma de alguns costumes e tradições nas zonas de Rostov, Jaroslavl, a norte de Moscovo.


Mesmo não sabendo que o primeiro trabalho de Fedorchenko se tratava de um falso documentário, First on the Moon (2005), é difícil não nos questionarmos sobre a veracidade do que nos é apresentado em Silent Souls. Não os costumes e as tradições apresentadas, mas a hipótese de eles prevalecerem numa sociedade moderna, com o controlo e a legislação que nos rege. Seria possível transportar um corpo num carro comum embrulhado numa manta ao longo de vários quilómetros sem ninguém querer saber, e mesmo a polícia achar normal?


Mas isto é apenas a superfície da realidade que serve de ponto de partida à narrativa mágico-realista de Fedorchenko. O que o filme nos traz vai muito para além desses detalhes, e joga-se no mundo do espiritual, expondo a nu o modo como os Merja conceptualizam a vida, sob um olhar muito distinto dos grandes padrões religiosos da Europa ocidental. Aqui tudo é "água", e a nossa vida é apenas uma passagem no grande rio.


Se na história se evocam temas profundos adocicados pela magia de diferentes visões do mundo, na estética temos magia cinematográfica. Desde o ritmo calmo e sereno mas sem delongas à fotografia absolutamente magistral criada por Mikhail Krichman, tudo contribui para a criação de uma aura de transcendência da vida. Krichman recebeu a Osella de ouro em Veneza para esta fotografia, mas nada que surpreenda depois de ter assinado as magistrais fotografias dos três filmes de Andrey Zvyagintsev.


Silent Souls mexe connosco e questiona-nos, não dá, nem pretende dar respostas, é melancólico sem ser propriamente dramático, é uma viagem através de lugares frios e distantes, com costumes distintos mas que falam ao nosso interior. É um poema audiovisual.