julho 29, 2012

a intolerância em stop-motion

Zero (2010) é uma curta em stop-motion criada por Cristopher Kezelos (Austrália) fazendo uso de bonecos de novelo de lã, a fazer lembrar 9 (2009) de Shane Acker. Mas Zero, diferentemente de 9 usa a numeração para efeitos de crítica social, em que a escala de números serve para estabelecer os patamares da sociedade.


Zero é o número mais baixo da hierarquia, àquele a quem tudo é vedado, mesmo o enamoramento e a constituição de família. A sua vida muda quando encontra um outro zero, do sexo oposto, e é aí que tudo se complica, mas também tudo se transforma. Com este cenário o filme toca em feridas sociais como o Racismo, a Intolerância, o Preconceito tudo regulado por um ambiente político de puro Totalitarismo.


O filme é apresentado do ponto de vista de Zero e nesse sentido a sua visão do mundo contrasta com o modelo da sociedade em que vive, permitindo que o filme nos arraste ao longo da sua vida num tom particularmente inocente. Esta construção desenvolve uma ligação entre nós e Zero, e é aí que o filme brilha, tocando-nos, incitando-nos a velar pelo seu futuro. O filme não trata nada de novo, mas este é um assunto que por mais vezes que seja tratado nunca será demais. Todos nós já sentimos ao longo da nossa vida em alguma situação, o poder da intolerância, da discriminação. A resposta do filme a estes problemas é uma questão, que aparece em subtítulo, How can nothing be something? e é com a resposta a esta questão que o filma termina, e de forma brilhante.


São 12 minutos, mas valem esse tempo. O filme obteve cerca de duas dezenas de nomeações e prémios em vários festivais de renome. Depois de verem o filme divirtam-se com o making of.


julho 28, 2012

"Ilha das Flores", tão cruel e tão actual

O texto de produção de Ilha das Flores (1989) escrito por Jorge Furtado diz-nos que pretende "mostrar o absurdo desta situação: seres humanos que, numa escala de prioridade, se encontram depois dos porcos. Mulheres e crianças que, num tempo determinado de cinco minutos, garantem na sobra do alimento dos porcos sua alimentação diária."


O filme trabalha esta ideia de um modo bastante particular em termos de linguagem cinematográfica, quebrando com todas as convenções, géneros e estilos. Jorge Furtado começa sob uma lógica documental, fazendo uso de um tom pedagógico, que assume um posicionamento científico ao mesmo tempo que explora lógicas do absurdo.


Apesar dos absurdos a narração mantém-se sempre num tom documental, intocável emocionalmente, o que contribui para o aumento da perplexidade dos espectadores. Não se explora o choque na forma fílmica porque ele é simplesmente oferecido pela evidência dos conteúdos. O choque da crueza do conteúdo misturado com a intelectualidade do discurso contribui para o desenho da banalização com que limpamos muitos destes problemas das nossas mentes.


O filme procura desenvolver a apresentação das ideias através do relato da circulação do tomate desde a horta até serem comidos pelas crianças da Ilha das Flores. Pelo meio são discutidas questões como o que é o homem, o que é o dinheiro, o que é o lucro, tudo discutido e apresentado com ilustrações gráficas que nos levam a discussões mais amplas como o mercado livre e a globalização.


Jorge Furtado trabalha o discurso como uma farsa, uma farsa vivida por nós. Algo que de tão absurdo parece impossível, mas é real, tão real como a nossa indiferença. Talvez por isso tenha ganho o Urso de Prata para melhor curta em Berlim em 1990, entre vários outros prémios. A não-farsa termina com um verso da poetisa brasileira Cecília Meireles sobre a Liberdade.
"Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda."

Ilha das Flores (1989) de Jorge Furtado

Ilha das Flores tem um enorme potencial para uso em ambiente escolar. Nesse sentido deixo aqui uma ficha de trabalho proposta para a exploração das questões sociais fazendo uso do filme. Para além disso o filme pode ser encontrado no YouTube dobrado em Francês e com legendas do YouTube em Inglês que pode dar jeito para quem quiser usar em aulas de línguas.

julho 27, 2012

futuro das tecnologias da comunicação

Sight (2012) aparece no seguimento do Project Glass (2012) lançado pela Google no início deste ano. A Google, e mais ainda Sight vão num sentido completamente diferente daquele que víamos ser explorado até aqui no cinema, Minority Report (2002), ou em projectos de visualização do futuro das tecnologias de interacção humano-computador, como A Day Made of Glass... (2011), nomeadamente no campo das interfaces e do design de interacção. E o melhor deste filme é que é apenas um filme de estudantes - Eran May-raz e Daniel Lazo -, vindo de uma das universidades mais interessantes da actualidade em termos de animação e VFX, a Academia de Bezalel, Israel.


Sight vai muito além do vídeo do Project Glass, em todas as frentes, aqui a tecnologia de interfaces torna-se de uma vez só totalmente invisível, velho sonho de todos os designers deste campo. Tudo está embebido directamente nos olhos das pessoas. E a interface está não apenas em rede, como consegue detectar toda a realidade envolvente, ambiente, objectos e pessoas. Em termos de sistema de interfaces é como se todo o mundo estivesse ligado a uma enorme base de dados, do tipo do Facebook, com todos os descritivos, e nós lhe pudessemos aceder apenas olhando para os objectos ou pensando sobre eles.


Depois no campo do design de interacção, surge então o grande modelo do momento, a gamification. Todas as actividades agora realizadas por cada indivíduo que faz uso do Sight são geradas em função de objectivos concretos, perfeitamente delineados e delimitados, com recompensas claras e identificáveis. Já não fazemos as coisas porque é o nosso dever, ou porque fica bem, ou porque desejamos, mas apenas e só para cumprir missões, conquistas pontos e medalhas, subir na respeitabilidade, ou qualquer outro parâmetro moral que desejemos.


O que temos com esta tecnologia, é o desenvolvimento de toda uma sociedade parametrizada, e etiquetada, disposta em patamares hierárquicos. Porque tudo é parametrizado, e atingível por todos os que cumpram com as regras, a sociedade à partida torna-se mais transparente. Todos sabem o que é necessário para mudar de patamar, o que é preciso fazer, não existem sobressaltos, porque tudo depende do mérito do empenho de cada um. Ou talvez não. Aliás é exactamente com isso que o filme termina, com uma possível fonte de perturbação ou corrupção de todo o sistema.


Para além da possibilidade de corrompimento dos sistemas, existem aqui várias outras questões que me deixaram a reflectir, sendo que a mais relevante parece-me ser a nossa incapacidade cognitiva para lidar com tanta informação em tempo-real. Embora até aqui o filme tente dar respostas ao fazer uso de rotinas de IA que ajudam a tomar decisões, como acontece quando o protagonista usa uma "dating appWingman. Ainda assim levantam-se muitos problemas aqui, aliás todo o filme é rico a desafiar-nos.


Quanto ao final apesar de negro, não é propriamente distópico, mas do meu lado é inevitavel olhar de frente para a distopia aqui gerada. O que podemos retirar de Sight é que as tecnologias que criamos se reproduzem e evoluem a um ritmo alucinante, e os nossos corpos, como meras máquinas orgânicas vão mantendo-se muito homogéneas ao longo do tempo. O que me leva ao óbvio, quanto mais a tecnologia evoluir, mais dependente seremos desta para nos movimentarmos no mundo. Quando nos dermos conta, não passaremos de baterias ligados a máquinas em estados de semi-coma, vivendo em mundos de cores e formas. Uma nova explicação para a Matrix?

julho 25, 2012

regras da Pixar

A Pixar é para além de todo um símbolo no mundo da computação gráfica no reino da animação, o único grande estúdio que ainda nunca enfrentou um flop. E estamos a falar de 11 longas-metragens em 17 anos, isto é algo que leva muitos de nós a questionar-se, sobre os métodos por detrás de tanto sucesso. Aliás o Jonah Lehrer tocou nisto no seu último livro, Imagine: How Creativity Works (2012).


Deste modo quando uma artista, Emma Coats, que trabalhou em filmes da Pixar resolve debitar no Twitter algumas ideias sobre os métodos de escrita para cinema de animação, muitos ouvem o que ela tem para dizer. Foram 22 as ideias lançadas, dessas escolhi as 10 que mais me parecem evidenciar o foco da arte de escrita de ficção para qualquer meio audiovisual.


Não são ideias revolucionárias, apenas julgo que vale a pena tentarmos perceber o que move o espírito criativo destas pessoas para daí procurar retirar algumas ideias, ou quanto mais não seja inspiração e motivação.

#1: You admire a character for trying more than for their successes.

#4: Once upon a time there was ___. Every day, ___. One day ___. Because of that, ___. Because of that, ___. Until finally ___.

#5: Simplify. Focus. Combine characters. Hop over detours. You’ll feel like you’re losing valuable stuff but it sets you free.

#6: What is your character good at, comfortable with? Throw the polar opposite at them. Challenge them. How do they deal?

#11: Putting it on paper lets you start fixing it. If it stays in your head, a perfect idea, you’ll never share it with anyone.

#13: Give your characters opinions. Passive/malleable might seem likable to you as you write, but it’s poison to the audience.

#14: Why must you tell THIS story? What’s the belief burning within you that your story feeds off of? That’s the heart of it.

#15: If you were your character, in this situation, how would you feel? Honesty lends credibility to unbelievable situations.

#17: No work is ever wasted. If it’s not working, let go and move on - it’ll come back around to be useful later.

#20: Exercise: take the building blocks of a movie you dislike. How d’you rearrange them into what you DO like?

Alguma destas regras foram entretanto traduzidas em conceitos visuais e ilustradas com Lego. Podem ser vistas no Slackstory.

storytelling, crowdsourcing e "North Atlantic"

Em 2010 Ridley Scott e o YouTube juntaram-se para criar o fantástico documentário Life in a Day (2010). O documentário construiu-se a partir do crowdsourcing de 4500 horas de vídeo, proveninentes de 192 países, num total de 80 000 clips, filmados por pessoas sobre as suas actividades no exacto mesmo dia, 24 Julho 2012.

North Atlantic (2011) de Bernardo Nascimento

Em 2012 Scott voltou a juntar-se ao YouTube agora para encontrar os melhores contadores de histórias (storytellers) audiovisuais, no Your Film FestivalOs projectos foram submetidos entre Fevereiro e Março deste ano, num total de 15 000 filmes provenientes de 160 países. A selecção foi depois um processo longo executado por Ridley Scott e Michael Fassbender, para chegar à primeira triagem de 50 filmes anunciado em Junho. Entretanto os 50 filmes estiveram em votação no YouTube até 13 de Julho. Os 10 melhores serão anunciados dia 1 de Agosto, e terão direito a ser apresentados no Festival de Veneza 2012 de 1 a 3 de Setembro. O vencedor dos 10 receberá 500 000 dólares para fazer uma longa-metragem.

Promocional do evento

Todo este processo de escolha e triagem e financiamento de projectos cinematográficos é extremamente interessante e novo. Começa por uma análise prévia por poucas pessoas experts na arte, passa por uma segunda filtragem realizada a nível mundial pelos espectadores, e termina novamente numa avaliação por experts num festival de cinema. Em termos da primeira triagem, os critérios em questão para avaliação foram: Storytelling; Creativity and Originality; Screenplay and Actor(s) Performances; Technical Execution: Camera/Sound/Lighting/Editing; Overall Impression.

Ridley Scott fala sobre o evento

Nos 50 filmes que estão neste momento a concurso, existe um trabalho nacional, North Atlantic, de Bernardo Nascimento. Este foi o primeiro trabalho de Bernardo Nascimento na direcção, mas tem trabalhado desde há quase dez anos no campo de assistente de realização, tendo trabalho com Manoel de Oliveira e mais recentemente em filmes de grande orçamento como Kick-Ass (2010).


Esta curta é uma verdadeira jóia no campo do storytelling audiovisual, para além de contar com excelentes performances e muito boa execução técnica. Mas a essência e o que torna interessante está na forma quase desprendida como nos faz seguir atentamente o desenrolar da narrativa. Apesar de sabermos da inevitabilidade do desfecho ainda contamos com um twist final, e quando aparece o ouvinte da conversa via rádio, a esperança acende-se de novo, mas não é a isso que o filme se agarra. O contar da história é o mais importante, e não o garantir do interesse e da suspensão do espectador. Por isso o filme é tão interessante, original e criativo.


Diria que o filme tem tudo para ganhar, não fossem dois pequenos problemas técnicos. O primeiro está no plano do avião sobre o céu estrelado, muito distante sem capacidade expressiva, o que provoca depois algum desconforto no re-atar da conversa entre eles. O segundo, mais grave, e que se passa com o tocar da viola. Demonstrou aqui algum ingenuidade ou incapacidade de resolução do problema do actor não saber tocar. Para resolver esse problema fechou o enquadramento, para evitar que víssemos o dedilhar gerando desconforto no espectador porque visualmente fica oculta a fonte do som. Mas para piorar a situação a sonoridade do dedilhar inicial é distinta da música que se inicia depois de ocultada a viola. E isto só seria aceitável se partíssemos para música não diegética, o que não é o caso. Aliás a entrada do terceiro elemento na narrativa dá-se exatamente através da ligação com a música. Até podia ter fechado o plano, mas tinha de ter mantido a mesma sonoridade obrigatoriamente.


Apesar disto acredito no filme do Bernardo Nascimento, acredito que este tem tudo para fazer uma grande longra-metragem caso consiga ganhar o prémio final. Deixo aqui o filme para verem.

North Atlantic (2011) de Bernardo Nascimento


Actualização: 1 Agosto 2012
A curta North Atlantic de Bernardo Nascimento acaba de ser confirmada como finalista do Your Film Festival e assim garante presença no Festival de Veneza 2012. Ficamos a torcer para que vença em Veneza.

julho 23, 2012

jogar com entidades biológicas sintéticas

Bruce é uma animação de apenas três minutos que é capaz de nos deixar mais reflexivos do que muitas longas-metragens sobre o mesmo tema. A animação foi criada em 2009 como trabalho de fim de curso de Tom Judd no Royal College of Art.


A premissa é bastante simples e trata a forma como "a exploração sobre o avanços na biologia sintética em código-aberto permite que um jovem faça crescer o seu próprio action-hero". Ao ver estes curtíssimos três minutos é impressionante a quantidade de ideias que nos passam pela cabeça. Tanto o facto de estarmos a olhar para os possíveis videojogos do futuro, como o tipo de relação que poderemos vir a criar com estas entidade sintéticas.


É inevitável pensar em filmes que exploraram já o tema, da substituição física, como por exemplo Avatar (2009) ou Surrogates (2009). Ou em jogos recentes como Skylanders (2011) que tem intentado pela via das interfaces tangíveis nomeadamente com as figurinhas dos action-heros. Mas também é inquestionável perceber que Judd consegue ser muito mais incisivo, questionando-nos a nós próprios sobre o tema, não nos lançado na mera acção pela intriga. Para tudo isto contribui muito do desprendimento e indiferença com que o protagonista executa todas as acções, que nos questiona sobre a sociedade actual e nos alerta para a sociedade futura.


Em termos estéticos é uma obra de uma enorme coerência no traço e cor e na ausência de música de condução emocional, o que lhe dá um garante adicional de seriedade no tema tratado. Interessante que Judd nos diga que todo o filme foi criado frame a frame no Photoshop CS4, com alguns movimentos mais complexos a serem gerados previamente no Maya e depois rotoscopados no Photoshop. Ainda no campo da criação, pelo que pude perceber, este trabalho foi apresentado como projecto de fim de curso conjuntamente com uma instalação, mas não consegui mais informação sobre a instalação.

Bruce (2009) de Tom Judd



[via Short of the Week]

julho 22, 2012

"Dear Esther", essência dos videojogos

Dear Esther (2012) representa a consagração da especificidade expressiva dos videojogos. É verdade que tem sido atacado por muitos dizendo que este não se trata de um videojogo, que em vez de fazerem um jogo deveriam ter feito uma curta-metragem, mas sobre isso só posso dizer que é totalmente errado. Dear Esther (DE) é uma experiência de entretenimento apenas possível graças à linguagem dos videojogos. 


Começando pelo básico do que nos é dado a ver em DE, se transformado em cinema não daria para mais do que um filme de cinco minutos, ora o que aqui temos é traduzido numa experiência com cerca de 90 minutos, o equivalente a uma longa-metragem. Deste modo é preciso perceber o que acontece nestes 90 minutos, quais são as especificidades desta experiência que leva a manter-nos totalmente imersos e engajados ao longo de 90 minutos.


O que temos em DE está além da mera passagem de mensagem, assim como está além da mera execução de tarefas e ultrapassagem de obstáculos. DE assenta fundamentalmente num processo de criação de uma experiência emocional estética. Sendo que aquilo que DE nos faz experienciar seria impossível com qualquer outro medium. Construímos uma relação com o espaço, na interacção com esse espaço por meio da navegação, mais do que com a história que nos é narrada.


Aliás, reflectindo à posteriori sinto a narração em DE como a letra de uma música. É relevante, mas serve mais de complemento do que de essência. A essência está na experiência sensorial que se constrói na base das notas musicais, na sua sucessão e ritmo. Em DE é igual, o que sentimos é construído na base da experiência da interacção com o espaço, na navegação através da sucessão de espaços, nas suas formas e padrões. 


É muito interessante ver as pessoas revoltarem-se contra DE dizendo que não se trata de um jogo, quando este usa um dos elementos fundamentais dos videojogos, o labirinto. Em termos formais de design existirão assim tantas diferenças entre DE e Pac-Man? É verdade que não existem inimigos, e a experiência de morte é aqui muito menos premente, mas o objectivo é o mesmo, passar pelos sítios predeterminados para poder continuar a avançar. Nesse mesmo sentido o design da navegação de DE não difere do design de Doom, Zelda ou Myst, onde o que se pretende é criar no jogador uma vontade de saber como será o mundo/nível seguinte.


Não é por acaso que no mundo dos videojogos a arquitectura tem enorme relevância, porque a experiência é grandemente fruto da navegação no espaço. Jenkins disse mesmo que em vez de contadores de histórias, os game designers deviam ser apelidados de “arquitectos de narrativa” porque os “game designers não contam simplesmente histórias; eles desenham mundos e esculpem espaços”[1]. O que nos move na interacção com estas obras não são tanto os eventos e as causas, mas a exploração espacial. Como nos dizia Murray [2],
“The new digital environments are characterized by their power to represent navigable space. Linear media such as books and films can portray space, either by verbal description or image, but only digital environments can present space that we can move through.”
O que está em questão é o tratamento dado a esse espaço, que pode ser meramente descritivo ou assumir um carácter dramático, como assume em DE. Deste modo o que acontece em DE não difere daquilo que acontece em Em Busca do Tempo Perdido de Proust ou mesmo em O Senhor dos Anéis de Tolkien, porque o aqui temos é uma descrição total e em detalhe do espaço da história. O espaço é a história, e DE apresenta um dos espaços mais detalhados até agora vistos. É difícil olhar em nosso redor em DE e não pensar na sua beleza, na sua subtileza e comparar isto com a “madalena" de Proust. A beleza está no detalhe, está no processo, está no caminho, está no que vem a seguir. A condição de eficiência de uma narrativa literária é conseguir manter o leitor interessado ao ponto de se manter num constante questionamento sobre o que vai acontecer a seguir. Nos videojogos a narrativa espacial assume o questionamento sobre o espaço que vamos encontrar a seguir, como será, o que teremos de fazer, por onde iremos passar, que forma terá, aonde nos levará.


Dito tudo isto, acredito em DE como o objecto que demonstra todo o amadurecimento da arte dos videojogos, no sentido em que deixou de ter complexos, em que se assumiu e se concebeu num objecto integralmente dedicado à sua força expressiva – a navegação no espaço. DE é o que Myst deveria ter sido, porque todos aqueles enigmas e puzzles contribuem muito pouco para a essência da expressividade, identidade e dramaticidade narrativa. A sua presença ali é mais uma imposição da linguagem tradicional de jogo, do que da nova linguagem dos videojogos.


A linguagem criada pelos videojogos está claramente enraizada na ideia de jogo, mas também na ideia de história, no entanto a sua essência resulta num novo todo, não numa mera soma de ambas.


[1] Henry Jenkins, “Game Design as Narrative Architecture” in Noah Wardrip-Fruin and Pat Harrigan (eds.) First Person: New Media as Story, Performance, Game MIT Press, 2004,  
[2] Janet Murray, “From Additive to Expressive Form", in Hamlet on the Holodek: The Future of Narrative in Cyberspace, MIT Press 1998, 

julho 21, 2012

a arte do cultivo de Bonsais em jogo

Bonsai Defense (2012) é um interessantíssimo jogo desenvolvido por Mate Cziner no âmbito do trabalho de fim de curso na Moholy Nagy University of Art and Design, Budapest, Hungria. Cziner confirmou-nos ter desenvolvido não apenas toda a componente gráfica do jogo, como também a programação em C# que confessa ter sido o que mais tempo lhe levou. Para o desenvolvimento do jogo contou com apoio apenas no playtesting e na música.


Bonsai Defense, como o próprio nome indica está baseado na ideia do cultivo de bonsais, baseando o seu gameplay no género tower defense. Inova no uso da perspectiva em primeira-pessoa, além funcionar num modo contínuo sem as comuns fases de definição de estratégias. Deste modo torna-se imprescíndivel realizar o tutorial inicial para compreender o gameplay.
In this game your task is to govern the life of a Tree. You can grow, prune, and shape your tree to your hearts content, all the while protecting it from an ever present threat of infectious pests, and eventually helping it to reproduce.

The Tree bears Fruits that you can use the interact with it. Each one serves an different purpose. They can entice growth or prune branches that have grown sick. They defend the Tree from pests with various methods. All of them needs Juice to function, of which you’ll need to provide a steady supply. Defense crumbles in short order when your Fruit soldiers aren’t well fed.
Temos um jogo de estudante plenamente estruturado que não fica em nada atrás de muitos jogos indie que conhecemos. Em termos gráficos é soberbo, digo mesmo impressionante pelo facto de se tratar de um ambiente tridimensional, a palete de cores cria todo o "sabor" do jogo. Em termos de programação não é menos interessante no sentido em que temos uma árvore que cresce de modo generativo ainda que com algum input nosso. O jogo foi criado em Unity.



Como nos diz Cziner o objectivo é manter o jogador continuamente ocupado. As pestes e ataques de parasitas obrigam-nos constantemente a reforçar as zonas de produção de energia, o crescimento de plantas, assim como à realização de cortes em estruturas que já foram totalmente infectadas. Quando nos damos conta a árvore está enorme e assume cada vez formas mais elaboradas. Nesse sentido torna-se cada vez mais complexo o posicionamento da câmara, que ainda assim terá dado bom trabalho.


O jogo está disponível gratuitamente para PC e Mac.

a essência está nos personagens

Descobri Andrey Zvyagintsev há dias através do seu último filme Elena (2011). Fiquei encantado com a obra, uma fotografia belíssima dava corpo a uma narrativa de enorme subtileza tudo orquestrado sob um manto sonoro de Philip Glass. Por isso quis saber mais sobre o autor, e cheguei até ao seu primeiro filmeVozvrashchenie (The Return) (2003).


Vi entretanto The Return e fiquei muito impressionado. É um filme mais cru que Elena, apresenta menos qualidade técnica, mas compensa fortemente em qualidade artística, nomeadamente no campo da fotografia. Porque nem sempre a luz é compensada de forma correcta, mas por outro lado a composição é magistral. A subtileza narrativa continua lá, nos mesmos moldes de Elena, o que evidencia um claro registo de autor. Embora todo o trabalho de Zvyagintsev seja fortemente dependente do colectivo, começa na essência do casting dos actores, passa pela fotografia, música, guião, destacando apenas as áreas vitais. 


Nos dois filmes de Zvyagintsev não consigo deixar de recordar a força da interpretação dos actores. E em The Return isto é absolutamente estarrecedor, com os desempenhos dos dois jovens, Vladimir Garin (Andrey) e Ivan Dobronravov (Ivan). Não é apenas uma questão de naturalismo, é muito mais do que isso, é um encarnar do personagem e uma capacidade para o levar aos seus extremos. Obviamente que tudo isto é fortemente trabalhado pela excelência da direcção de actores, assim como pela montagem que apenas destaca o melhor em cada um destes elementos, indo assim muito para além daquilo que uma encenação em palco consegue dar.


Aliás descobri depois de ver o filme, que Zvyagintsev terá dito ao seu produtor, que se este não encontrasse "actores de génio" para os papéis dos dois rapazes, não valeria a pena fazer o filme. E é bem verdade, The Return é um filme no qual o enredo vive da interpretação dos seus actores. Não seguimos as hipóteses narrativas, seguimos aqueles rapazes, porque procuramos perceber quem são, o que sentem, porque sentem, porque reagem e não reagem. A abertura do filme com Ivan no topo de uma estrutura incapaz de saltar ou descer, por medo da reprovação dos seus colegas, é um indício de que tudo se concentrará na essência do ser dos personagens, e não no plot.