Faz 100 anos a primeira obra de Joyce. Nesta, o conteúdo relata aquilo que o título aponta, um jovem à procura da sua identidade e afirmação pessoal, por outro lado e enquanto relato autobiográfico, torna-se parte integrante dessa mesma autobiografia. Ou seja, o livro dá conta da vontade de Joyce de se emancipar, libertar das rédeas societais para criar arte, o que consegue através desta primeira obra, que mais não é do que a primeira pedra dessa grande fuga às regras instituídas, que se iria acentuar com “Ulisses" (1922), e descolar totalmente com “Finnegans Wake” (1939).
Não sendo um livro fácil de ler, como grande parte das obras modernistas, que se distanciam do realismo e refugiam no não-linear, acaba por ser um livro muito interessante nomeadamente pela forma como usa o discurso indireto livre, não assumindo ainda de modo explícito uma lógica de fluxo de consciência, antes realizando uma aproximação a um discurso pensado.
O livro atravessa fundamentalmente três grandes restrições culturais sentidas pelo autor — o peso da educação católica, a pequenez da sua cidade natal (Dublin), e a obsessão com a rivalidade com Inglaterra — para assim dar conta do modo como alguém tem de lutar para se erguer acima dos condicionalismos ao pensar. Porque só se é artista quando se é capaz de criar pensamento próprio, quando se consegue a partir do meio envolvente traçar um caminho pessoal. É isso que este livro representa, mais do que ser uma autobiografia da juventude de Joyce, é ele próprio um legado dessa vontade experimental artística que abriu a possibilidade à criação de obras literárias profundamente inovadoras, como seriam os seus seguintes textos.
“Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”
Mas ser inovador a nível artístico não tem qualquer relação com a criação do belo, já que o fundamento é racional. Esse é talvez o maior problema de toda a obra de Joyce, e outros artistas, quando se deixam toldar pela sua obsessão artística, esquecendo que as obras se dirigem a um receptor. Aqui estou a falar já de toda a carreira de Joyce, já que este “Retrato do Artista Quando Jovem”, marcando apenas o início da abordagem estética do autor, apresenta ainda muito daquilo que podemos considerar de beleza na escrita. Contudo são vários os momentos em que o autor afunda o discurso e se afasta de nós, claro que nada que se aproxime do limiar atingido com “Finnegans Wake”.
Dito isto, é um livro para ser lido pelo seu valor literário, a abordagem artística de Joyce, e neste caso o modo como se desenvolveu, e menos pelo simples prazer de leitura. É um texto que interessará a quem já atingiu a fase de perda de encantamento pelos clássicos e precisa de algo que vá para além das simples descrições e interpretações do real, algo capaz de criar as suas próprias realidades. Convém mesmo ter lido grande parte desses clássicos para deter bagagem capaz de co-construir a realidade que os livros de Joyce exigem, de outro modo poderá ficar a ideia de que o livro tem pouco para dizer.
“Player Two” (2016) é uma animação criada por Zachary Antell como trabalho de fim de curso na Universidade de Syracuse, EUA, que se destaca pela abordagem nostálgico-emocional e ainda pelo bom trabalho de rotoscopia. A demonstrar que com apenas 21 anos é possível criar obras conceptuais e profundamente empáticas.
A ideia de partida é bem definida pelo título, o jogador dois, que serve de metáfora para irmão mais novo, que tudo aprendeu imitando o irmão mais velho, o jogador um. O filme trabalha a relação dos irmãos através dos videojogos, demonstrando como as relações se constroem, intensificam, até que a natural evolução familiar as conduz à quase extinção. Quase, porque restam sempre as experiências vividas, os momentos marcantes nunca alguma vez olvidáveis, as quais as emoções nostálgicas se encarregam de nos relembrar amiúde. Não sendo uma obra que busque o aprofundamento do significado social, é capaz de tocar todos os que passaram por este tipo de experiência.
“I chose the subject matter of video games after a small debate with my parents where I realized they never truly understood how video games affected my life; my introduction to music, to animation, and eventually filmmaking. I wanted to convey the sense of imagination and scope old single player games like Ocarina of Time surrounded children.” Zachary Antell in Short of the Week
No campo da animação, a rotoscopia desenvolvida com base em vídeo e depois trabalhada com texturas de papel e desenho semi-infantilizado contribui intensamente para a produção do sentimento de nostalgia, de memórias difusas, experiências do passado de que nos vamos relembrando indefinididamente, mas com sentimento. Não estamos perante um trabalho de demonstração técnica, mas antes de técnica focada na mensagem, da animação ao serviço da expressão. No caso de se interessarem pela produção de animação vale a pena ver o pequeno making of.
Depois de um livro que tinha gostado bastante, “Talent is Overrated” (2008), Colvin acaba desiludindo fortemente com esta espécie de sucessor, “Humans Are Underrated”. Apesar de seguir o mesmo estilo gladwelliano que tinha seguido antes, arrisca demasiado e espalha-se completamente, ou então, o facto de eu estar muito mais por dentro desta matéria, permitiu-me perceber o quanto esta fórmula de escrita pseudo-científica pode fazer mais mal do que bem à divulgação científica.
Todo o livro assenta num conjunto de generalizações destiladas a partir de meia-dúzia de estudos, escolhidos apenas por suportarem as ideias do que se pretende veicular, uma fórmula iniciada por Malcolm Gladwell (daí o “gladwelliano”). São imensos os estudos — de sociologia, psicologia, psicologia social, economia, etc. — usados de forma isolada, sem contexto nem qualquer outro suporte, para se especular sobre o futuro, cometendo assim não apenas o erro da generalização dos pequenos estudos mas ainda exponenciando todo esse erro por meio da extrapolação realizada no tempo.
Colvin, seguindo a linha que tinha desenhado no seu livro anterior, tenta encontrar nos humanos, não aquilo que os separa das máquinas, mas aquilo que os pode vir a separar. Pelo meio decide assumir um recorte sem explicar porquê, que as máquinas nunca poderão vir a ser semelhantes a nós, e que por isso não precisa de se preocupar com essa questão. Verdade que facilita o seu próprio trabalho, especular apenas sobre máquinas que não se podem confundir com os humanos, contudo fica-se com uma interrogação entrecortada, e sem nexo.
A proposta essencial de Colvin assenta num conjunto de conceitos chave amplamente discutidos por toda a comunidade científica, e mesmo empresarial, ao longo de toda a última década, ficando nós a pensar qual o objetivo do livro, bastaria um artigo de resenha. Porque para Colvin tudo assenta na Empatia, é ela, e só ela que nos poderá ajudar. Questiono-me o que dizer dos robôs que têm vindo a ser desenvolvidos com estes objetivos e com algum sucesso, na verdade o estabelecimento de laços de empatia com máquinas não é assim tão complexo, e é algo que se vem discutindo desde os anos 1990 com o livro “Media Equation” de Clifford Nass e Byron Reeves.
Depois disso vem a Criatividade e o Storytelling, confessando eu aqui que já não posso mais com toda esta loucura em redor destes dois conceitos. Sim são essenciais, mas se todos já sabemos disso dispensava-se bem o enchimento de páginas e páginas. A última parte volta à empatia, mas agora para discutir a elevação da mulher a sexo forte, pela razão do seu superior poder de empatia, que diga-se não se distingue entre mulher e homem, mas entre testosterona e oxitocina, e Colvin acaba por o admitir. Mas não deixa de ser ingénuo da parte do autor, saltar para a conclusão de que no futuro não precisaremos de mais engenheiros, e as nossas mais valias irão resumir-se aos relacionamentos, quando por muito que as máquinas avancem, elas precisarão sempre de nós para nos compreenderem melhor, e darem-nos aquilo de que precisamos.
E com isto chego ao final do que vale a pena neste livro, das conclusões a que cheguei logo nos primeiros capítulos mas que Colvin apenas toca levemente quase no final, e tem que ver com a nossa relação com a Arte e a Máquina. Refletindo sobre aquilo que nos move enquanto apreciadores de arte, não são as obras, mas os criadores das mesmas. Não quero saber de um desenho num guardanapo até que me digam que foi Picasso que o desenhou, ou que foi um familiar já desaparecido que o concluiu antes de morrer. O que nos interessa na arte é aquilo que o Outro tem para dizer através da mesma, tudo o que enquadra um artefacto assenta na externalização de ideias do seu criador.
Será muito difícil algum dia convencer as pessoas a interessarem-se pelas ideias de uma máquina, sendo ela tão diferente, não tendo as mesmas necessidades que nós (comida, sexo, medo,...) ou não subsistindo o mesmo tempo de vida que nós (a imortalidade). Como diz Colvin, pode até ser interessante a música criada por máquinas mas para usar como música ambiente no shopping ou no elevador, já que nunca iria deslocar-me à Casa da Música para ouvir um concerto composto e interpretado por uma máquina, menos ainda ver um filme, ou ler um livro criados por esta. Em certa medida isto é já o que acontece entre humanos com culturas demasiado distantes, em que a ausência de conhecimento dos códigos culturais nos impede de compreender o que está em questão. No caso da máquina, a alternativa será fazê-la falar como humano, e isso ainda fará pior, pois no momento em que o público perceba que não era um humano o autor do livro ou filme, vai sentir-se totalmente defraudado.
Dito isto, fica evidente a região de exclusão entre máquinas e homens, a qual Colvin peca por trabalhar pouco, apesar de dedicar capítulos inteiros à criatividade e ao storytelling, e que tem que ver com a comunicação humana, aquilo que transmitimos de uns para os outros, e acaba por muitas vezes redundar na produção de obras artísticas, de menor ou maior qualidade, mas por sua vez contendo expressões pessoais de cada um de nós que interessam aos demais, porque nos ajudam a compreender o mundo à nossa volta já que provêm de pessoas com os mesmos problemas que nós.
Filme sobre o poder da interpretação, que dá conta da imposição da expressividade pessoal sobre aquilo que se diz, contaminando tudo o que se diz com o sentir pessoal de cada um.
É um livro que pode fazer-nos pensar um pouco sobre o assunto, mas pouco. Para dizer o que diz, um artigo na revista Fortune, que é onde costuma escrever, tinha chegado perfeitamente, e na verdade esse artigo já existe, leiam-no em vez do livro ficarão a saber o mesmo.
A Academia Bezalel surge mais uma vez em destaque no mundo da imagem em movimento, desta vez por meio de um trabalho de um seu ex-aluno, Vania Heymann, que juntamente com Gal Muggia, criaram o teledisco sensação desta década, “Up & Up“ para os Coldplay. Ambos israelitas, Heymann agora baseado em NY, enquanto Muggia continua em Tel Aviv, ambos têm criado trabalhos de relevo internacional em vários domínios do audiovisual, dos telediscos aos spots publicitários.
Heymann começou a dar nas vistas assim que produziu o seu primeiro trabalho na Bezalel, um pequeno filme sobre os problemas da religião, neste caso o ortodoxismo, trabalhando tudo por meio da composição e inserção de um simples vaso de água IKEA (ver vídeo abaixo). Em 2013 foi também o responsável pelo primeiro teledisco autorizado do clássico de Bob Dylan "Like a Rolling Stone" (1965), com a particularidade de ser interativo (experienciar na revista “Rolling Stone”).
Já Muggia apesar de ter um portfólio de menor impacto, acaba por nos seus trabalhos anteriores dar conta do quanto muitas das ideias que vemos exploradas neste trabalho dos Coldplay lhe pertencerem, veja-se por exemplo 24 Promo ou o fantástico "Was It You?" (ver vídeo abaixo).
Heymann e Muggia descreveram este novo trabalho conjunto, para os Colplay, como “uma pungente montagem surrealista que faz alusão a questões contemporâneas”, definindo assim na perfeição o trabalho. Na generalidade dos telediscos o que está em questão é muito mais a sensorialidade que se consegue gerar, e menos a criação de sentido, de narrativização visual da música, sendo isso neste caso totalmente assumido pelos criadores do trabalho, ganhando assim total liberdade para nos provocar sem limites, nem fronteiras.
O início do videoclipe dá o mote com montagens de contrastes conceptuais muito evidentes que por sua vez se vão subtilizando e obrigando a atenção do espetador, criando a cada nova cena jogos de puzzles visuais, nos quais sabendo de antemão que o contraste existe nos lançam na sua procura, gerando o desejo pela descoberta do detalhe e dos potenciais sentidos escondidos, alimentando o nosso prazer e fruição.
"Up&Up - Coldplay" (2016) de Vania Heymann e Gal Muggia
Em termos técnicos o trabalho é absolutamente soberbo, contribuindo sem dúvida para todo o espanto e sedução que tem criado na rede. Nota-se a cada nova cena que os criadores se divertiram brincando com os bancos de imagens em movimento buscando conexões e contrastes entre o velho e o novo, desenhando jogos entre atividades e ações, plasmando tudo como se de real se tratasse, criando desta forma um novo nível de real, o surreal.
No fim desta leitura atravessam-me sentires muito diversos, nomeadamente porque tendo passado os últimos 30 anos a evitar regressar a este universo que tinha conhecido por via do filme homónimo de John Halas no início dos anos 1980, confronto as ideias desses tempos de inocência e ingenuidade com a análise das metáforas e camadas de real que hoje consigo de modo diferente descortinar. Se no passado o título traduzido para português — "O Triunfo dos Porcos" — fez muito sentido, hoje percebo a sua total inadequação, mais ainda tendo em conta a real intenção de Orwell expressa no prefácio original, e por isso louvo a audácia do tradutor, Paulo Faria, em descontinuar essa intitulação.
Ver um filme, ainda que de animação, decalcado da metáfora base representada nesta obra de Orwell, com 8/9 anos, pode parecer violento, e foi-o, tanto que a impressão deixada me afastou para sempre do filme, assim como do livro. Nessa altura, recordo-o agora e bem ainda, o que vi e senti teve pouco que ver com política, no seu sentido estrito de luta de classes sociais, mas antes sobre a clivagem entre humanos e animais. Não só o facto de ser ainda muito jovem, mas também de viver numa aldeia rodeado de animais — cães, gatos, porcos, vacas, galinhas, etc. — foram determinantes para esta enfabulação da minha parte, para o que viria ainda a contribuir a visualização de obras como “O Planeta dos Macacos” que consolidariam muitos dos temores que me assolariam durante alguns anos dessa fase da minha vida.
Questiono-me contudo, porque apesar de ter sentido temores similares no visionamento de “O Planeta dos Macacos”, não me afastei, e fui revendo, assim como vi e revi toda a saga, várias vezes neste período de tempo. Acredito que isso se deve ao tom, ou género, que envolveu diferentemente ambos os discursos. “O Planeta dos Macacos” claramente versado no género de ficção-científica, com base em princípios clássicos da jornada do herói, prometendo o reencontro de nós mesmos. Já “A Quinta dos Animais” apesar de se apresentar em animação, assim como obviamente ficcional, era dotado de uma caracterização profundamente realista, capaz de oferecer à metáfora dos animais uma imensa credibilidade, assim como baseado num género muito mais dramático, o da tragédia. Ou seja, apesar das questões de clivagem entre animais e homem serem mais claramente abordadas em “O Planeta dos Macacos”, o tratamento dado ao tema era não só pouco trabalhado socialmente, como era ainda adocicado com bastante otimismo na sua resolução.
Depois deste regresso ao passado, resta-me falar sobre a leitura realizada agora, naturalmente aquela que se aproxima das intenções do escritor por força da maturidade. Orwell tendo combatido na Guerra Civil Espanhola dos anos 1930, e vendo como o socialismo emanado da URSS era ali perpetrado, resolveu no seu regresso a Inglaterra escrever sobre a sua experiência, tendo assim resultado em “A Quinta dos Animais”. Ou seja, temos aqui um texto profundamente político, para o qual a metáfora dos animais serve mais de veículo à mensagem, do que operador de ideias.
Apesar desse objetivo político — das tensões entre o comunismo e o capitalismo — o texto acaba indo mais longe, nomeadamente por via da circularidade narrativa que consegue transportar as ideias para um nível acima da constatação e discussão dos comportamentos humanos e suas leis de regulação, colocando o leitor num lugar privilegiado para compreender que aquilo que está em causa não é meramente uma questão de escolha entre regimes.
No fundo Orwell acaba por nos conduzir à constatação de que a regulação social de grupos humanos tende para a manutenção do autoritarismo e que a única forma de nos libertarmos desse é por via da construção de uma literacia democrática que alavanque a racionalidade dos cidadãos na desmontagem do real à sua volta. No fundo, estamos a falar de Comunicação Humana, da capacidade que todos precisam de deter para operar discursos, para desmontar a manipulação e a propaganda.
Aliás isto torna-se ainda mais evidente na história da publicação do próprio livro em 1945 em Inglaterra, quando foi recusado por várias editores, com a elite inglesa a defender que o livro apesar de bem escrito, não deveria ser publicado por poder ferir suscetibilidades junto do aliado URSS. Assim, apesar da Inglaterra viver num aparente regime democrático, sem leis de imposição de censura, essa era mantida no terreno pelos próprios cidadãos, zelosos de supostos interesses. O que está aqui em causa não é o mero ato de censura, mas antes o seu mais pernicioso efeito, que como vemos nesta fábula, facilmente pode escalar em direcção ao suporte do autoritarismo.
"de momento, fora necessário proceder a um reajustamento das rações (Tagarela usava sempre a palavra ‘reajustamento’, nunca ‘redução’), mas, por comparação com o tempo do Reis, o progresso era enorme." (p.108)
Um pequeno livro tão atual como quando saiu, continuando obrigatório.
Li “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884) de Mark Twain numa tradução de Rosaura Eichenberg para a brasileira LPM, e ainda que, e ao contrário das traduções portuguesas, exista um enorme esforço por adaptar a particularidade formal da escrita inglesa de Twain ao português, só se consegue em parte. Huck e Jim funcionam imensamente bem, ao serem transportados para o linguajar do Brasil, para o caso de Jim vem mesmo do sertão, ficando contudo todos os restantes personagens a funcionar como adereços da língua standard. De qualquer modo, o trabalho original do autor merece todo o nosso interesse, dada a sua enorme capacidade para nos envolver, emocionar e fazer sonhar.
Huck e Tom Sawyer fazem parte do meu imaginário de criança como símbolos de liberdade, criatividade, audácia e muito otimismo. O contato foi realizado por via da série de animação “As Aventuras de Tom Sawyer” de 49 episódios da Nippon Animation de 1980, na qual se retrata apenas o primeiro livro de Twain. Desta forma “As Aventuras de Huckleberry Finn” começam onde terminam as “As Aventuras de Tom Sawyer” e leva-nos a novas aventuras, desta vez mais focadas em Huck, ainda que Tom Sawyer volte a aparecer para fazer das suas.
Posso agora dizer que a série refletia plenamente o sentimento de Twain, já que ler "As Aventuras de Huckleberry Finn" funcionou como verdadeira continuação da série, em nenhum momento me senti defraudado quanto ao universo ou personagens, cumprindo plenamente aquilo que ainda restava na minha imaginação, fazendo-me rir e despertando a alegria inocente. Por outro lado, vi de forma mais madura os problemas das relações entre raças no sul dos EUA, e consegui sentir a personagem de Huck como uma das mais bem elaboradas da literatura americana, por toda a enorme profundidade que nos consegue dar através de leves traços comportamentais e questionamentos ingénuos de aparente superficialidade.
“Jim falava alto o tempo todo, enquanto eu tava falando comigo mesmo. Ele tava dizendo que a primeira coisa que ia fazer, quando chegasse num estado livre, era poupar dinheiro sem gastar um centavo e, quando tivesse o bastante, ia comprar a mulher dele, que era propriedade de uma fazenda perto de onde a srta. Watson vivia. Aí os dois iam trabalhar pra comprar os dois filhos, e se o dono não quisesse vender eles iam falar com um abolicionista pra ir roubar as crianças. Quase gelei quando ouvi essa declaração. Na sua vida de antes, ele nunca ia ter a ousadia de falar desse jeito. É pra ver a diferença que aconteceu nele no minuto que achou que tava quase livre. Tava de acordo com o velho ditado: “Dá a mão prum negro e ele vai pegar o braço”. Pensei, é isso o que dá eu não pensar. Aqui tava aquele negro que eu tinha de certa maneira ajudado a fugir, achegando-se com toda desenvoltura e dizendo que ia roubar os filhos dele – filhos que pertenciam a um homem que eu nem sequer conhecia, um homem que não tinha me feito mal nenhum.”
A primeira edição americana, lançada no ano seguinte à edição inglesa, apresentava ilustrações de E. W. Kemble, com todos os desenhos revistos e aprovados por Mark Twain.
Aliás, em certa medida o reconhecimento da obra de Twain advirá não só da construção formal, da obsessão pelo linguajar das comunidades americanas do Sul, mas também desta sua capacidade para construir na frente dos nossos olhos, personagens e eventos realistas, ao mesmo tempo que líricos e belos. Ler “As Aventuras de Huckleberry Finn” foi, em certa medida, um retornar à minha infância.
Amnon Buchbinder é um guionista, documentarista e professor da Universidade de York (Canada), que a partir da sua forte paixão pelo conceito de história — suas diferentes formas e particularmente relevância humana — fundou e dirige o projeto The Biology of Story, lançado em abril passado e que aqui introduzo hoje.
Neste projeto, que não é documentário nem wiki, mas antes um documentário interativo, ou documentário web, Buchbinder procura dar conta das definições de história, assim como da sua abrangência nas nossas concepções do real. Para tal entrevistou dezenas de especialistas pelo mundo fora — Tracy Fullerton, Regina Machado, Keith Oatley, Philip Pullman, Robert Rotenberg, Ana Serrano, etc. — que nos dão conta das suas experiências de investigação, experimentação e trabalho diário com histórias. O documentário não surge como a experiência tradicional de 50 minutos, mas antes como uma página de nós que nos dão acesso a cada uma das entrevistas, obrigando a uma navegação conceptual à volta do termo.
Buchbinder explica que a complexidade, pervasividade e enraizamento do conceito é de tal ordem que uma mera tentativa de criar uma definição ou explanação linear do conceito seria insuficiente, daí que compare a ideia de História ao DNA, e assuma a informação depositada na página web como uma rede de células que se ligam para formar um todo. Mais, o documentário/portal lançado em abril 2016, apresenta apenas uma parte daquilo que se pretende que venha a ser, já que o objetivo é manter a alimentação do documentário em aberto, acrescentando novas células — entrevistas, pessoas, textos, etc. — criando em si mesmo a ideia de um organismo vivo que se amplia, dia-após-dia, com a entrada de nova informação.
Biology of Story Trailer
Para compreenderem melhor o conceito e poderem iniciar a viagem pelo documentário, aconselho vivamente que em primeiro lugar vejam os cinco pequenos vídeos do próprio Buchbinder, na secção The Big Idea. Vistos na ordem apresentada funcionam como uma introdução à motivação, estrutura e objetivos do projeto. A partir daí navega-se por entre diferentes ideias sobre o potencial das histórias, sobre o seu alcance, a sua produção de imaginário, a sua última responsabilidade que assenta na manutenção da nossa civilização.
Esta ideia de história enraizada na nossa biologia não é nova e está intimamente ligada ao mais recente movimento em redor dos estudos de narrativa, nomeadamente oriundos das neurociências, que dão conta da necessidade que o ser humano possui da estrutura, padrão, das histórias para dar sentido ao mundo, para compreender o real.
Projeto: The Biology of Story Nota: o sistema de nós do projeto não funciona muito bem em Chrome, aconselho o Safari.
Um retrato poderoso do que a sociedade etiqueta como normalidade, provocante e por vezes muito intenso, servido por um fluxo de informação que converge múltiplas dimensões e contextos que nos arrebatam e envolvem no mundo de Roth que é também o nosso.
A base para esta viagem, cheia de fricções, surge no seio de uma família americana dotada de uma moral consagrada pelos media, ele — desportista de liceu e muito popular — ela — miss estado federal e muito atrativa —, a viverem num enorme lote de terreno em Newark, tudo propício a uma vida em sociedade perfeita, cumprindo todos os seus rituais, conformando com o grupo, acreditando no bem como recompensa das boas ações. A filha do casal que nasce imbuída destes valores, ou não, é o seu “bem” mais valioso, até ao momento em que faz 16 anos e decide revoltar-se.
A entrada em “Pastoral Americana” (1997) pode ser mais ou menos intensa consoante a fase da vida em que nos encontremos. Roth escreveu este livro com 60 anos, mas acredito que falará de muito perto ao grande público acima dos 40, aquele que já se conformou, aquele que perdeu a ilusão de que podia mudar o mundo, que não apenas compreendeu a abstração da normalidade em que se encontra mas passou a aceitá-la. Por isso é provocante, porque partindo desta aceitação obriga-nos a reequacionar posições que já tínhamos dado por concluídas. Longe vão os tempos existenciais em que as abstrações societais eram motivo para a nossa fúria e angústia, como aqui podemos ver retratada na filha adolescente, Merry, compreendendo nós a infantilidade de toda essa revolta. Aprendemos a aproveitar a vida a partir do que ela nos permite, e não em função daquilo que cremos ser o ideal ou da utopia egocêntrica.
A partir daqui Roth trabalha um tema quente no final dos anos 1990, mas não novo, e por sinal ainda mais quente nos dias de hoje, os filhos que se revoltam e aderem a movimentos terroristas. O livro é de 1997, e o Atentado de Oklahoma City, responsável pelo maior número de mortes cometido nos EUA por um americano, tinha acabado de ocorrer em 1995. Roth disserta não sobre este, mas antes sobre a avalanche de atentados perpetrados à bomba nos anos 1960 nos EUA a propósito do conflito no Vietname. Neste sentido o livro ganha um interesse histórico, porque apresenta todo um enquadramento dos EUA que raramente vimos no cinema até aos dias de hoje, tanto que conhecendo muito dos EUA a partir do cinema tive de ir pesquisar a história do país, por ter dificuldade em acreditar nas descrições de Roth.
Com esta base a “Pastoral Americana” ganha toda uma força, raramente vista noutro trabalho sobre o tema. O fundo é o terrorismo, mas não a ação armada ou política, o cerne aqui é o social e o humano, a tentativa de compreender como a família se edifica, e buscando a normalidade acaba por se desviar da mesma sem intenção, mas ao mesmo tempo incapaz de regressar ao veio condutor dessa suposta normalidade. Roth não explica, não interpreta, apesar de criticar quase tudo e todos — política, religião, valores do sonho americano, etc. — mas sem nunca se servir dessa crítica para justificar as ações. Não há idealismo, mas também não se professa niilismo, somos levados pela mão ao ponto de não retorno e aí largados para reencontrar o nosso caminho. Não é um livro histórico, nem académico, menos ainda de auto-ajuda, é um livro que nos questiona e corrói as ideias de sociedade que detemos, que nos faz rever as normas que aceitámos, e nos obriga a questionar o nosso lugar.
Se tudo isto é bom, dependendo dos interesses de cada um, o melhor é ser servido numa forma escrita de altíssimo nível, dotada de um virtuosismo capaz de construir parágrafos servidos por múltiplas ideias que de tão bem escritas acabam por funcionar como tobogãs de informação que se infiltram na nossa cabeça e descem ao fundo do nosso não-consciente para repescar inferências, terminando em explosões de sentidos. Existem vários momentos destes ao longo do livro, uns mais intensos, outros menos, mas à medida que avançamos vão trabalhando mais e mais as histórias internas do próprio romance, contadas nas páginas anteriores, ou capítulos anteriores, intensificando e solidificando os detalhes de realidade e assim contribuindo para a construção de toda uma dimensão ficcional profundamente realista e próxima de nós.
"O facto das pessoas serem criaturas multifacetadas não constituiu um grande choque para o Sueco mesmo que fosse um bocado chocante percebê-lo mais uma vez quando alguém o desiludia. O espantoso era o modo como as pessoas pareciam esgotar o que elas eram, esgotar o que quer que fosse que as fazia ser como eram e, esvaziadas delas próprias, se transformavam no tipo de pessoas que outrora haviam desprezado. Era como se, enquanto as suas vidas eram ricas e cheias, se enjoassem secretamente consigo próprios e ansiassem por se libertarem de tudo o que era saudável, bom e com sentido das proporções para, finalmente, chegarem ao outro ser, o verdadeiro ser que era um imbecil iludido. Era como se o facto de nos sentirmos bem com a vida fosse um acaso que podia, por vezes, acontecer aos jovens afortunados mas que, por seu turno, era algo pelo qual o ser humano não sentia qualquer afinidade. Que estranho! E que estranho não lhe teria parecido o pensar que ele, que sempre se sentira abençoado por se contar entre os inúmeros normais protegidos, era, de facto, a anormalidade, um estranho em relação à vida real, exactamente por se sentir tão fortemente enraizado."
Este livro é considerado o primeiro volume de três, seguido de “Casei com um Comunista” (1998) e “A Mancha Humana” (2000), dos quais me falta agora apenas ler o segundo volume. Entre este primeiro e o terceiro sinto proximidades, nomeadamente na tragédia e a busca de relação com a paz através da natureza. “A Mancha…” consegue ser mais forte, mais trágica, mas “A Pastoral…” é mais abrangente e delineadora do mundo de Roth. Contudo, e em termos comparativos, pensei mais em “Liberdade” (2010) de Jonathan Franzen, o estilo literário próximo ajuda, o facto de aprofundar a classe média americana também, mas é o modo como nos é dado a ver a partir do interior dos personagens e como somos levados a requestionar o nosso lugar no seio da sociedade, as normas que já deixámos para trás porque as tínhamos aceitado como naturais, que torna estes dois livros parte um todo ficcional imensamente intenso e significante.
Curiosidade cinematográfica: "A Mancha Humana" foi o primeiro livro a ser adaptado — como "The Human Stain" (2003) — seguido de “Casei com um Comunista” , — como "Elegy" (2008) — enquanto este primeiro volume só chegará as cinemas em outubro pelas mãos de Ewan McGregor.
Uma epopeia familiar, vista sob um olhar global e multicultural, e ao mesmo tempo tão conhecedora do âmago do ser português, capaz de enaltecer os seus devaneios mais nostálgicos e melancólicos. Merece todos os laudos, e merece ser a luz do nosso cânone. Um texto apenas possível graças ao acesso ao mundo tido por Eça enquanto diplomata, e ainda ao facto de ser escrito já numa fase de grande experiência de vida alcançada, pouco antes de morrer.
Não sendo um estudioso de literatura, mas tendo em conta o mais recente empreendimento de ler os clássicos — Tolstói, Mann, Proust ou Dostoiévski — "Os Maias" apresenta várias particularidades que o tornam relevante para qualquer estudioso e que fazem com que mereça ser referenciado em muitas mais listas de livros obrigatórios (podendo desde já encontrar-se no cânone de Bloom, ou no English PEN).
Desde os aspectos de cruzamento cultural que vão sendo apresentados capazes de ligar dados sociais e históricos de Portugal, Inglaterra, França, Brasil, Espanha, Ásia, EUA, etc; ao puzzle geográfico nacional que nos leva a calcorrear boa parte do nosso território; passando pela ligação estabelecida entre diferentes géneros, nomeadamente opostos como a comédia e a tragédia; ou ainda toda a discussão sobre as teorias dos movimentos literários, do surgimento do realismo e decadência do romantismo, citando Émile Zola, Victor Hugo, William Shakespeare, Lord Byron, entre outros; assim como à crítica forte pelo retrato da burguesia, política e imprensa nacionais. É uma obra plena de saber que enriquece quem se predisponha a dedicar-lhe um pouco do seu tempo. Como se não bastasse é um texto que envelheceu muito bem, que apesar dos seus 118 anos continua imensamente atual e capaz de dar imenso gozo a quem o lê.
Quanto à leitura obrigatória nas escolas, é um livro difícil pela sua extensão que se arrasta em descrições e preparação para o clímax ("grande bolada") final, aliás é o próprio Eça a reconhecer isto mesmo. Mas também e porque apesar de Eça procurar distanciar-se do romantismo, e conseguindo fazê-lo muito bem nos temas, a escrita ainda está pejada desses traços que dificultam a compreensão, porque por via da romanticização da arte literária as ideias ficam por vezes como que soterradas por debaixo da forma. Não raras vezes temos de reler parágrafos, frases, para ligar os sentidos, já que estes se perdem no modo de escrita por via de embelezamentos gramaticais que descuram o que se diz apenas em busca de um efeito estético.
Por outro lado, acredito que a grande maioria dos alunos não passe do meio da obra, pelo que disse acima, quando na verdade a ação do enredo só começa verdadeiramente a agitar-se a partir da terceira parte. Falando em meu nome pessoal, não me lembro de o ter terminado nessa altura, por isso a impressão que tinha, não apenas pela idade que se tem quando se lê, mas por não ter assistido ao desenlace da epopeia, era bem diferente.
Mas a idade é um problema claro na assimilação de "Os Maias", uma obra carregada de crítica política e social, exige do leitor um conhecimento histórico detalhado do contexto de Eça, mas mais do que ter informação sobre esse contexto, exige a compreensão desse universo, algo que que com 16/17 anos não se tem, nem se pode construir em meia-dúzia de aulas. Assim se o texto nem sempre ajuda, escondendo os seus reais significados sob capas estéticas, o facto de termos leitores que ainda não detêm o arcaboiço necessário à interpretação do que vai sendo dito, acaba por ditar um afastamento inevitável da obra.
Lisboa, século XIX
O problema das leituras dos cânones nacionais nas escolas que não se passa apenas cá, mas em todo o mundo que vê a escola como normativa das identidades nacionais, é a obrigatoriedade. Talvez fosse tempo de pensar de modo diferente, e porque não faltam trabalhos nacionais de valor, oferecer alternativas de leitura. Obrigar a ler uma obra intemporal e de relevo, dissecá-la ao longo de meses, é algo que vemos como necessário à construção das identidades nacionais, mas que no fundo acaba mais por criar estigmas do que verdadeiro conhecimento, e menos ainda relação. O atual Plano Nacional de Leitura permite essa diversidade, o que é muito bom, basta aos professores e escolas traçarem o seu caminho.
Não estou aqui a defender a anulação do Eça, antes pelo contrário, uma maior contextualização deste em face da restante produção nacional da época poderá conduzir os alunos a quererem saber mais, a tentar buscar por si próprios a razão da sua relevância. O uso de documentários e cinema no suporte à leitura pode, por exemplo, ser uma forma de facilitar a construção de bagagem contextual, mas existem muitos outros modos de o fazer.