Não sendo um livro fácil de ler, como grande parte das obras modernistas, que se distanciam do realismo e refugiam no não-linear, acaba por ser um livro muito interessante nomeadamente pela forma como usa o discurso indireto livre, não assumindo ainda de modo explícito uma lógica de fluxo de consciência, antes realizando uma aproximação a um discurso pensado.
O livro atravessa fundamentalmente três grandes restrições culturais sentidas pelo autor — o peso da educação católica, a pequenez da sua cidade natal (Dublin), e a obsessão com a rivalidade com Inglaterra — para assim dar conta do modo como alguém tem de lutar para se erguer acima dos condicionalismos ao pensar. Porque só se é artista quando se é capaz de criar pensamento próprio, quando se consegue a partir do meio envolvente traçar um caminho pessoal. É isso que este livro representa, mais do que ser uma autobiografia da juventude de Joyce, é ele próprio um legado dessa vontade experimental artística que abriu a possibilidade à criação de obras literárias profundamente inovadoras, como seriam os seus seguintes textos.
“Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”Mas ser inovador a nível artístico não tem qualquer relação com a criação do belo, já que o fundamento é racional. Esse é talvez o maior problema de toda a obra de Joyce, e outros artistas, quando se deixam toldar pela sua obsessão artística, esquecendo que as obras se dirigem a um receptor. Aqui estou a falar já de toda a carreira de Joyce, já que este “Retrato do Artista Quando Jovem”, marcando apenas o início da abordagem estética do autor, apresenta ainda muito daquilo que podemos considerar de beleza na escrita. Contudo são vários os momentos em que o autor afunda o discurso e se afasta de nós, claro que nada que se aproxime do limiar atingido com “Finnegans Wake”.
Dito isto, é um livro para ser lido pelo seu valor literário, a abordagem artística de Joyce, e neste caso o modo como se desenvolveu, e menos pelo simples prazer de leitura. É um texto que interessará a quem já atingiu a fase de perda de encantamento pelos clássicos e precisa de algo que vá para além das simples descrições e interpretações do real, algo capaz de criar as suas próprias realidades. Convém mesmo ter lido grande parte desses clássicos para deter bagagem capaz de co-construir a realidade que os livros de Joyce exigem, de outro modo poderá ficar a ideia de que o livro tem pouco para dizer.
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