maio 10, 2016

“As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884)

Li “As Aventuras de Huckleberry Finn” (1884) de Mark Twain numa tradução de Rosaura Eichenberg para a brasileira LPM, e ainda que, e ao contrário das traduções portuguesas, exista um enorme esforço por adaptar a particularidade formal da escrita inglesa de Twain ao português, só se consegue em parte. Huck e Jim funcionam imensamente bem, ao serem transportados para o linguajar do Brasil, para o caso de Jim vem mesmo do sertão, ficando contudo todos os restantes personagens a funcionar como adereços da língua standard. De qualquer modo, o trabalho original do autor merece todo o nosso interesse, dada a sua enorme capacidade para nos envolver, emocionar e fazer sonhar.



Huck e Tom Sawyer fazem parte do meu imaginário de criança como símbolos de liberdade, criatividade, audácia e muito otimismo. O contato foi realizado por via da série de animação “As Aventuras de Tom Sawyer” de 49 episódios da Nippon Animation de 1980, na qual se retrata apenas o primeiro livro de Twain. Desta forma “As Aventuras de Huckleberry Finn” começam onde terminam as “As Aventuras de Tom Sawyer” e leva-nos a novas aventuras, desta vez mais focadas em Huck, ainda que Tom Sawyer volte a aparecer para fazer das suas.

Posso agora dizer que a série refletia plenamente o sentimento de Twain, já que ler "As Aventuras de Huckleberry Finn" funcionou como verdadeira continuação da série, em nenhum momento me senti defraudado quanto ao universo ou personagens, cumprindo plenamente aquilo que ainda restava na minha imaginação, fazendo-me rir e despertando a alegria inocente. Por outro lado, vi de forma mais madura os problemas das relações entre raças no sul dos EUA, e consegui sentir a personagem de Huck como uma das mais bem elaboradas da literatura americana, por toda a enorme profundidade que nos consegue dar através de leves traços comportamentais e questionamentos ingénuos de aparente superficialidade.

“Jim falava alto o tempo todo, enquanto eu tava falando comigo mesmo. Ele tava dizendo que a primeira coisa que ia fazer, quando chegasse num estado livre, era poupar dinheiro sem gastar um centavo e, quando tivesse o bastante, ia comprar a mulher dele, que era propriedade de uma fazenda perto de onde a srta. Watson vivia. Aí os dois iam trabalhar pra comprar os dois filhos, e se o dono não quisesse vender eles iam falar com um abolicionista pra ir roubar as crianças.
Quase gelei quando ouvi essa declaração. Na sua vida de antes, ele nunca ia ter a ousadia de falar desse jeito. É pra ver a diferença que aconteceu nele no minuto que achou que tava quase livre. Tava de acordo com o velho ditado: “Dá a mão prum negro e ele vai pegar o braço”. Pensei, é isso o que dá eu não pensar. Aqui tava aquele negro que eu tinha de certa maneira ajudado a fugir, achegando-se com toda desenvoltura e dizendo que ia roubar os filhos dele – filhos que pertenciam a um homem que eu nem sequer conhecia, um homem que não tinha me feito mal nenhum.”
A primeira edição americana, lançada no ano seguinte à edição inglesa, apresentava ilustrações de E. W. Kemble, com todos os desenhos revistos e aprovados por Mark Twain.

Aliás, em certa medida o reconhecimento da obra de Twain advirá não só da construção formal, da obsessão pelo linguajar das comunidades americanas do Sul, mas também desta sua capacidade para construir na frente dos nossos olhos, personagens e eventos realistas, ao mesmo tempo que líricos e belos. Ler “As Aventuras de Huckleberry Finn” foi, em certa medida, um retornar à minha infância.

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