A leitura de
Ainda Alice (2008) de
Lisa Genova é inquietante, perturbadora e ao mais tempo apaziguante. É um romance que se lê como um
thriller em que não conseguimos parar de ler, porque queremos saber mais, queremos entrar dentro daquele personagem e senti-lo, percebe-lo, entranha-lo.
Alice (50) sofre de Alzheimer Precoce e esta é a história sobre o definhar da mente, da sua memória, do seu Eu. A narrativa é belíssima porque encadeia todos os eventos com uma lógica estruturante e progressiva que nos vai conferindo recompensas pela leitura. Os impactos de pequenas tragédias que vamos descobrindo sobre cada personagem são o seguro da nossa atenção e um garante do incremento de interesse pelo
grand finale.
Não leio muitos romances, principalmente porque sinto que enquanto os estou a ler podia estar a ler algo mais produtivo tecnicamente. Nesse sentido quando leio ficção procuro que de algum modo exista qualquer ligação com algo potencialmente relevante para os meus interesses de investigação. Neste caso temos a Psicologia, e as estruturas da Memória. A doença é algo que me assusta desde que vi
Iris (2001) e agora ainda mais porque um familiar próximo apresentou indícios de poder estar a entrar nas periferias da doença. Assim, saber mais sobre tudo isto é importante, e ler ficção com esta capacidade informativa que é documentada e suportada é altamente recompensador.
A autora é doutorada em Psicologia por Harvard e como tal isso conferiu-lhe acesso a muita da informação que temos no livro. Aliás penso até que isto é um livro que funcionará como uma projecção realista de algo muito real. O que ela consegue aqui fazer é impressionante, no sentido em que literalmente entrou na cabeça de um doente de Alzheimer e procurou apresentar-nos a mundo a partir da sua perspectiva. Ora isto só poderia ser ficcionado, pois ao contrário de
Jill Bolte Taylor que regressou para contar o que se passou, aqui não existe regresso. O Eu de um doente de Alzheimer pode passar por fases mais e menos lúcidas mas não regride, não volta ao que já foi.
E é este regresso que é tanto ou mais chocante, que representa o desaire e o declínio da identidade, que destrói e corrói o humano que há em nós. É impressionante quando Alice compara Alzheimer com o Cancro e a sua receptividade pelo grupo de colegas de Harvard.
“Quem tinha cancro podia esperar o apoio da sua comunidade. Alice esperava ser marginalizada. Mesmo os mais educados e bem-intencionados tinham tendência a manter uma distancia temerosa dos doentes mentais. Ela não queria ser alguém que as pessoas evitavam e a quem temiam.” (p.131)
Mas e porquê? A nossa condição de velho não se diferencia de uma criança ou bebé. Vamos perdendo ligações sinápticas enquanto envelhecemos aproximando-nos de forma proporcional e inversa à idade do bebé. Um bebé com um ano, não tem consciência de si. Então porque é tão impactante, porque é tão aberrante a Alzheimer, ou a perda de lucidez com a velhice.
Tenho pensado nisto, enquanto olho para o meu filho de 11 meses. A única conclusão a que chego é tão somente a Esperança. Investimos num bebé porque ele está em fase ascendente, porque o nosso relacionamento com este tem impacto no seu ser, a sua identidade será moldada em parte pelo modo como nos relacionarmos com ele. Apostamos tudo neste porque acreditamos que ele ainda irá desabrochar, crescer e Ser. Por outro lado com Alzheimer ou velhice, nada ou pouco, do que possamos fazer para nos relacionar terá impacto na sua progressão enquanto Ser. O que é agora, será, ou pior, declinará ainda mais perdendo faculdades em vez de ganhar.
Depois existe ainda o outro problema que está relacionado com o Espelho de nós. Olhar para alguém com Alzheimer é olhar para o nosso fim enquanto Ser, por outro lado olhar para um bebé é olhar para algo em potência, poder imaginar e projectar o futuro.
É muito interessante também que neste estado, que num estado terminal se olhe para o que temos próximo e se descarte o todo profissional por mais importante que este seja ou tenha sido.
“...queria viver para pegar no bebé de Anna e saber que era seu ..neto. Queria ver Lydia representar em algo de que ela se orgulhasse. Queria ver Tom apaixonar-se. Queria mais um ano sabático com John. Queria ler todos os livros que conseguisse antes de deixar de saber ler." Riu-se um pouco surpreendida com aquilo que acabara de revelar a si própria. Nessa lista, não havia nada de linguística, ensino ou Harvard.”(p.131)
Ainda Alice, é um livro de escrita simples e directa, sem rodeios nem floreados, sem frases vazias e carregadas de adjectivos ao contrário de muita da literatura actual que se lê como se escrevêssemos ainda num século XIX ou XX (ex. Miguel Sousa Tavares). É um tipo de escrita que corre como a língua, que corre com o pensamento sem maneirismos e nos entra pelo conteúdo e menos pela forma.