dezembro 25, 2019

o Holocausto por dentro

O meu imaginário do Holocausto era até agora estruturado a partir dos relatos de Primo LeviViktor Frankl e das imagens de Claude Lanzmann. Três obras não-ficcionais, dois relatos na primeira-pessoa da experiência vivida em Auschwitz, e uma visita, 40 anos depois, retratada por múltiplas vozes que por lá passaram e assistiram, dentro e fora, em primeira pessoa ao morticínio. "Son of Saul" (2015) é ficção, tal como "Come and See" (1985) de Klimov, mas diferentemente desse, não o parece.  São ambos obras de grande intensidade visceral, talvez das mais viscerais a que assisti, mas "Son of Saul" distingue-se pelo naturalismo utilizado que impregna a obra de um caráter quase documental, tornando tudo ainda mais intenso, se é que tal é possível... posso, contudo, dizer que vai além da camada emocional, as opções de câmara implementadas para dar a ver obriga a uma racionalização do espectador, o que torna a experiência particularmente perfurante.
Já me tinha interrogado sobre o como se "passaram as coisas", e o filme de Lanzmann é ainda mais instigador ao mostrar tudo muito depois, mas de modo estático obrigando-nos a imaginar. Aliás essa foi uma opção propositada de Lanzmann, o mesmo que depois de ver “A Lista de Schindler" disse:
"The Holocaust is above all unique in that it erects a ring of fire around itself, a boundary that you cannot cross, because it is impossible to convey a certain absolute horror; claiming to do so is to be guilty of the gravest transgression. Fiction is a transgression; I am deeply convinced that there is a prohibition on representation." Claude Lanzmann
Podemos assim dizer que optar pelo modo de Spielberg é como mostrar a dor humana à distância, a partir do conforto de um camarim. Mas Nemes quebra o tabu, atira o pudor janela fora e coloca-nos dentro da maior Fábrica de Morte alguma vez criada, colados à carne de um simples trabalhador judeu, obrigando-nos a ver tudo, ainda que pelas franjas do enquadramento. Claro que para tal foi preciso a performance brutal de Géza Röhrig.

O filme pode ser visto no FilmIn.

dezembro 23, 2019

O tio e a génese da arte de Regina Pessoa

Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”

Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.



Algumas referências 
O Expressionismo Animado na Obra de Regina Pessoa. (2013). Eliane Muniz Gordeeff
Uncle Thomas: Accounting For the Days by Regina Pessoa. (2019). by Olga Bobrowska
Regina Pessoa and Autobiographical Animation (2019). Marie Mello

dezembro 22, 2019

50 modelos de apoio à decisão

Encontrei este livro por acaso na Fnac, não o comprei logo, mas como não o esqueci acabei por o mandar vir. A razão porque me interessou tanto foi a dupla de conceitos: modelos e decisões. Em relação ao primeiro, é o modo como prefiro trabalhar a minha investigação, estou sempre à procura de situações, casos e exemplos em busca de padrões que possam depois ser replicados e potencialmente escalados, no fundo criar modelos de conhecimento. Em relação ao segundo, as decisões estão intimamente relacionadas com os processos de escolha humanos que são no fundo a base do design de interação, servindo amplamente desde as aplicações e jogos às narrativas interativas. Ou seja, olhei para este livro como um compêndio de ideias de potencial aplicação imediata, embora tal depois não tenha propriamente acontecido, mais porque parte dos modelos, os mais interessantes, já os conhecia, e os restante se distanciavam bastante do meu domínio de aplicação. Não esquecer que é um livro mais dirigido aos domínios da gestão.
"The Decision Book: Fifty Models for Strategic Thinking" (2008) de Mikael Krogerus e Roman Tschäppeler

Os 50 modelos são categorizados em 4 modos: melhoria do próprio; compreender-se melhor; compreender os outros melhor; e melhoria dos outros. Um conjunto de modelos são sobejamente conhecidos, alguns já mesmo enquanto teoria, deixo uma lista desses: Análise SWOT; Flow; Pareto Principle (80/20); Modelo da Cauda Longa; Compasso Politico; Ciclo do Hype; Difusão; Feedback, Pirâmide Marlow; Dilema do Prisioneiro; Capital de Bourdieu. Os autores utilizam estes modelos, mas adaptam-nos em função dos seus contextos, nomeadamente da realidade Britânica ou de conteúdos mais mainstream.
Modelo do Capital Social de Bourdieu

Por vezes surgem algumas generalizações nesses modelos algo questionáveis, mas o interessante está nos modelos, no modo como podemos triar os conteúdos usando-os. Ou seja, olhem para os modelos como formas de aplicação aos problemas, e não como teorizações do real. Por outro lado, como o livro é pequeno não sobra muito espaço para discussão e menos ainda aprofundamento, por isso olhem para o livro como cardápio, para depois ir atrás.
Modelo do Feedback

Explicação dos Pássaros (1981)

Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.

ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.

O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.

dezembro 21, 2019

Comportamento: sobre o nosso melhor e o pior

As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened.
And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior.
(…)
There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.

Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try.
Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:

  • “Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
  • “Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
  • “Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
  • “Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
  • “We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”

O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".

dezembro 20, 2019

“Eliza”, a IA como psicoterapia

O melhor de “Eliza” é sem dúvida o enquadramento da história que conta, centrada nos problemas da Inteligência Artificial e da quebra da privacidade, apresenta um novo ângulo da discussão, o potencial da IA como suporte à saúde mental, partindo da premissa: e se todos pudéssemos ter acesso a sessões de psicoterapia com IA? É um tema que poderíamos ver no mundo de “Black Mirror”, além de bastante atual, não apenas pela recente grande evolução da IA, mas por todos os desenvolvimentos tecnológicos que vêm sendo introduzidos na área da saúde. “Eliza” parte desta aparente atualidade, mas vai além, lança ideias para um futuro próximo e questiona-nos sobre um dos maiores flagelos das sociedades desenvolvidas: a doença mental.
Sendo um jogo interativo, as dúvidas emanadas do uso da tecnologia, a diferença entre humano e tecnologia no suporte aos humanos acaba surgindo como centro das nossas escolhas, do mundo em que acreditamos ou desejamos acreditar. Será uma máquina mais eficaz na leitura dos problemas que assolam as nossas mentes, os nossos Eu? Será a máquina mais objetiva e concreta, capaz de desafiar as nossas constantes dúvidas e incertezas? Poderemos confiar nas propostas de uma máquina imparcial?

“Eliza” apresenta várias propostas inovadoras, desde logo a ideia do Proxy. As consultas de psicoterapia não funcionam apenas numa relação humano-máquina, mas são mediadas por um outro humano que serve apenas de veículo à IA. Neste sentido destaca, desde logo, a necessidade do outro, a necessidade de sentir o conselho emanado por um igual, e não uma mera máquina que não poderá nunca sentir a dor do humano. Um outro ponto imensamente interessante acaba surgindo a partir das lutas empresariais e detém-se sobre a questão do sofrimento e da sua necessidade para a nossa felicidade. Filosoficamente falando, poderemos ser felizes se nunca nos sentirmos infelizes, se deixarmos de sentir a dor?

Enquanto videojogo é ficção interativa suportada por uma boa camada de ilustração gráfica, sem movimento nem animação, ou seja, uma “visual novel” ou história visual interativa. Como tudo se move ao redor da história e dos diálogos, a elevação da experiência assenta no texto e nas nossas decisões, relevando para segundo plano a componente audiovisual. Em termos de narração interativa, podemos dizer que temos um bom trabalho, embora sinta que o seu forte é mesmo o enquadramento da história, ficando as nossas decisões demasiado presas ao mero progresso narrativo.
Interessante foi perceber no final dos créditos que o jogo surgiu como fruto de uma residência artística interdisciplinar de Matthew Seiji Burns em Inglaterra, tendo eu depois percebido que Burns é também o co-criador do belíssimo "The Writer Will Do Something" (2015).

A distância de "Marriage Story"

“Marriage Story” (2019) é o último grande vencedor de audiências da Netflix, um filme com duas estrelas que aparenta retratar uma realidade próxima de todos nós. No entanto, a realidade apresentada não tem qualquer relação connosco, apenas é aparentemente próxima pela força da presença dos mundos de Hollywood e da Broadway no imaginário cultural ocidental. Bastaria pensar em quantos casais da classe média poderiam pagar a um advogado mil euros à hora. Claro que o facto de apresentar um casal, aparentemente bem-sucedido, cria aquela imagem do conto de fadas: “afinal também acontece com eles”. O problema é que não é disso que se trata, a história está centrada no mundo pessoal de Noah Baumbach, o realizador de “Marriage Story”, e na sua relação falhada com Jennifer Jason Leigh, reconhecida atriz de Hollywood. Existindo bons momentos, o filme acaba frisando um conjunto de problemas, não apenas pelo privilégio mas também pela diferença de pesos morais.
1 — Se o filme queria oferecer uma representação dos problemas gerais que decorrem do divórcio, tal não é possível a partir da relação oferecida. Para a generalidade da classe média rever-se em duas estrelas, não os atores, mas as suas profissões — um encenador da Broadway e a outra atriz e realizadora de Hollywood — é no mínimo distante. Ainda que os seus universos sejam clichés reconhecíveis, as suas realidades são imensamente distintas, não apenas financeiramente, mas em termos de privilégio e reconhecimento societal. O casal representado não pertence a um nicho, pertence a uma elite bem distinta.

2 — Se o filme queria dar conta do divórcio como algo emanado igualmente do homem e da mulher, falha redondamente, muito provavelmente por ser escrito por Noam e não pela Jennifer. Repare-se como tudo aquilo que o homem fez e faz é justificado, explicado e apresentado como atos inescapáveis ou altruístas. Tudo aquilo que a mulher faz surge do mero capricho individual. O homem é aquele que pensa nos outros, de quem todos dependem, a mulher é a autocentrada que não se preocupa com mais ninguém além do seu Eu.

3 — Todas as diferenças entre o homem e a mulher são intensamente exponenciadas pelo espaço e suas culturas, ou seja, o estrelato de Hollywood e a alta-cultura de NY. Hollywood a terra dos ricos, dos exageros, da superficialidade, da banalidade, do total desprezo pelo outro. Do outro lado, o teatro nova-iorquino, centrado no drama das vivências das pessoas comuns, com poucos meios, trabalhando-se por amor à profissão, em que importa mais o grupo do que o indivíduo.

4 — Para finalizar, se se queria dar conta do divórcio, porquê mais uma vez recuperar a imagem do filho criança, único, puro e angelical. Chegando ao final, a conclusão é que tudo teria sido fácil se ele não existisse. E seria? Se sim, então na verdade não havia uma história para contar.

Claro que existem boas sequências e as performances de Johansson e Driver são excepcionais. Mas se quiserem aceder ao tumulto interior do fim de uma relação aconselho antes, apesar de aparentemente distante por se passar no Irão, o filme "A Separation" (2011) de Asghar Farhadi.

dezembro 19, 2019

Hollywood sendo Hollywood

Tinha bastante interesse em ver estes dois filmes, ambos com boas equipas, ambos com excelentes receções da crítica e do público e no entanto ambos grandes desilusões. Tarantino não me surpreendeu, já passaram 10 anos sobre o seu último bom filme. No caso de "Ad Astra" apanhou-me um pouco de surpresa, porque tinha lido e sentido tratar-se de uma obra mais cerebral, quando afinal, tudo não passava de mais um "Space Cowboys".

"Ad Astra" (2019) e "Once Upon a Time in Hollywood" (2019)

Hollywood bem tenta dar ares de ter algo para dizer, mas não consegue deixar de ser Hollywood. "Ad Astra" é o caso mais recente e perfeito disto mesmo. Existe ali uma jornada conradiana? Podemos dizer que sim, mas isso nunca chegaria para satisfazer a gula dos seus produtores. Era preciso espetáculo, era preciso tensão, nem que tudo isso parecesse mero caramelo jogado na superfície. Porquê uma relação pai-filho numa situação que envolve toda a espécie humana, o seu passado e futuro, não se consegue mesmo sair do básico em Hollywood. Do mesmo modo, porquê a introdução da cena dos macacos assassinos ou dos piratas da lua? Para assanhar, contrastar e produzir tensão na plateia? Reparem como toda a estrutura e clichês narrativos se cola a tantos outros blockbusters, sendo um dos mais diretos "The Day After Tomorrow" (2004). O melhor que li entretanto sobre o filme foi mesmo o texto de Kermode no Guardian.

Já Tarantino nunca tentou dizer nada propriamente com grande alcance, por isso não esperava nada de muito particular do seu mais recente filme. Contudo, fazer um filme sobre Hollywood em que aquilo que nos dá a ver são as vidas banais de estrelas decadentes, colando sobre isso, à força, os subtextos das tragédias de Bruce Lee e Roman Polansky, não é apenas de mau gosto, é mesmo de falta de ideias, refletindo no fundo o legado Tarantino. Ser um grande escritor de diálogos não chega para contar grandes histórias, ou pelo menos para ter ideias ou chegar a premissas relevantes. E o pior é que até no campo da composição visual onde Tarantino se foi destacando existe pouco lugar para ideias originais (ver vídeo abaixo). No fundo, Tarantino é apenas um expoente do espetáculo que define a cultura de Hollywood. Aumentem a tensão, baralhem e voltem a dar mais do mesmo e o público sentir-se-á entretido.

"How Quentin Tarantino Steals From Other Movies" (2019)

dezembro 18, 2019

"Época de Migração para Norte" (1966)

O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)
É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.

A escrita é belíssima.