junho 02, 2018

Sonhos de Hollywood

O trabalho de Victor Castillo ganhou nova vida através de um pequeno documentário, criado pela Loica, que resolveu animar várias das icónicas obras dele. O filme intitulado "Hollywood Dreams" é muito curto, mas dá conta das influências e objetivos do autor assim como levanta um pouco o véu sobre o quanto as suas criações têm influenciado a paisagem cultural, mas o melhor de tudo são mesmo os pequenos filmes de animação das diferentes telas que nos permitem navegar por entre os universos criados por Castillo.

"Let's Get Out of Here" (2017)

"Pure Pleasure" (2013)

Castillo nasceu no Chile (1973), em 2004 emigrou para Barcelona, tendo começado a expor e a chamar a atenção, e depois em 2010 acabou por se mudar para LA. O seu trabalho tem surgido em murais, revistas e museus um pouco por todo o mundo.

"Hollywood Dreams" (2018) de Loica

Epistemologia pela análise histórica

"A Ordem do Discurso" é um discurso escrito, apresentado por Michel Foucault a 2 de Dezembro de 1970, na sua aula inaugural no Collège de France, entretanto posto a circular na forma de livro pela editora Éditions Gallimard em 1971. A relevância do discurso centra-se na apresentação, de modo sintético, do método de chegada à verdade eleito por Foucault, apresentando as razões e raízes para o mesmo. Foucault apresenta-se como devedor de Jean Hyppolite no que ao método concerne, sendo que a sua chegada ao Collège de France acontece pela morte de próprio Hyppolite, no ano anterior, tendo Foucault sido eleito para ocupar a sua cátedra, Histoire de Pensée Philosophique, com a nova designação de Histoire des Systèmes de Pensée.


O texto é de difícil leitura, não porque use muito jargão, mas porque Foucault, como tantos outros filósofos, opera o seu discurso sempre em níveis de análise macro, ou seja grandes categorias do real, que para quem não está por dentro de um enorme manancial de contexto, torna difícil compreender em concreto o que é dito, ou seja, estabelecer a ligação entre as categorias gerais e as especificidades diversas que a realidade apresenta. No entanto, e também como sempre nestes discursos, à medida que vamos forçando a nossa entrada na teia, vamos assimilando o comprimento de onda, sendo capazes de nos colocar ao lado do autor e seguir pelo meio da abstração o que está a ser dito. É preciso dizer ainda que o texto, por ter sido pensado para um discurso falado, não poderia, ao contrário do livro, tomar a liberdade de evocar muito do contexto necessário à sua compreensão. Por outro lado, o tipo de audiência esperado para o discurso supostamente estaria na posse de muito desse contexto.

Não me interessa aqui debater em concreto as estruturas do Poder que Foucault encontra estarem a operar na construção dos Discursos, desde logo porque existem pessoas muito mais especializadas na temática que eu, que já fizeram essa desmontagem, apresentando-a de modos muito mais pragmáticos e até visuais. O texto tem sido amplamente usado pelos colegas de Direito e da Medicina para compreender exatamente o poder do discurso em si.

Interessa-me antes focar no método epistemológico que serve de base a essa busca, e que assenta na arqueologia do saber, que no fundo dá conta de uma construção do conhecimento por meio da análise histórica e construtivista dos acontecimentos na realidade, recorrendo a múltiplos processos de operação dos elementos desses acontecimentos na história, pondo em jogo não apenas os eventos mas todo seu contexto social, usando a comparação e a correlação em busca de padrões e categorias de suporte a uma verdade por detrás das ideias. Isto é apresentado e trabalhado por Foucault como base metodológica para a busca da compreensão do poder do discurso.
"As descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar, apoiar-se umas nas outras e completar­ se. A parte crítica da análise prende-se com os sistemas de envolvimento do discurso ; ela visa assinalar e distinguir esses princípios de prescrição, de exclusão, de raridade do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela põe em prática uma aplicada desenvoltura. A parte genealógica da análise prende-se, pelo contrário, com as séries da formação efectiva do discurso : visa captá-lo no seu poder de afirmação, e não entendo com isso um poder que estaria em oposição ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objectos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos positividades a esses domínios de objectos ; e digamos, jogando segunda vez com as palavras, que se o estilo crítico era o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz."  Foucault, O Poder do Discruso (1971)
Concordando totalmente com a epistemologia, sinto no entanto que fica a faltar algo neste método, e não vou fazer uma crítica sobre o estruturalismo ou formalismo do método, mas mais sobre aquilo que me parece ser algo que faltaria aqui para podermos fechar o circuito completo da construção de verdade. Falo em concreto da Interpretação, a mãe da escola de análise crítica, que em face de todos os achados — repetições e diferenças — precisa de dar um sentido aos mesmos. É aqui que tudo se complica, é aqui que a ideologia de cada um acaba por operar inevitáveis distorções da verdade. Repare-se como as categorias definidas por Foucault para a compreensão do Poder do discurso assumem desde logo um posicionamento ideológico — exclusão, controlo ou apropriação. É certo que é de poder que se fala, mas também não é menos certo que Foucault tende aqui para buscar apenas um certo veio de tendências — da opressão e limitação — deixando de fora possibilidades contrárias como a expansão ou até o empoderamento, entre muitas outras perspectivas possíveis.
"Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel ; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma proposição estava em poder do seu próprio autor. Desde o século XVIII que esta função se tem vindo a atenuar no discurso científico : já não funciona senão para dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor tem vindo a reforçar-se : a todas essas narrativas, a todos esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu ; pretende-se que o autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob o seu nome ; pede-se-lhe que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os atravessa ; pede-se-lhe que os articule, com a sua vida pessoal e com as suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é o que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real." Foucault, O Poder do Discruso (1971), análise histórica do papel do Autor
Já agora, e mais próximo do meu trabalho, esta tem sido a abordagem seguida por David Bordwell ao longo dos anos na sua análise do discurso cinematográfico, a que ele deu o nome de "historical poetics". Ou seja, a busca-se compreender o sentido no cinema por meio da análise da variação estética no tempo. Como dizia acima, não se trata de uma abordagem meramente formalista, porque não se limita a estudar o filme enquanto objeto plástico, a análise procura quantificar e realizar amostragem histórica, mas procura compreender como essa funciona em termos cognitivos junto dos espectadores.

Temos método, temos uma base de evidência que suporta a verdade apresentada, mas nem por isso podemos relaxar, esquecer que o emissor de verdade, ainda que a partir de evidência, não contaminará ele próprio fortemente essa evidência.

O Malick de 2017

O cartaz não me disse nada, o título nada disse ("Song to Song"), e a sinopse deixou-me com a certeza de que este filme não era para mim. E no entanto, ao fim de cinco minutos no filme já não consegui mais desligar, nem as pausas que costumo fazer, tão habituais quando vejo cinema em casa, consegui fazer, fiquei ali colado até ao último plano se fechar. Malick sugou totalmente a minha atenção, e se aos quinze minutos só pensava que era mais um filme dele, bom mas apenas mais daquilo a que nos vem habituando, o deslumbrar nunca parou de se elevar com o sentir emanado das imagens, dos atores e dos textos. Intenso, pura emoção cinematográfica, ou simplesmente, uma alegria melancólica.





"Song to Song" (2017) de Terence Malick

Mais do que em qualquer outro filme de Malick a câmara vagueia, sempre sem parar, mas não ilustra, antes nos abre uma espécie de acesso ao fluxo de consciência polifónico criado pelos diferentes personagens que nos permite aceder às suas vidas, passado e presente, alternativas desses e desejos futuros. A câmara está literalmente colada sobre os atores, estamos em constante confronto com os seus olhares, os seus braços e mãos, os seus cabelos, o seus sentires e pensamentos. Malick leva-nos para dentro do interior do humano, e apesar das centenas de locais magníficos mostrados — arquitectura, natureza, muita beleza deste planeta — é no ser humano que acabamos a focar-nos, como se tudo o resto não passasse de cenário, adereço. É o nós, seres como nós, que pensam como nós, sentem o que nós também sentimos, que duvidam de quem são, como nós, e querem descobrir o que são, querem descobrir porque são e o que podem vir a ser. O humano é a constante deste filme, mas talvez possa dizer mais que isso, é a dúvida, a dúvida do que somos. Um fôlego de tristeza perpassa todo o filme, tristeza sem tragédia, uma tristeza tranquila.

maio 24, 2018

Criança Queimada (1948)

A escrita é simples, direta, sem floreados, limita-se a descrever o que acontece, sem perder tempo com explicações, interrogações ou deambulações. Se o que se descreve contém raiva latente, pronta a explodir no virar de cada página, o como se escreve parece emergir de uma amargura autoral não menos enraivecida, explicando porque se  não "perde" tempo e se ataca sempre o contar e descrever de forma tão direta, com muita ânsia de dizer, de pôr cá fora os mundos e realidades experienciadas, prontamente re-imaginadas. Sobre Dagerman, nada direi uma vez que já disse tudo a propósito do seu "A Nossa Necessidade de Consolo é Insaciável" (1955).

Título original: "Bränt Barn" em sueco. Traduzido para português seria "Criança Queimada".

Lendo sobre Stagerman são muitas as pontas que se tocam com aquilo que se vai descrevendo em "O Vestido Vermelho / Criança Queimada", desde logo se o protagonista tem cerca de 20 anos, o autor tinha na altura 24. E se impressionam imenso as competências literárias com esta idade, explicando o rótulo de génio que na altura lhe foi colado, não deixa de se sentir a imaturidade à flor do que se vai descrevendo, dos sentires ainda em modo eruptivo. Daí que o texto se sinta perturbador com a experimentação dos limiares da moral e do ser, algo a que também não é alheio a escrita escandinava, ou talvez melhor, do frio do Norte, já que por várias vezes Stagerman me recorda David Vann.

O livro, como dito acima, descreve continuamente ação, foca a nossa atenção no desfiar do enredo, e desse modo mantém-nos continuamente interessados e com desejo de regressar à leitura, desde a primeira à última página. Não que se chegue verdadeiramente a passar algo significativo, mas a tal raiva latente é suficiente para continuamente manter a expetativa acesa, e a necessidade de conhecer o que vai acontecer na página seguinte. Dagerman acaba assim trabalhando a sua narrativa num modelo mais cinematográfico, de dar a ver, investindo muito pouco na desconstrução do que se vê. Por outro lado, o facto de tudo se nos ser apresentado de forma lacónica de modo muito claro, mas sem espaços de reflexão, acaba por tornar aquela realidade tão objetiva em algo profundamente abstrato.

Fica-me a dúvida sobre a tradução que é dos anos 1950, e que além de apresentar algumas palavras mais estranhas, como as dezenas de menções a "bulha" de cada vez com significado distinto, me incomodou particularmente pela adulteração do título, algo que é defendido pela tradutora em prefácio, apesar de não apresentar qualquer argumento para o efeito.  Não posso consentir que um tradutor se arvore em autor, que é aquilo que faz quando muda literalmente o título, contribuindo para a re-significação da obra. Em sueco o livro chama-se "Bränt Barn", o seja "Criança Queimada", um título muito mais duro que "Vestido Vermelho", mas também, por isso mesmo, muito mais consentâneo com a forma e ideias discutidas no livro. Por outro lado, o título é mais do que o seu sentido literal, já que ele configura em si mesmo uma metáfora, a "criança queimada" terá receio de se voltar a envolver em experiências próximas das anteriores em que se "queimou", já o vestido vermelho convoca todo um imaginário que só tangencialmente se aproxima do mundo de Dagerman, ainda que pelo meio da história um vestido vermelho surja.

maio 19, 2018

Casei com um Comunista (1998)

Depois da "Pastoral Americana" (1997) era difícil voltar ao mesmo nível, e ainda assim considero que não só o conseguiu como o superou, não neste mas no terceiro volume desta trilogia — "A Mancha Humana" (2000). "Casei com um Comunista" (1998) fica assim com o último lugar do pódio, não deixa de ser um bom livro que nos consegue agarrar mas raramente nos consegue sacudir do lugar. O tema escolhido é profundo, o Macartismo, mas Roth parece mais interessado em circular ao seu redor, oferecendo pouca profundidade sobre os efeitos e impactos do mesmo.


O livro usa como personagem central Ira Ringold, um personagem másculo, enorme, com poucos estudos e comunista. É por meio dele que se fala dos ideias comunistas, e como expectável, as visões são superficiais e acima de tudo carregadas de fé. Do outro lado, está a mulher, estrela de cinema, pouco lhe interessa a política, mas com ela convivem alguns elementos de direita que acabarão a governar o país. Ambos os lados, direita e esquerda, saem representados superficialmente e inconsequentes. Roth está mais interessado nos sentires dos seus personagens do que nas políticas e ideologias que os circundam, o que faria todo o sentido para um escritor reconhecido pelas suas capacidades de dar a ver o interior dos seus personagens.

Ora o problema, para mim, está exatamente nos personagens, nos modelos escolhidos para criar a narrativa, nomeadamente o casal, Ira e Eve. Nenhum deles apresenta qualquer peculiaridade interessante, ou atrativa, o facto de se terem tornado estrelas dos media torna-os ainda mais distantes, pois as suas dificuldades já não são as nossas. São destemidos e arrogantes, ainda que pelo meio Roth vá dando conta das suas fragilidades, mas não o suficiente para criar uma ligação a qualquer um deles. Ou seja, nunca ao longo de todo o livro me interessou o passado nem o futuro de Ira, já não falo de Eve sobre quem praticamente nada acabamos a saber.

Aliás, pelo que entretanto li sobre o livro, parece que Eve Frame terá sido baseada na mulher de Roth, Claire Bloom de quem se separou, de forma nada amigável, em 1995. Depois em 1996 Bloom escreveu uma autobiografia na qual Roth surge de forma pouco abonatória, rotulando-o de misógino. Não sabia disto aquando da leitura, por isso senti que a personagem não estava completa, tivesse sabido disto, e teria retirado toda uma diferente leitura, já que teria podido contextualizar a mesma. Por outro lado, serve também para me dar conta do facto de Roth ter mais do que um objetivo para o tema do livro, e em parte justifica exatamente a razão porque tudo parece tão difuso e com pouca profundidade

Apesar disto, se Roth vai dando conta da essência do Macartismo, assente na traição e acusação, a verdade é que deixa de fora todos os seus efeitos. Terminado o livro poderia levantar-se a questão se teria sido assim tão mau, já que na verdade nenhum destes personagens parece, em momento algum, sentir medo, nem receia ou parece deixar de fazer algo por causa disso. Deste modo perde-se completamente a noção do alcance da traição, do modo como controla e subverte a vida das pessoas, as condiciona e pune psicologicamente.

Talvez se não nada soubesse sobre o Macartismo, tal como nada sabia sobre os atentados à bomba americanos relatados em "Pastoral Americana", talvez me tivesse impressionado mais esta leitura. Mas o Macartismo é algo bastante mais presente, nomeadamente para todos os que se interessam por Cinema, já que Hollywood foi um dos meios mais castigados pelo Macartismo.

A Pintura em Proust

"Paintings in Proust" é, como diz o subtítulo, um "acompanhante visual de Em Busca do Tempo Perdido". Como tal, e depois de uma breve introdução à relação de Proust com a arte, apresenta-nos, capítulo a capítulo, as obras de arte visual citadas ou mencionadas, explícita ou implicitamente, na grande obra que é a "Em Busca do Tempo Perdido". A viagem deve claramente ser feita depois da leitura, não conseguindo, nem tendo essa intenção, criar o impacto da leitura, traz-nos no entanto as memórias da experiência que foi ler o Romance, e por isso acaba por nos tocar, não raras vezes.


Impressionado fiquei por não me ter dado conta aquando da leitura da quantidade de obras citadas. Impressiona porque dá conta de uma faceta, provavelmente necessária em Proust, o seu profundo gosto pela arte fundamental à sua particular sensibilidade para com o detalhe de que se constitui o real visual circundante, e que Proust tanto se esforça por nos fazer ver por meio das suas palavras. Temos desde de esboços e ilustrações a paisagens, cenas e retratos, Proust recorre a todo um imaginário visual fixado, estaticizado, como que para conseguir extrair melhor o sentimento da realidade, que pela sua natureza em constante mutação.

"A Vista de Delft" (1658) de Vermeer

O livro é dos anos 1920 por isso não surpreende que surja muito impressionismo do fim do século XIX, com Monet e Renoir, suportada por muita renascença com Da Vinci, Michelangelo, Botticelli, ou El Greco, tudo muito marcado por uma enorme recorrência aos pintores holandeses, Vermeer e Rembrandt. Sente-se o efeito da viagem que Proust fez a Veneza, a absorção da beleza italiana, mas sente-se também muito do mundo visual que Proust terá visitado muitas vezes no Louvre. O que mais me surpreendeu foi o recurso a alguns realistas russos que claramente terão surgido a partir do seu enorme interesse em Dostoiévski e Tolstói.

"Filósofo em Meditação" (1632) de Rembrandt

Conto voltar a este livro aquando da minha segunda leitura de "Em Busca do Tempo Perdido".

maio 12, 2018

A Nossa Necessidade de Consolo é Insaciável (1955)

Stig Dagerman surge, com apenas 23 anos, em 1945 e escreve até 1949: 4 livros, uma coleção de contos, um livro de não ficção sobre o pós-guerra na Alemanha, cinco peças de teatro, centenas de poemas, e ainda vários ensaios e textos jornalístico. De um dia para o outro, cala-se. Vive na depressão e incapacidade de ultrapassar o bloqueio criativo até pôr fim à vida em 1954. O último texto que nos deixou — "Our Need for Consolation Is Insatiable" — dá conta desses anos, dos sentimentos que o percorriam. Agora, através da brilhante declamação por Stellan Skarsgård, podemos viajar pelas palavras de Dagerman, numa curta realizada por Dan Levy Dagerman (ver abaixo).


"Everything significant that I experience, all that fills my life with a sense of wonder—meeting with a lover, a caress on my skin, help in distress, eyes reflecting moonlight, sailing on the open sea, the joy a child inspires, a shiver in the face of beauty—all of this occurs beyond the bounds of time." 
[Tradução de Steven Hartman, texto completo]


O texto é muito impressivo, pura prosa poética arrancada do interior do sentir de Dagerman. Alguns dos momentos que mais me tocaram tiveram que ver com as constatações de Dagerman relativamente à quantificação daquilo que fazemos na vida, à constante necessidade de nos justificarmos perante os outros, do que se espera de nós, e da impossibilidade de fugir a esse peso. A liberdade parece assim impossível de atingir, daí a necessidade insaciável de consolo.

maio 07, 2018

Cidade de Ladrões (2008)

Já por várias vezes tinha tentado ler “Cidade de Ladrões”, as notas no Goodreads eram muito boas, com fortes recomendações de leitura, mas de cada vez que o iniciava não me conseguia ligar ao mesmo, parecia-me ser apenas mais um livro de histórias sem propriamente uma ideia ou mensagem. Desta vez, o facto de ter percebido, erradamente, que o livro tratava de uma história real do avô do autor, acabei por continuar a leitura que me agarrou até ao final, mesmo já depois de ter percebido que nenhum dos avôs de Benioff tinha realmente estado no Cerco de Leninegrado. Serviu ainda o meu interesse inicial o facto de ter estado recentemente em São Petersburgo e por várias vezes os locais terem referido “O Cerco” como algo que impactou muito daquilo que são os costumes ainda hoje naquela cidade. Contudo, chegado ao final, continuou a faltar-me algo, continuei a sentir que o livro não era capaz de ir além da superfície do conteúdo tratado. Tentarei nas próximas linhas dar conta do porquê.


O autor, David Benioff, é alguém que respeito imenso. O seu primeiro livro, “25th Hour” (2002) foi por ele adaptado para o filme homónimo realizado por Spike Lee, tendo resultado num dos melhores filmes da primeira década de 2000, e para mim o mais marcante sobre o 11/9. Depois disto escreveu vários guiões interessantes, embora nenhum tão intenso — "Troy" (2004), "Stay" (2005), "The Kite Runner" (2007), "X-Men Origins: Wolverine" (2009). Pelo meio escreveu este “Cidade de Ladrões”, mas foi ainda antes deste, em 2006, que começou a sua maior saga, a adaptação de “A Song of Ice and Fire” do George R.R. Martin para a série de televisão “Game of Thrones”, que só veria a luz do dia em 2011, mas que desde então nunca mais pararia de surpreender espetadores no mundo inteiro. Benioff não é apenas escritor do guião da série, ele juntamente com D. B. Weiss assumiram a autoria da série, tendo Martin apenas como apoio, e isto é tanto mais real quanto as últimas temporadas na televisão apresentam o enredo já para além do último livro lançado por Martin. Ainda em defesa de Benioff e do próprio “Cidade de Ladrões” temos Bruce Straley, realizador e designer de um dos meus videojogos preferidos de sempre, “The Last of Us” (2013), a dizer em entrevista que este livro lhe tinha servido de inspiração artística na criação do universo pós-apocalíptico do jogo. Não poderia apresentar mais ou melhores argumentos, a não ser talvez os amigos do Goodreads que listam maioritariamente este livro com 5 estrelas.

Começando pelo melhor. Benioff é um excelente contador de histórias, capaz de fundir ficção e realidade com imensa facilidade. Nesta obra recorre ao Cerco de Leninegrado como espaço onde situa a sua história, e usa-o para preencher aquilo que seria uma mera narrativa com dados históricos que nos surpreendem, alimentam a nossa curiosidade e nos formam. Acompanhamos dois jovens desconhecidos, a quem se encarrega uma missão que têm de realizar juntos, e por meio dessa missão ficaremos a saber muito mais sobre o Cerco, a cidade, a guerra, assim como sobre os russos. Ou seja, Benioff fez um bom trabalho de investigação  para o livro, apresentando bastante detalhe de relevo permitindo-nos ganhar uma visão mais próxima do que terá sucedido naquele sítio naquela altura.


A violência do Cerco de Leninegrado que durou de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944

O meu problema com o livro desdobra-se em duas componentes: drama e artificialismo. Falta dramatização ao texto. Quanto mais ia lendo e as ações iam acontecendo, mais sentia isto mesmo, mais pensava, “isto é um guião, não é um livro”. Os personagens passam pelos eventos como se lhes fossem totalmente alheios, das coisas mais macabras às mais banais, tudo é visto com os mesmos olhos. Ou seja, falta o ator, falta performance por detrás do que vai acontecendo e vai sendo dito e pensado pelos personagens, que é o drama. Um pouco como acontece com as peças de teatro escritas, em que temos apenas acesso ao texto, e para podermos verdadeiramente sentir a peça na sua plenitude temos de a ver encenada para aceder ao drama. De certo modo senti-me mesmo incomodado com as ausências de reação por parte dos personagens, assumindo tudo com aparente naturalidade, ou melhor dizendo, neutralidade por via da ausência de emoção. Tanto faz encontrar canibalismo como matarem ali ao lado pessoas às dezenas, tudo parece servido quase apenas de decoração narrativa já que aos nossos personagens, nada os afeta. No fundo, Benioff é melhor escritor de guiões do que de romances.

Por outro lado, o facto de Benioff se ter tornado um mestre no contar de histórias, faz com que ele saiba muito bem o que precisa para ativar os seus espetadores e leitores, mas ao mesmo tempo, faz com que quem leia o texto com um pouco mais de atenção perceba que os elementos vão sendo apresentados apenas com o objetivo de impactar o nosso sentir. Ou seja, “Cidade de Ladrões” surge mais como fruto de design do que de arte. O ritmo é pautado por marcos bem doseados de horror, sexo e relaxe que permitem ao leitor seguir atrás, envolvido e agarrado na expetativa pelo que vai acontecer a seguir. A juntar a isto temos o desenho do enredo assente num único objetivo final concreto que mantém tudo coeso e com sentido do início ao fim mas que acaba por retirar toda a relevância aos personagens em si. Quantas vezes não paramos para nos interrogar sobre o porquê da importância dessa missão, completamente incapaz de justificar muitas das ações que se vão desenrolando num crescendo que é apenas necessário à história que se quer contar, e à formula que um bom clímax exige. Isto para não dizer nada sobre a total inverosimilitude do arranjo final, com o hollywoodesco happy-ending.

Sobre o que se diz na história, não há muito a dizer. Sim a guerra é uma tontice, mas era dispensável transformar-nos, a nós leitores, em tontos à procura de galinhas e ovos, no meio de um autêntico apocalipse em curso. Pelo meio Benioff alimenta-nos com mais do que isso — a poesia russa, o hábito russo de jogar xadrez, a fome, o canibalismo, o comunismo, o nazismo, o Cerco... — e por isso o livro vale completamente a leitura. Podia ser melhor, mas tenho também de dizer que talvez não ajude o facto de imediatamente antes de ler Benioff tivesse andado a ler Dostoiévski, o que terá colocado a fasquia um pouco alta.

maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.