5 anos em exibição, de 2008 a 2013, resultaram em 5 temporadas, 62 episódios, 48 horas contínuas de filme. Em 2017 podemos finalmente ter acesso a toda a saga de “Breaking Bad” por meio de um filme que totaliza apenas duas horas e sete minutos. Se se pode dizer que a experiência é igual? Não, é totalmente impossível, mas permitiu-me conhecer a história completa depois de ter desistido no 3ª episódio.
Dois franceses, Gaylor Morestin (designer gráfico) e Lucas Stoll (realizador), resolveram dedicar grande parte do seu tempo livre, ao longo de dois anos, para criar um filme completo a partir das 48 horas de série, que conseguisse conter a nata da narrativa e da experiência de “Breaking Bad”. É um trabalho insano, pelas múltiplas linhas narrativas presentes na série e a multiplicidade de personagens, pelas temporadas filmadas com diferentes realizadores, pela variação de recursos de produção, do guarda-roupa e da maquilhagem. Mas também porque trata-se de recriar algo a partir do que existe apenas, sem hipótese de filmar o que quer que seja para dar conta de aspetos menos claros.
No final das duas horas posso dizer que compreendi a razão do sucesso da série, compreendi o que a tornou tão relevante, consegui gizar os traços gerais dos personagens e conflitos, mas tenho perfeita noção que passei ao lado de muito daquilo que gera a verdadeira experiência de “Breaking Bad”. O filme cria a sensação de estarmos a ver detrás de alguém, captando apenas partes do que vai acontecendo, dando sentindo ao todo, mas percebendo que nos falta contexto, que cada conflito aparece e desaparece sem chegarmos a compreender a essência do seu desenvolvimento.
“Breaking Bad - O Filme” é uma obra interessante para quem viu a série e quer agora rever os momentos altos, pode servir a quem como eu nunca viu, mas saiba que tem de se comprometer em aceitar que ver o filme não é o mesmo que ver a série. Que a experiência que vai viver, não é aquela que foi pensada por quem criou a série. A experiência está adulterada, funciona, mas não oferece o pleno. Serve para conhecer a história, para compreender o fenómeno e apaziguar as ânsias de quem não quer dedicar 48 horas a conhecer o universo da série.
Para ver o filme precisam de procurar no submundo da web, já que a Sony fez o favor de mandar retirar o trabalho do Vimeo e do YouTube, apesar de catalogado como Fair Use. Por antecipar isso mesmo, fiz download do mesmo no dia em que saiu, contudo deixo um link para quem não se importar de ver online.
março 19, 2017
março 18, 2017
“The Undoing Project”, 12/2016
O novo livro de Michael Lewis, autor do enorme sucesso “Moneyball” (2003) passado a filme homónimo em 2011 com Brad Pitt, é uma montanha russa de emoções. Usando como tema de fundo a amizade entre dois cientistas que revolucionaram a psicologia, Lewis leva-nos a conhecer o duo, dando conta de toda a sua genialidade sem descurar todas as fragilidades humanas. As páginas viram-se por si porque Lewis conta como poucos sabem contar uma boa história. É verdade que embeleza, que temos de ir colocando algum sal nos heroísmos, sonhos e facilidades que tão a jeito se colocam para nos lançar nos turbilhões emocionais, mas isso faz parte da arte do storytelling. Lewis não é um historiador, não está à procura da certeza absoluta, nem da total evidência daquilo que diz, Lewis é um contador de histórias, e usa toda a sua arte para nos inebriar e interessar pelo mundo da investigação científica.
Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.
Apesar de acreditar no livro como um excelente relato de proezas científicas, preenchido por uma boa componente humana que lhe confere grande empatia, recomendaria a qualquer leitor, se quiser extrair o máximo desta leitura, a ler primeiro “Pensar, Depressa e Devagar” (2011). Este é o livro que Daniel Kahneman e Amos Tverski tinham decidido escrever juntos, mas só acabaria por acontecer já depois da morte de Tverski e depois do Nobel. É um livro de divulgação científica, que abre o conhecimento complexo à leitura de leigos. E é um livro que não tenho parado de recomendar e recomendar a todos, porque é um livro que muda a forma como vemos o mundo, desde logo como nos vemos a nós mesmos. Daí que compreendendo melhor o alcance do trabalho de Kahneman e Tverski e admirando-o, aumenta consideravelmente o prazer desta leitura. Em “The Undoing Project” Lewis dá conta das principais teorias desenvolvidas e sua relevância, mas é no livro de Kahneman que podem encontrar uma porta segura para se iniciarem.
De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.
Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.
Amos Tverski e Daniel Kahneman, nos anos 1970
Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.
De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.
Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.
março 12, 2017
Switch, mais uma revolução Nintendo
2017 viu nascer não apenas uma nova consola, mas o renascer da esperança nas consolas de videojogos. Com a evolução tecnológica — aumento de processamento, sistemas cloud e novas plataformas (telemóveis, tábletes, Steam, etc.) — as consolas pareciam estar condenadas ao definhamento. Muito se escreveu sobre o seu fim, sobre a sua irrelevância. Contudo o lançamento da Nintendo Switch pôs um ponto nesta discussão, ainda que possa ser temporário, ao tornar-se na consola que mais rapidamente vendeu em mais de 30 anos. Como é que as previsões falharam tanto?
Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.
Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.
A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.
Insisto no campo social, por contrapeso à Realidade Virtual, que tomou conta do mundo dos videojogos nos últimos dois anos. Os jogos, antes de serem digitais, foram sempre sociais. Os jogos só se tornaram individualizantes com a presença das máquinas, porque estas passaram a simular a existência de um outro, permitindo a gratificação de jogo a solo. O ato de jogar não é relevante sem a componente social. Podemos até jogar sozinhos algumas bolas ao cesto, mas a gratificação é efémera se não pudermos competir, ou pelo menos demonstrar as nossas competências a quem nos dê feedback. Neste sentido, a Nintendo Switch poderia chamar-se Nintendo Social, porque é um dos seus maiores atributos, porque recolocou a essência do jogo no centro da atividade, e finalmente porque o fez remando contra toda a maré individualizante da Realidade Virtual.
Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.
Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?
A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.
Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.
Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.
Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.
A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.
Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.
Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?
A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.
Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.
março 04, 2017
Media Lab, formalismo vs. criatividade
MIT e Media Lab são hoje duas marcas da ciência. A primeira, uma Universidade em Boston, a segunda, um grande centro de investigação dessa universidade, pioneiro nos estudos que cruzam Arte e Ciência. Sendo Joi Ito o atual diretor desse mesmo Media Lab, faz de “Whiplash: How to Survive Our Faster Future” (2016) um livro obrigatório para quem quer que trabalhe no domínio. Contudo, e tendo em conta as expetativas, tenho de dizer que ficaram muito longe de se cumprir.
Joi Ito lidera o Media Lab desde 2011 mas está longe de ser uma pessoa consensual no cargo que ocupa, desde logo porque não é doutorado, tal como não é mestre, já que nem sequer licenciado é. Isto não deve ser por si só um indicador de competência, mas ser líder de um dos laboratórios de investigação mais avançados, no qual trabalham algumas das mentes mais educadas e brilhantes do planeta dá que pensar. Mas se Ito é o atual diretor deve-o a Nicholas Negroponte, o fundador do Media Lab nos anos 1980, e o seu mais carismático líder em toda a sua história. Foi ele, pessoalmente, que tudo fez para o colocar na direção. Porquê?
As razões essenciais prendem-se com a essência filosófica do Media Lab: fazer tudo aquilo que ainda ninguém fez. E não estou a falar de ter líderes sem educação formal, mas de procurar nestes líderes, diferentes visões do mundo que sirvam o objetivo de fazer diferente. Ou seja, encarregar a direção a mais um doutorado brilhante, poderia ser bom ou mau, contudo encarregar a alguém fora do sistema, habituado a edificar-se a si mesmo e a tudo o que o rodeia, poderia à partida potenciar todo um mundo de diferença e inovação, porque traria consigo formas diferentes de estar na vida.
Tenho a dizer que concordo com Negroponte, porque concordo com esta visão de que alguém capaz de vingar e chegar ao topo sem os alicerces da educação formal, só está ao alcance de alguém muito combativo, resiliente e criativo. Aliás, Ito enquadra-se na categoria do típico aluno brilhante que nunca se encaixou na formatação escolar, entrou em três licenciaturas diferentes, mas nunca se sentiu realizado e por isso desistiu de todas. Um perfil que conhecemos, e que tem como exemplo próximo Steve Jobs.
Se estas histórias fazem as delícias de muitos de nós, que vemos nestas pessoas forças da natureza, capazes de muito daquilo que nós nem imaginar conseguimos; como todas as restantes histórias, mais comuns e banais, possuem também lados menos bons. Porque ser-se muito bom em algo não pode significar ser-se bom em tudo. E assim se Steve Jobs foi fabuloso na criação e liderança de inovação da Apple, e Joi Ito foi um grande ativista de causas da sociedade de informação que o fez chegar à liderança do Media Labs, isso não fez deles grandes cientistas. O que podemos dizer de ambos, mentes enormemente criativas, sedentas de conhecimento, imparáveis na persecução de marcar a diferença, é que funcionam melhor na condução e na transmissão de conhecimento por exemplo. Jobs nunca escreveu um livro, escreveram muitos sobre ele. Ito escreveu este, e não foi sozinho, trabalhou com Jeff Howe, especialista em escrita jornalística, mas disse muito pouco, disse muito menos do que tudo aquilo que a sua visão e liderança representam.
Ou seja, a leitura de “Whiplash”, para quem não conheça o Media Lab, ou não esteja a par da história e cultura do domínio da Interação Humano-Computador, pode até contribuir como introdução às atuais abordagens dos laboratórios que trabalham na área. Contudo, para quem trabalha na área, acaba sendo uma leitura triste, porque nada de novo se diz, quando tanto se esperava de alguém que ocupa o cargo que ocupa, e tem as capacidades que tem. Soa muito curto o que está no papel, soa distante, não colam as ideais aqui plasmadas com o verdadeiro potencial de quem as proclama. E na verdade, talvez nada disto nos deva surpreender. Ito nunca se encaixou num sistema de ensino formal, Ito nunca conseguiu compreender a razão do funcionamento de um sistema com tais características, talvez porque o modo como vê o mundo seja tão diferente que acaba por o condicionar quando este tenta fazer o caminho inverso, ou seja tornar-se o professor.
Joi Ito lidera o Media Lab desde 2011 mas está longe de ser uma pessoa consensual no cargo que ocupa, desde logo porque não é doutorado, tal como não é mestre, já que nem sequer licenciado é. Isto não deve ser por si só um indicador de competência, mas ser líder de um dos laboratórios de investigação mais avançados, no qual trabalham algumas das mentes mais educadas e brilhantes do planeta dá que pensar. Mas se Ito é o atual diretor deve-o a Nicholas Negroponte, o fundador do Media Lab nos anos 1980, e o seu mais carismático líder em toda a sua história. Foi ele, pessoalmente, que tudo fez para o colocar na direção. Porquê?
Grupos de Investigação do Media Lab
As razões essenciais prendem-se com a essência filosófica do Media Lab: fazer tudo aquilo que ainda ninguém fez. E não estou a falar de ter líderes sem educação formal, mas de procurar nestes líderes, diferentes visões do mundo que sirvam o objetivo de fazer diferente. Ou seja, encarregar a direção a mais um doutorado brilhante, poderia ser bom ou mau, contudo encarregar a alguém fora do sistema, habituado a edificar-se a si mesmo e a tudo o que o rodeia, poderia à partida potenciar todo um mundo de diferença e inovação, porque traria consigo formas diferentes de estar na vida.
Tenho a dizer que concordo com Negroponte, porque concordo com esta visão de que alguém capaz de vingar e chegar ao topo sem os alicerces da educação formal, só está ao alcance de alguém muito combativo, resiliente e criativo. Aliás, Ito enquadra-se na categoria do típico aluno brilhante que nunca se encaixou na formatação escolar, entrou em três licenciaturas diferentes, mas nunca se sentiu realizado e por isso desistiu de todas. Um perfil que conhecemos, e que tem como exemplo próximo Steve Jobs.
Se estas histórias fazem as delícias de muitos de nós, que vemos nestas pessoas forças da natureza, capazes de muito daquilo que nós nem imaginar conseguimos; como todas as restantes histórias, mais comuns e banais, possuem também lados menos bons. Porque ser-se muito bom em algo não pode significar ser-se bom em tudo. E assim se Steve Jobs foi fabuloso na criação e liderança de inovação da Apple, e Joi Ito foi um grande ativista de causas da sociedade de informação que o fez chegar à liderança do Media Labs, isso não fez deles grandes cientistas. O que podemos dizer de ambos, mentes enormemente criativas, sedentas de conhecimento, imparáveis na persecução de marcar a diferença, é que funcionam melhor na condução e na transmissão de conhecimento por exemplo. Jobs nunca escreveu um livro, escreveram muitos sobre ele. Ito escreveu este, e não foi sozinho, trabalhou com Jeff Howe, especialista em escrita jornalística, mas disse muito pouco, disse muito menos do que tudo aquilo que a sua visão e liderança representam.
Ou seja, a leitura de “Whiplash”, para quem não conheça o Media Lab, ou não esteja a par da história e cultura do domínio da Interação Humano-Computador, pode até contribuir como introdução às atuais abordagens dos laboratórios que trabalham na área. Contudo, para quem trabalha na área, acaba sendo uma leitura triste, porque nada de novo se diz, quando tanto se esperava de alguém que ocupa o cargo que ocupa, e tem as capacidades que tem. Soa muito curto o que está no papel, soa distante, não colam as ideais aqui plasmadas com o verdadeiro potencial de quem as proclama. E na verdade, talvez nada disto nos deva surpreender. Ito nunca se encaixou num sistema de ensino formal, Ito nunca conseguiu compreender a razão do funcionamento de um sistema com tais características, talvez porque o modo como vê o mundo seja tão diferente que acaba por o condicionar quando este tenta fazer o caminho inverso, ou seja tornar-se o professor.
março 03, 2017
"Passengers", a arte de questionar
"Passengers" (2016) é uma espécie de Robinson Crusoé com duas modificações narrativas essenciais que enriquecem imensamente o seu sentido: a primeira, é o facto de que estando completamente sozinhos temos à nossa volta 5000 pessoas em modo hibernação; a segunda é que o facto de estarmos no espaço, e não numa ilha contida pelo planeta Terra, impossibilita a ideia de esperança, de se poder ser avistado e salvo por outro qualquer ser. Estas variações da ideia central, de estar sozinho, permitem ao filme lançar várias questões de grande alcance e profundidade, em termos daquilo que nos define como seres humanos.
Enquadramento: Uma nave que transporta 5000 pessoas para um outro planeta, a 120 anos de distância, sofre um problema ao fim de 30 anos, e um dos sistemas de hibernação avaria acordando um passageiro, com cerca de 30 anos, a 90 anos de distância do destino. Os sistemas na nave não permitem voltar a hibernar, por isso terá de viver o resto dos seus dias naquela nave, em trânsito, sabendo que nunca chegará vivo ao destino. E é assim que começam as questões:
1 - O que faríamos se nos encontrássemos sozinhos num mundo, rico de experiências materiais e experienciais proporcionadas pelos mais avançados sistemas digitais e robóticos de entretenimento, mas sem acesso a contacto com qualquer outro ser humano?
O filme explora a questão inicialmente, podia ter feito muito mais, mas optou por não se centrar na resposta, preferindo adicionar novas camadas de questionamento.
2 - Sabendo da existência de 5000 pessoas a dormir ali ao lado, e podendo acordar uma delas, seria ético fazê-lo? Mais ainda sabendo que essa pessoa seria privada de tudo aquilo que tinha planeado fazer ao acordar, ou seja, seria privada da SUA vida para viver a MINHA vida?
O filme não dá grandes respostas. A escolha do passageiro a acordar não é alvo de grande explicação, nem intenção, desde logo porque nem sequer é tentada qualquer comparação entre os milhares de passageiros existentes. O que só por si daria para anos de ponderação, tendo em conta que na nave existem registos vídeo, com explicações das razões de cada pessoa para ter embarcado na viagem. Aliás, as diferenças de interesses, ou de classe social apresentadas não são nunca exploradas.
3 - Mudando o foco de personagem. Se descobríssemos que a vida miserável que estamos a viver foi completamente criada pela pessoa com quem estamos a dormir, e por quem nos deixámos apaixonar, o que faríamos?
Mais uma vez a resposta é frágil, embora aqui tenhamos de aceitar a enorme habilidade de Jon Spaihts, guionista de “Prometheus” (2012), na forma como desenha a resposta, ao passar o foco dos envolvidos para uma mais ampla responsabilização, ou seja, retirando a ênfase do Eu, passando-a para o Nós, Todos. Aceito que o filme tente uma lógica enfabulatória do Síndrome de Estocolmo, embora esta mudança de pesos de responsabilidade atenue imensamente essa leitura, criando uma multiplicidade de outras significações.
Dito tudo isto, o que sobra? As perguntas. Sim, são o melhor do filme, inegavelmente superiores às respostas. Mas o que pergunto a todos os críticos é o seguinte: existiria alguma forma de responder a estas questões? Aliás, este foi o problema apontado a "Prometheus", o que dá conta de um padrão na escrita de Spaiths, a sua capacidade para enquadrar e lançar grandes questões, não sendo depois capaz de responder à altura.
Porque toda a essência e beleza do argumento do filme assenta no desenho das perguntas. No modo como nos consegue colocar na situação, a tentar imaginar o que faria eu perante aquelas condições? Não é essa a essência de qualquer base filosófica, a capacidade de nos questionarmos? As respostas pertencem a cada um. E por isso no final do filme, apesar de todas aquelas respostas, eu dei a minha, sobre o que senti, nomeadamente sobre aquilo a que o filme me levou no questionamento daquilo que me define:
Enquadramento: Uma nave que transporta 5000 pessoas para um outro planeta, a 120 anos de distância, sofre um problema ao fim de 30 anos, e um dos sistemas de hibernação avaria acordando um passageiro, com cerca de 30 anos, a 90 anos de distância do destino. Os sistemas na nave não permitem voltar a hibernar, por isso terá de viver o resto dos seus dias naquela nave, em trânsito, sabendo que nunca chegará vivo ao destino. E é assim que começam as questões:
1 - O que faríamos se nos encontrássemos sozinhos num mundo, rico de experiências materiais e experienciais proporcionadas pelos mais avançados sistemas digitais e robóticos de entretenimento, mas sem acesso a contacto com qualquer outro ser humano?
O filme explora a questão inicialmente, podia ter feito muito mais, mas optou por não se centrar na resposta, preferindo adicionar novas camadas de questionamento.
2 - Sabendo da existência de 5000 pessoas a dormir ali ao lado, e podendo acordar uma delas, seria ético fazê-lo? Mais ainda sabendo que essa pessoa seria privada de tudo aquilo que tinha planeado fazer ao acordar, ou seja, seria privada da SUA vida para viver a MINHA vida?
O filme não dá grandes respostas. A escolha do passageiro a acordar não é alvo de grande explicação, nem intenção, desde logo porque nem sequer é tentada qualquer comparação entre os milhares de passageiros existentes. O que só por si daria para anos de ponderação, tendo em conta que na nave existem registos vídeo, com explicações das razões de cada pessoa para ter embarcado na viagem. Aliás, as diferenças de interesses, ou de classe social apresentadas não são nunca exploradas.
3 - Mudando o foco de personagem. Se descobríssemos que a vida miserável que estamos a viver foi completamente criada pela pessoa com quem estamos a dormir, e por quem nos deixámos apaixonar, o que faríamos?
Mais uma vez a resposta é frágil, embora aqui tenhamos de aceitar a enorme habilidade de Jon Spaihts, guionista de “Prometheus” (2012), na forma como desenha a resposta, ao passar o foco dos envolvidos para uma mais ampla responsabilização, ou seja, retirando a ênfase do Eu, passando-a para o Nós, Todos. Aceito que o filme tente uma lógica enfabulatória do Síndrome de Estocolmo, embora esta mudança de pesos de responsabilidade atenue imensamente essa leitura, criando uma multiplicidade de outras significações.
Dito tudo isto, o que sobra? As perguntas. Sim, são o melhor do filme, inegavelmente superiores às respostas. Mas o que pergunto a todos os críticos é o seguinte: existiria alguma forma de responder a estas questões? Aliás, este foi o problema apontado a "Prometheus", o que dá conta de um padrão na escrita de Spaiths, a sua capacidade para enquadrar e lançar grandes questões, não sendo depois capaz de responder à altura.
Porque toda a essência e beleza do argumento do filme assenta no desenho das perguntas. No modo como nos consegue colocar na situação, a tentar imaginar o que faria eu perante aquelas condições? Não é essa a essência de qualquer base filosófica, a capacidade de nos questionarmos? As respostas pertencem a cada um. E por isso no final do filme, apesar de todas aquelas respostas, eu dei a minha, sobre o que senti, nomeadamente sobre aquilo a que o filme me levou no questionamento daquilo que me define:
:: O contato humano. O outro. É a única coisa que conta, a única coisa sem a qual não podemos absolutamente viver. Precisamos de espelhos, precisamos de cooperar, precisamos de colaborar, precisamos de nos complementar para nos completar.
Podemos criar algoritmos, robôs, brinquedos sexuais. Podemos adicionar-lhes cognição, emoção, toque suave e quente, mas eles nunca serão humanos. Eles nunca enfrentarão a extinção da carne. Eles nunca enfrentarão dilemas morais. Eles nunca se sentirão submissos ou dominantes. Eles nunca vão sentir necessidades, desejos e urgências impossíveis de cumprir. Eles nunca estarão sozinhos.
fevereiro 28, 2017
Eu, Daniel Blake, sou um Cidadão
Brutalmente honesto. “I, Daniel Blake” (2016) é um filme sobre a dura realidade de milhões de cidadãos que vivem em 2017 num suposto mundo ocidental, moderno e rico. Não é sobre a Inglaterra, sobre a direita política britânica, não é sobre a privatização dos serviços de Segurança Social, é sobre tudo isso, mas é também sobre todo o estado de subsistência da governação europeia.
Da Inglaterra à Grécia, de Itália a Portugal, as resoluções de governação pouco têm divergido. Incapazes de dar resposta às necessidades dos cidadãos têm-se limitado a criar formas de protelar resoluções, na esperança de que os problemas se resolvam por si. É isto que “I, Daniel Blake” cabalmente demonstra, porque é isto que tem vindo a acontecer. Em Portugal até já o pudor perdemos, falando em "peste grisalha" ou na necessidade de se "começar a morrer mais cedo".
Todos sabemos que vivemos uma das eras mais difíceis em termos governativos. A velocidade de mudança é extenuante, e muitos dos nossos cidadãos não têm formas de se adaptar. Nem sequer precisamos de falar de Automação ou Inteligência Artificial, tudo está a mudar demasiado depressa e ninguém tem mapas ou guias para ajudar a navegação. Por outro lado, não é menos verdade que nunca existiu tanta desigualdade em todo o planeta, com a divisão 1%/99% que nos mais recentes dados mostraram que 8 pessoas apenas no planeta detinham o mesmo que os restantes 50%. Quando olhamos aos gastos de um fim-de-semana de um presidente americano na sua estância de férias, e colocamos lado a lado com a dura realidade de milhões de cidadãos, interrogamo-nos sobre o que está a passar-se à nossa volta.
Ken Loach pegou em Kafka e injetou-lhe vida humana. Mas Loach não ganhou a Palma de Ouro em Cannes por contar uma boa história, ganhou porque criou uma obra que se transcende como devem fazer as grandes obras de arte. Porque a arte não existe para servir egos, a arte existe para expressar ideias, existe para chamar a atenção e moldar a sociedade. A arte é aquilo que nos resta enquanto resposta civilizada ao desmoronamento da sociedade.
"I, Daniel Blake, am a citizen,
nothing more and nothing less."
Da Inglaterra à Grécia, de Itália a Portugal, as resoluções de governação pouco têm divergido. Incapazes de dar resposta às necessidades dos cidadãos têm-se limitado a criar formas de protelar resoluções, na esperança de que os problemas se resolvam por si. É isto que “I, Daniel Blake” cabalmente demonstra, porque é isto que tem vindo a acontecer. Em Portugal até já o pudor perdemos, falando em "peste grisalha" ou na necessidade de se "começar a morrer mais cedo".
Todos sabemos que vivemos uma das eras mais difíceis em termos governativos. A velocidade de mudança é extenuante, e muitos dos nossos cidadãos não têm formas de se adaptar. Nem sequer precisamos de falar de Automação ou Inteligência Artificial, tudo está a mudar demasiado depressa e ninguém tem mapas ou guias para ajudar a navegação. Por outro lado, não é menos verdade que nunca existiu tanta desigualdade em todo o planeta, com a divisão 1%/99% que nos mais recentes dados mostraram que 8 pessoas apenas no planeta detinham o mesmo que os restantes 50%. Quando olhamos aos gastos de um fim-de-semana de um presidente americano na sua estância de férias, e colocamos lado a lado com a dura realidade de milhões de cidadãos, interrogamo-nos sobre o que está a passar-se à nossa volta.
Ken Loach pegou em Kafka e injetou-lhe vida humana. Mas Loach não ganhou a Palma de Ouro em Cannes por contar uma boa história, ganhou porque criou uma obra que se transcende como devem fazer as grandes obras de arte. Porque a arte não existe para servir egos, a arte existe para expressar ideias, existe para chamar a atenção e moldar a sociedade. A arte é aquilo que nos resta enquanto resposta civilizada ao desmoronamento da sociedade.
"I, Daniel Blake, am a citizen,
nothing more and nothing less."
fevereiro 27, 2017
Aprender com videojogos: "Flow" e "Scaffolding"
Está finalmente acessível o artigo que andei a desenvolver com as colegas Ana Amélia Carvalho e Inês Araújo, a propósito das motivações dos estudantes para jogar videojogos. O artigo, "Elementos do design de videojogos que fomentam o interesse dos jogadores", foi publicado no nº48 da revista Educação, Sociedade & Culturas editada pelo Centro de Investigação e Intervenção Educativas (UP) e a Editora Afrontamento.
O artigo foca-se na análise dos dados dos inquéritos realizados a estudantes do 2º ciclo ao ensino superior, mas o que quero destacar aqui é o quadro de análise que se procurou desenhar para compreender como funcionam os jogadores e os jogos. Ou seja, é importante saber o que nos dizem os jogadores, analisar quais os elementos dos videojogos que os estudantes dão mais atenção, mas para o fazer precisamos de compreender como é que está desenhado um jogo, e como é que os jogadores o encaram.
Assim, partiu-se aqui da ideia de que os seres-humanos são ávidos buscadores de padrões, de nova informação. Deste modo desmontámos o modo como acontece esta procura e como se trabalha para a mesma. Desde as lógicas humanas de curiosidade e "flow" aos modelos de tutoria e "scaffolding" propostos por Bruner. Sobre esta base trabalhámos depois toda uma modelação da "teoria da autodeterminação", ou seja as lógicas motivacionais definidas nas últimas décadas por Deci e Ryan. Com o quadro montado, começámos então a desconstrução das respostas dadas pelos estudantes. Para as conhecer, convido-vos a ler o artigo online.
O artigo foca-se na análise dos dados dos inquéritos realizados a estudantes do 2º ciclo ao ensino superior, mas o que quero destacar aqui é o quadro de análise que se procurou desenhar para compreender como funcionam os jogadores e os jogos. Ou seja, é importante saber o que nos dizem os jogadores, analisar quais os elementos dos videojogos que os estudantes dão mais atenção, mas para o fazer precisamos de compreender como é que está desenhado um jogo, e como é que os jogadores o encaram.
Assim, partiu-se aqui da ideia de que os seres-humanos são ávidos buscadores de padrões, de nova informação. Deste modo desmontámos o modo como acontece esta procura e como se trabalha para a mesma. Desde as lógicas humanas de curiosidade e "flow" aos modelos de tutoria e "scaffolding" propostos por Bruner. Sobre esta base trabalhámos depois toda uma modelação da "teoria da autodeterminação", ou seja as lógicas motivacionais definidas nas últimas décadas por Deci e Ryan. Com o quadro montado, começámos então a desconstrução das respostas dadas pelos estudantes. Para as conhecer, convido-vos a ler o artigo online.
fevereiro 25, 2017
Dúvida ou Negação
Choque. É o que sentimos quando pela primeira vez nos vemos confrontados com negacionistas. Porque se passámos toda uma vida a acreditar em algo, não é fácil convencermo-nos que esse algo poderá ter sempre sido uma falácia. Kahneman fala de viés cognitivo, algo que nos faz tender para acreditar naquilo em que sempre acreditámos, mas fala também de um problema de autoridade. Se todas as autoridades dizem algo da mesma forma, como é que podemos acreditar em algo distinto? E então como devemos proceder? Juntar-nos à turba e manter a ideia que todos defendem, ou fazer o quê? O filme “Denial” (2016) mostra um possível caminho.
O negacionismo do Holocausto tem algumas décadas começou por volta dos anos 1970 e foi-se afirmando com o tempo, e nomeadamente com o esquecimento. Em 1985, Claude Lanzmann estreou um dos filmes mais relevantes da história do cinema, “Shoah” com um objetivo único, responder aos negacionistas. Não deixou pedra sobre pedra, ouviu todas as vozes, em todos lados, e respondeu cabalmente (ao longo de mais de 9 horas de filme) a quem quer que pretendesse continuar a negar. Contudo, como fica também demonstrado no final de “Denial”, um negacionista nunca se verga, uma rápida pesquisa no Google retorna vários textos de análise de "Shoah" denegando as suas demonstrações.
Em 1994 um desses negacionistas do Holocausto, o inglês David Irving, resolveu processar a professora americana de História, Deborah Lipstadt, pelo que tinha dito no seu livro, "Denying the Holocaust" (1993), a propósito das suas negações. A Penguin e a autora, não aceitaram retirar as declarações do livro, e foram para tribunal defender o livro. Para o efeito, foram confrontados com a obrigatoriedade de demonstrar que os trabalhos de negação do holocausto apresentados por Irving mais não eram que mentiras.
Precisamos de treinar a sociedade para questionar a informação que lhe chega, venha por que fonte venha. Precisamos de educar as crianças para questionarem as imagens que lhes entram em casa pela televisão ou internet. Uma sociedade que questiona é uma sociedade mais preparada para o desconhecido, é uma sociedade mais consciente. Do nosso lado, enquanto investigadores, somos treinados para questionar até às últimas consequências; para desde o início assumir que a verdade simplesmente não existe; que tudo o que hoje parece ser, amanhã pode já não o ser. Mas, quando em nada se acredita, como é que construímos a realidade que nos rodeia?
É preciso estabelecer diferenças, duvidar não é o mesmo que negar. Duvidar é o que todos devemos fazer, cientistas, crianças ou simples cidadãos. Duvidar é manter a mente aberta para a possibilidade de rebate daquilo que nos foi apresentado, mas implica aceitar enquanto não existir prova em contrário. Negar é distinto, porque não aceita a dúvida, defende a certeza. Por isso a negação vai contra si própria, já que ao apresentar-se sob a capa de dúvida da verdade da maioria, afirmando-se como alternativa factual, exige a crença.
Os cientistas têm sido atacados por defenderem esta postura de questionamento inequívoco. Porque ao fazê-lo instigam a sociedade a duvidar de tudo, principalmente dos especialistas, da imprensa e da ciência. Mas adotar uma posição de questionamento não pode de forma alguma ser comparado a uma postura de negação. O que falta é literacia. É verdade que não ajuda termos académicos nas televisões a quebrar estas linhas, como ainda recentemente pudemos ver na televisão portuguesa, uma académica nacional arrogar-se, a partir do preceito de dúvida, na negação das alterações climáticas em curso. Menos ajuda ainda quando no momento atual, temos um dos países mais influentes na cultura ocidental, a ser governado por pessoas que defendem a existência de “factos alternativos” e vivem num mundo de negação de tudo o que não lhes interessa.
O negacionismo do Holocausto tem algumas décadas começou por volta dos anos 1970 e foi-se afirmando com o tempo, e nomeadamente com o esquecimento. Em 1985, Claude Lanzmann estreou um dos filmes mais relevantes da história do cinema, “Shoah” com um objetivo único, responder aos negacionistas. Não deixou pedra sobre pedra, ouviu todas as vozes, em todos lados, e respondeu cabalmente (ao longo de mais de 9 horas de filme) a quem quer que pretendesse continuar a negar. Contudo, como fica também demonstrado no final de “Denial”, um negacionista nunca se verga, uma rápida pesquisa no Google retorna vários textos de análise de "Shoah" denegando as suas demonstrações.
Em 1994 um desses negacionistas do Holocausto, o inglês David Irving, resolveu processar a professora americana de História, Deborah Lipstadt, pelo que tinha dito no seu livro, "Denying the Holocaust" (1993), a propósito das suas negações. A Penguin e a autora, não aceitaram retirar as declarações do livro, e foram para tribunal defender o livro. Para o efeito, foram confrontados com a obrigatoriedade de demonstrar que os trabalhos de negação do holocausto apresentados por Irving mais não eram que mentiras.
Precisamos de treinar a sociedade para questionar a informação que lhe chega, venha por que fonte venha. Precisamos de educar as crianças para questionarem as imagens que lhes entram em casa pela televisão ou internet. Uma sociedade que questiona é uma sociedade mais preparada para o desconhecido, é uma sociedade mais consciente. Do nosso lado, enquanto investigadores, somos treinados para questionar até às últimas consequências; para desde o início assumir que a verdade simplesmente não existe; que tudo o que hoje parece ser, amanhã pode já não o ser. Mas, quando em nada se acredita, como é que construímos a realidade que nos rodeia?
É preciso estabelecer diferenças, duvidar não é o mesmo que negar. Duvidar é o que todos devemos fazer, cientistas, crianças ou simples cidadãos. Duvidar é manter a mente aberta para a possibilidade de rebate daquilo que nos foi apresentado, mas implica aceitar enquanto não existir prova em contrário. Negar é distinto, porque não aceita a dúvida, defende a certeza. Por isso a negação vai contra si própria, já que ao apresentar-se sob a capa de dúvida da verdade da maioria, afirmando-se como alternativa factual, exige a crença.
Os cientistas têm sido atacados por defenderem esta postura de questionamento inequívoco. Porque ao fazê-lo instigam a sociedade a duvidar de tudo, principalmente dos especialistas, da imprensa e da ciência. Mas adotar uma posição de questionamento não pode de forma alguma ser comparado a uma postura de negação. O que falta é literacia. É verdade que não ajuda termos académicos nas televisões a quebrar estas linhas, como ainda recentemente pudemos ver na televisão portuguesa, uma académica nacional arrogar-se, a partir do preceito de dúvida, na negação das alterações climáticas em curso. Menos ajuda ainda quando no momento atual, temos um dos países mais influentes na cultura ocidental, a ser governado por pessoas que defendem a existência de “factos alternativos” e vivem num mundo de negação de tudo o que não lhes interessa.
fevereiro 22, 2017
“Possessão”, um thriller poético
Belíssimo “tour de force” literário. “Possessão” é um romance com múltiplas camadas de significação e enquanto tal merece uma análise cuidada por camada. Do meu interesse em literatura, e do que me é mais facilmente acessível, defino três que me surgem de modo evidente — romance mistério, virtuosismo, e sátira académica — mas é claro que um trabalho mais profundo de análise e interpretação literária encontrará outras camadas de relevo. Daqui percebe-se que não estamos perante um simples romance, mas antes uma obra de grande labor. Aliás, não é por acaso a sua premiação com o Man Booker em 1990, mas diga-se que também não é por acaso o reduzido número de leitores, a julgar pelo GoodReads, e pelo facto do livro ter saído em 2008 em Portugal e eu ter adquirido em 2016 ainda uma cópia da sua primeira edição.
A.S. Byatt escreveu um romance académico a partir do seu conhecimento literário mas também com base em conhecimento experiencial da vida académica. Passou mais de metade da sua vida anterior à escrita de “Possessão” a leccionar Literatura Inglesa em diferentes universidades britânicas. O reconhecimento da qualidade do seu labor, pela academia, veio posteriormente à publicação de “Possessão” na forma de mais de uma dezena de Doutoramentos Honorários.
Romance mistério
A história acerca-se de dois investigadores em literatura, Roland Mitchell e Maud Bailey, cada um especialista no estudo do seu poeta vitoriano — Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte — que por meio da investigação de diferentes documentos vão descobrir algo completamente novo. Enquanto poetas mortos há muito, acreditava-se já tudo saber sobre os mesmos, quando a ponta do véu de uma potencial conexão entre ambos se levanta, não apenas a curiosidade por saber mais se apresenta, como muitas das teorias até aí tidas sobre cada um destes poetas se fragilizam, pondo em questão muito do conhecimento existente.
Acredito que Byatt, enquanto especialista em literatura, se tenha questionado sobre a estrutura a adotar para a escrita de uma tal premissa. Muito provavelmente percebendo a audiência limitada de uma história assente em minúcias de investigadores académicos, terá decidido adotar uma estrutura forte em termos de enredo, baseada no mistério e suspense, capaz de segurar o interesse do leitor geral. Para isto recriou a base clássica do romance impossível, condimentou-o com todos os ingredientes que nos fazem salivar e agitou tudo na nossa frente, obrigando-nos a ir atrás, desejosos por saber mais. Como se não bastasse, não se limitou a um foco romanesco, colocou dois poetas no século XIX, e dois investigadores no século XX, saltitando entre uns e outros, para que nunca nos faltasse ímpeto. E consegue-o, apesar do tema delimitado, apesar de uma abordagem estética pós-moderna, nunca o interesse por continuar a ler desaparece, tendo mesmo fases de alguma agudez em que não conseguimos pousar o livro.
Virtuosismo
Falei acima de estrutura porque é nela que Byatt exibe as suas maiores qualidades. Servindo-se do clássico discurso de mistério como dorso de suporte ao todo, são adotados múltiplos outros formatos discursivos para nos levar até ao cerne do universo criado: poético, confessional, intimista, académico. O texto em prosa serve de cola geral, mas o mesmo é continuamente ao longo de todo o livro, entrecortado por: textos de poesia; textos de cartas íntimas; textos não publicados de diários; textos de jornais; textos de artigos científicos. Por sua vez o próprio narrador vai saltitando no tempo (séculos XIX e XX), no espaço, entre personagens, e entre pontos de vista. É verdadeiramente virtuosa a estrutura, a complexidade que se entrosa para criar uma teia, que de tão perfeitamente tecida é a todo o momento completamente compreensível e digestível.
Mas não é só na estrutura que Byatt surpreende, todos estes textos, todas estas vozes, todos os pontos de vista, são criados por si. Byatt pretende criar a ideia de textos pré-existentes, que vão sendo encontrados, à semelhança da tradicional narrativa detetivesca, mas aqui esses textos não são apenas referenciados, ou apropriados pela prosa, nem são tão pouco citados, retirados de outras obras. Para chegar àquilo em que resulta o todo desta obra, Byatt teve de criar universos próprios e estéticas para dois poetas vitorianos, os vários textos de jornal vitorianos, diários intimistas por múltiplas vozes, cartas e respostas de cartas, cada uma dotada de identidade própria. Temos múltiplas histórias dentro de múltiplas histórias, mas todas trabalham para uma mesma e única grande história, sendo este mesmo trabalho de união do todo, seguindo a abordagem de coerência causal, a “unidade de ação” de Aristoteles, que faz com que o final do livro seja tão gratificante, impactante, verdadeiramente catártico.
Sátira académica
Se os dois primeiros níveis são de grande qualidade, é aqui que me sinto mais em casa, e desse modo quero dividir este ponto em dois subpontos: a crítica das rotinas e rituais dos académicos tão próximas da minha realidade diária; e a crítica aos modelos de fazer ciência.
Relativamente ao mundo humano que habita a academia temos uma crítica certeira, começando pelo protagonista que apesar de fazer um bom trabalho, e ter excelentes capacidades, não consegue atingir uma posição estável no seio da universidade por força da sua inabilidade social. Temos assim que as Universidades apesar de propalarem uma cultura de mérito, o chico-espertismo consegue ainda vingar. Por outro lado, a guerra entre os dois professores seniores, britânico e americano, especialistas no poeta central do livro, é também muito interessante pelo modo como espelha a diferença entre as academias americana e a europeia. Do lado Europeu, o interesse cultural, o interesse de uma nação, povo e acima de tudo do bem comunitário. Do lado americano, o interesse económico e individualista. A força do dinheiro que tudo pode, tudo consegue.
O livro é de 1990 e reporta uma visão ainda distante do que se vive hoje, porque se nesse altura se olhava para os EUA com desdém e crítica, esse olhar deu uma volta de 180º, e hoje toda a academia europeia olha para a academia americana em busca de modelos a copiar e imitar. Hoje os gestores e políticos que regem as universidades europeias nada mais anseiam do que o poder financeiro. Daí, que o conhecimento tenha sofrido tantos revés, e muito daquilo que hoje se faz em termos de investigação acaba por vezes sendo bastante questionável.
Mas a crítica à academia é cíclica, ou melhor dizendo contínua, nunca estamos bem, e ainda bem. E por isso em “Possessão” a crítica de Byatt, para além dos pontos mencionados, foca-se num problema iniciado nos anos 1970, nomeadamente ao nível de domínios das Humanidades, com toda a componente de áreas iniciadas por “Estudos”: de cinema, de literatura, feministas, culturais. Marcados pela ausência de um domínio de psicologia, ainda subdesenvolvido, dominado por uma psicanálise que de científico tinha pouco, e de esotérico tinha muito, vão começar a fazer surgir “verdades” assentes em teorizações fantásticas de Freud, Lacan, entre outros. Como consequência, a academia começa a perder credibilidade, mas o pior é que em vez de recuar, acelera e atira-se para o precipício por meio daquilo que chamaria mais tarde de pós-modernismo, que nos trataria até ao momento atual, o da pós-verdade.
A crítica do livro é mais dirigida aos Estudos Feministas, mas é um claro ataque aos seus métodos, que não eram seu exclusivo, e está fortemente presente no cerne da obra, como choque mesmo, podendo passar despercebida a quem está distante destes assuntos. Assim, ao longo de toda a jornada encetada por Maud e Roland, existe a todo o momento uma preocupação com a verdade na forma de prova, com a demonstração efetiva do que teria acontecido no século anterior entre aqueles dois poetas, uma tentativa de buscar evidências que tornem claro o que se pretende afirmar de novo. E é aqui que surge a graça, o riso, já que muito do conhecimento detido sobre Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte é de origem interpretativa, pejado de simbolismos e vieses de cada investigador, sendo agora postos em cheque e mesmo destronados pelo novo conhecimento. Mais se poderia ainda dizer, nomeadamente sobre a crença e descrença no espiritismo que surge a meio do livro, com Ash e LaMotte colocados de lados distintos.
Por fim, não quero deixar de destacar uma última camada, que não analiso porque daria todo um texto próprio, e que o livro nos oferece a partir do seu título. A “Possessão” surge em múltiplas formas ao longo de todo o livro, e pode ser lida em conexão com qualquer um dos pontos acima discutidos, contudo para mim o foco esteve ligado à ideia de autenticidade. Desde o início, aquilo que conduz Roland a, na biblioteca, ficar na posse dos dois esboços de cartas, é o modo como ele define o que sente, a sensação de tocar num papel tocado e escrito pelo próprio Ash. A posse é depois definida de modos diferentes, consoante o personagem, mas existe um fascínio com essa autenticidade, que por sua vez se liga com a ideia de prova e existência. Este tema daria assim para discutir a nossa efemeridade e por outro lado a extensibilidade da mesma em remanescentes externos de garante de perenidade.
A.S. Byatt escreveu um romance académico a partir do seu conhecimento literário mas também com base em conhecimento experiencial da vida académica. Passou mais de metade da sua vida anterior à escrita de “Possessão” a leccionar Literatura Inglesa em diferentes universidades britânicas. O reconhecimento da qualidade do seu labor, pela academia, veio posteriormente à publicação de “Possessão” na forma de mais de uma dezena de Doutoramentos Honorários.
Romance mistério
A história acerca-se de dois investigadores em literatura, Roland Mitchell e Maud Bailey, cada um especialista no estudo do seu poeta vitoriano — Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte — que por meio da investigação de diferentes documentos vão descobrir algo completamente novo. Enquanto poetas mortos há muito, acreditava-se já tudo saber sobre os mesmos, quando a ponta do véu de uma potencial conexão entre ambos se levanta, não apenas a curiosidade por saber mais se apresenta, como muitas das teorias até aí tidas sobre cada um destes poetas se fragilizam, pondo em questão muito do conhecimento existente.
Paisagem de Yorkshire, onde acontecem algumas sequências centrais do livro.
Acredito que Byatt, enquanto especialista em literatura, se tenha questionado sobre a estrutura a adotar para a escrita de uma tal premissa. Muito provavelmente percebendo a audiência limitada de uma história assente em minúcias de investigadores académicos, terá decidido adotar uma estrutura forte em termos de enredo, baseada no mistério e suspense, capaz de segurar o interesse do leitor geral. Para isto recriou a base clássica do romance impossível, condimentou-o com todos os ingredientes que nos fazem salivar e agitou tudo na nossa frente, obrigando-nos a ir atrás, desejosos por saber mais. Como se não bastasse, não se limitou a um foco romanesco, colocou dois poetas no século XIX, e dois investigadores no século XX, saltitando entre uns e outros, para que nunca nos faltasse ímpeto. E consegue-o, apesar do tema delimitado, apesar de uma abordagem estética pós-moderna, nunca o interesse por continuar a ler desaparece, tendo mesmo fases de alguma agudez em que não conseguimos pousar o livro.
Virtuosismo
Falei acima de estrutura porque é nela que Byatt exibe as suas maiores qualidades. Servindo-se do clássico discurso de mistério como dorso de suporte ao todo, são adotados múltiplos outros formatos discursivos para nos levar até ao cerne do universo criado: poético, confessional, intimista, académico. O texto em prosa serve de cola geral, mas o mesmo é continuamente ao longo de todo o livro, entrecortado por: textos de poesia; textos de cartas íntimas; textos não publicados de diários; textos de jornais; textos de artigos científicos. Por sua vez o próprio narrador vai saltitando no tempo (séculos XIX e XX), no espaço, entre personagens, e entre pontos de vista. É verdadeiramente virtuosa a estrutura, a complexidade que se entrosa para criar uma teia, que de tão perfeitamente tecida é a todo o momento completamente compreensível e digestível.
Mas não é só na estrutura que Byatt surpreende, todos estes textos, todas estas vozes, todos os pontos de vista, são criados por si. Byatt pretende criar a ideia de textos pré-existentes, que vão sendo encontrados, à semelhança da tradicional narrativa detetivesca, mas aqui esses textos não são apenas referenciados, ou apropriados pela prosa, nem são tão pouco citados, retirados de outras obras. Para chegar àquilo em que resulta o todo desta obra, Byatt teve de criar universos próprios e estéticas para dois poetas vitorianos, os vários textos de jornal vitorianos, diários intimistas por múltiplas vozes, cartas e respostas de cartas, cada uma dotada de identidade própria. Temos múltiplas histórias dentro de múltiplas histórias, mas todas trabalham para uma mesma e única grande história, sendo este mesmo trabalho de união do todo, seguindo a abordagem de coerência causal, a “unidade de ação” de Aristoteles, que faz com que o final do livro seja tão gratificante, impactante, verdadeiramente catártico.
Sátira académica
Se os dois primeiros níveis são de grande qualidade, é aqui que me sinto mais em casa, e desse modo quero dividir este ponto em dois subpontos: a crítica das rotinas e rituais dos académicos tão próximas da minha realidade diária; e a crítica aos modelos de fazer ciência.
Relativamente ao mundo humano que habita a academia temos uma crítica certeira, começando pelo protagonista que apesar de fazer um bom trabalho, e ter excelentes capacidades, não consegue atingir uma posição estável no seio da universidade por força da sua inabilidade social. Temos assim que as Universidades apesar de propalarem uma cultura de mérito, o chico-espertismo consegue ainda vingar. Por outro lado, a guerra entre os dois professores seniores, britânico e americano, especialistas no poeta central do livro, é também muito interessante pelo modo como espelha a diferença entre as academias americana e a europeia. Do lado Europeu, o interesse cultural, o interesse de uma nação, povo e acima de tudo do bem comunitário. Do lado americano, o interesse económico e individualista. A força do dinheiro que tudo pode, tudo consegue.
University of London
O livro é de 1990 e reporta uma visão ainda distante do que se vive hoje, porque se nesse altura se olhava para os EUA com desdém e crítica, esse olhar deu uma volta de 180º, e hoje toda a academia europeia olha para a academia americana em busca de modelos a copiar e imitar. Hoje os gestores e políticos que regem as universidades europeias nada mais anseiam do que o poder financeiro. Daí, que o conhecimento tenha sofrido tantos revés, e muito daquilo que hoje se faz em termos de investigação acaba por vezes sendo bastante questionável.
Mas a crítica à academia é cíclica, ou melhor dizendo contínua, nunca estamos bem, e ainda bem. E por isso em “Possessão” a crítica de Byatt, para além dos pontos mencionados, foca-se num problema iniciado nos anos 1970, nomeadamente ao nível de domínios das Humanidades, com toda a componente de áreas iniciadas por “Estudos”: de cinema, de literatura, feministas, culturais. Marcados pela ausência de um domínio de psicologia, ainda subdesenvolvido, dominado por uma psicanálise que de científico tinha pouco, e de esotérico tinha muito, vão começar a fazer surgir “verdades” assentes em teorizações fantásticas de Freud, Lacan, entre outros. Como consequência, a academia começa a perder credibilidade, mas o pior é que em vez de recuar, acelera e atira-se para o precipício por meio daquilo que chamaria mais tarde de pós-modernismo, que nos trataria até ao momento atual, o da pós-verdade.
A crítica do livro é mais dirigida aos Estudos Feministas, mas é um claro ataque aos seus métodos, que não eram seu exclusivo, e está fortemente presente no cerne da obra, como choque mesmo, podendo passar despercebida a quem está distante destes assuntos. Assim, ao longo de toda a jornada encetada por Maud e Roland, existe a todo o momento uma preocupação com a verdade na forma de prova, com a demonstração efetiva do que teria acontecido no século anterior entre aqueles dois poetas, uma tentativa de buscar evidências que tornem claro o que se pretende afirmar de novo. E é aqui que surge a graça, o riso, já que muito do conhecimento detido sobre Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte é de origem interpretativa, pejado de simbolismos e vieses de cada investigador, sendo agora postos em cheque e mesmo destronados pelo novo conhecimento. Mais se poderia ainda dizer, nomeadamente sobre a crença e descrença no espiritismo que surge a meio do livro, com Ash e LaMotte colocados de lados distintos.
Por fim, não quero deixar de destacar uma última camada, que não analiso porque daria todo um texto próprio, e que o livro nos oferece a partir do seu título. A “Possessão” surge em múltiplas formas ao longo de todo o livro, e pode ser lida em conexão com qualquer um dos pontos acima discutidos, contudo para mim o foco esteve ligado à ideia de autenticidade. Desde o início, aquilo que conduz Roland a, na biblioteca, ficar na posse dos dois esboços de cartas, é o modo como ele define o que sente, a sensação de tocar num papel tocado e escrito pelo próprio Ash. A posse é depois definida de modos diferentes, consoante o personagem, mas existe um fascínio com essa autenticidade, que por sua vez se liga com a ideia de prova e existência. Este tema daria assim para discutir a nossa efemeridade e por outro lado a extensibilidade da mesma em remanescentes externos de garante de perenidade.
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