fevereiro 11, 2017

Anime: "Erased" (2016)

Tenho seguido muito pouco a anime dos últimos anos, apesar de sempre me ter chamado a atenção pela forma adulta como são tratados os temas, ao contrário da maior parte das séries de animação ocidentais. “Erased” veio muito recomendada pelo seu storytelling, e apresentava a mais valia de trabalhar um dos meus temas preferidos, as viagens no tempo. São 12 episódios de 20m cada, que valem todo o tempo investido.



A narrativa de “Erased” foi desenhada segundo a tradicional estrutura de mistério. A personagem principal entra em choque com uma tragédia sucedida na sua vida, e acaba por sofrer aquilo, que a série designa por efeito de “revival”, que o faz regressar no tempo. Não percebendo porque regressou, iniciam-se as interrogações, com várias camadas narrativas a surgirem, enquanto nós procuramos respostas. Pelo meio, a viagem no tempo perde relevância para se focar completamente nos personagens, e talvez essa tenha sido a aposta mais acertada da série.
"The town where he alone is not there."
A caracterização é conseguida por meio de um leque de dramas que convidam a um cada vez maior aprofundamento de cada personagem. Temos desde relações professor-aluno, a rapto de crianças, maus-tratos familiares, e assassinos em série que dão vida e dinâmica a um enredo que se vai dirigindo para dois grandes motivos: o isolamento social e a amizade. Uma série que poderia ser apenas um entretém, brincar com a narrativa para nos manter grudados no ecrã, mas que é mais do que isso, procura ser mais, tratando problemas contemporâneos, assumindo posicionamentos e questionando-os.


Tudo isto é envolvido por uma belíssima plástica, tanto visual como sonora. Os ambientes são profundamente atmosféricos, o que permite densificar a história. É todo um trabalho de cor, arquitectura e música, que nos transporta para o espaço e nos faz esquecer a nossa realidade. Em termos de animação não temos nada de excepcional, é uma série de televisão, e por isso recorre aos artifícios típicos da anime para poupar frames, mas a ilustração, montagem e música acabam compensando.


Claro que nem tudo é brilhante, mas não podemos esquecer que se trata apenas de uma pequena anime. Para além de nunca se perceber como surge a capacidade de viajar no tempo, o maior problema surge no arco narrativo de Kayo que assume um papel demasiado forte, desequilibrando o desenho narrativo geral, roubando protagonismo ao arco principal de Fujinuma. Assim, terminado o arco de Kayo a série parece esvair-se de propósito para continuar, acabando por passar a ideia de que deveria terminar ali. Contudo, para os espectadores que mantêm o interesse vivo, são recompensados pouco mais à frente, quando tudo se resume, o equilíbrio se repõe, e o todo ganha um sentido não só mais coeso mas também mais intenso. Podemos dizer que a série merecia mais, é verdade, mas se colocarmos a fasquia da exigência no nível correto, saberemos apreciar e aproveitar o melhor que esta tem para nos oferecer.

fevereiro 06, 2017

Publicidade cinematográfica e ideológica contra Trump

As últimas semanas foram muito férteis em anúncios com temas de fundo sobre união, cooperação, colaboração (Coca-Cola, Corona, Budweiser) tudo contra os instintos individualistas, xenófobos e racistas promovidos por Trump. Mas nada supera a campanha criada pela 84 Lumber, uma empresa de construção civil americana familiar. O filme é tão forte, ideologicamente, que a Fox e a NFL proibiram o anúncio. Em resposta, a empresa dividiu o anúncio em duas partes, colocando na televisão apenas a primeira parte, introdutória, e a segunda, de desenvolvimento e clímax, passou para o online. Resultado, o site da empresa não consegue ser acessado com a quantidade de pessoas que quer ver o filme, e quer saber mais sobre a empresa.



Em termos narrativos, nada podia ter sido melhor feito. O filme introdutório que surge nos ecrãs de televisão é excelente no modo como apresenta ao que vem, e cria uma necessidade atroz no espetador de querer saber o que vai acontecer àqueles personagens. O facto de o anúncio ter sido banido ajuda ainda mais à causa, criando a vontade de saber o porquê, conhecer e estar a par. Nada é mais apetecível que o proibido ou banido.

Primeira parte. Anúncio passado na televisão durante o Super Bowl 2017.

E tudo seria apenas isso, uma boa campanha de teasing, recorrendo ao melhor do suspense e mistério para captar a atenção, mas não é apenas isso. Aquilo que a 84 Lumber faz, o fechamento da narrativa, o clímax, e tudo aquilo que ele representa politicamente, é simplesmente brutal. É uma chapada na cara de Trump, Bannon e toda a ala da extrema direita republicana.

Segunda parte. Anúncio apenas disponível online.


Fica também o link para o anúncio completo "The Entire Journey".

fevereiro 05, 2017

Score de "Arrival": Jóhannsson ou Richter?

Acabei de ver "Arrival", é um belo filme, dentro da linha que Villeneuve nos tem habituado, embora não me tenha impactado. A história sendo interessante não traz nada de muito novo com os artifícios da não-lineariadade passado-futuro, discordando do modo como inicia os flashbacks, embora concordando com a premissa base da história. Contudo, não é para falar da história nem da cinematografia que trouxe aqui o filme, mas antes para falar da banda sonora e score, ou melhor, para apresentar uma questão que me deixou intrigado.


O score de "Arrival" é brilhante tendo sido criado pelo não menos brilhante Jóhann Jóhannsson, e por isso mesmo teve direito a ser editado pela muito selecta Deutsche Grammophon. Contudo a sequência de início e fecho do filme, em que o twist se dá, e ligamos o círculo narrativo, é trabalhado com uma música, "On the Nature of Daylight",  que não é de Jóhannsson, mas antes de um outro, também brilhante, compositor Max Richter.

Isto não seria surpreendente se o score tivesse sido feito por ambos os compositores, contudo como podemos ver na capa do álbum, surge apenas o nome de Jóhannsson. E se isso me incomoda, apesar de saber distinguir o Score da Banda Sonora, mais ainda me incomoda o facto da música de Richter escolhida, ter sido utilizada por várias vezes em diferentes filmes, entre os quais o "Shutter Island" (2010) de Martin Scorcese e "Stranger than Fiction" (2006) de Marc Forster, e estar editada no seu álbum "The Blue Notebooks" de 2004.

É o próprio Richter que diz que não se sentiu muito convencido em deixar usar a música em "Arrival", uma vez que já tinha sido usada em vários outros filmes, mas como ele diz também, foi o próprio Villeneuve que insistiu para o seu uso. É recorrente o uso de música de câmara de grandes autores clássicos no cinema, assim como música pop ou rock. Contudo o que questiono é, qual a razão disto quando se tem a trabalhar para o filme um compositor brilhante como Jóhannsson? E porquê ir buscar uma música que já está gasta, que os espectadores mais atentos associam a outras memórias, e memórias de outros filmes?

Max Richter, "On the Nature of Daylight", (2004)

Não posso deixar de demonstrar a minha surpresa e decepção. O final do filme perde, porque o evento que deveria ser completamente original, próprio e pertença única daquele momento cinematográfico marcante, mistura-se com todo um outro conjunto de memórias, perdendo muito do seu impacto estético, impedindo a criação de uma memória nova totalmente única.

"O Diário de Anne Frank" (1947)

Um diário, um testemunho. O relato de uma vida durante três anos (1942-1944) cruciais na história da Europa, e cruciais na história da autora (13-15) que vê a sua adolescência passar de criança a adulta. Um livro exemplo da história e estética da literatura, que demonstra a relevância do contexto da realidade e da autora para uma correta interpretação da mesma. Sendo um diário, estando conectado a alguém em particular, o momento histórico de que dá conta acaba fazendo deste também um diário de todos nós.


Teria sido apenas mais um diário, ainda que bem escrito, não fosse o seu enquadramento histórico, ao que se junta com enorme intensidade narrativa o desfecho dos eventos e da vida da autora. Não é possível ler o diário alheado desses factos, fazê-lo é até uma falta de respeito para com quem o escreveu. Por isso mesmo são tão descabidas as críticas que se podem ler ao livro — “não é suficientemente envolvente em termos narrativos” ou “não tem uma boa edição”. O “Diário” não é uma obra desenhada para provocar emoção, é a expressão interior de alguém que viveu sob determinadas condições. É um relatar de experiências, é um comunicar terapêutico de alguém num momento particular da sua vida e da nossa história. Desligar o livro do seu contexto é matá-lo.

Começando pela data em que foi escrito. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, com os judeus perseguidos, não apenas para serem expulsos ou colocados num qualquer gueto, mas para serem exterminados. As pessoas que se escondiam, não o faziam por não quererem abandonar as suas casas, faziam-no porque o que os esperava eram as câmaras de gás, as valas comuns e os crematórios (ver “Shoah”, 1985). Não existia alternativa à auto-exclusão do mundo, à clausura forçada. Para agravar o problema, todos os que deles se aproximavam corriam sérios riscos de serem também executados. Se este contexto é ideal em termos narrativos, pelo perigo e mistério, ele deve servir para mais do que entreter o nosso tempo, ele deve servir a reflexão sobre as vidas vividas nesse tempo da nossa história.

Passando à autora, sua idade e contexto familiar. Temos alguém muito jovem, acabada de entrar na adolescência, feliz por ter tido a sua primeira menstruação, muito consciente de si e do mundo que a rodeia. Para tal serviu claramente uma família de classe média-alta, mas acima de tudo um pai e uma mãe muito conscientes da educação dos seus filhos. Uns pais capazes de falar de tudo, sempre presentes, e fundamentalmente grandes fornecedores de estímulos, nomeadamente na forma de livros dos mais diversos temas.

O diário inicia-se com a história do seu próprio surgimento, na forma de prenda do aniversário dos 13 anos de Anne. Podemos desde logo ver como nesse aniversário a prenda que é oferecida em maior quantidade a Anne, são livros. Apenas pelo lado da família próxima recebe 6 livros. Durante os três anos em que estão presos no Anexo, os livros nunca faltarão a Anne, não só de leitura mas também de estudo. Os seus pais mantiveram horários e objetivos de estudo ao longo de todos aqueles três anos. E perto do final, Anne e a sua irmã só sonham em voltar para a Escola!
"Também é ela que traz cinco livros da biblioteca, todos os sábados. Ansiamos pelos sábados, porque significa livros. Somos como uma data de miúdos com um presente. As pessoas normais nem sonham como os livros podem ser importantes para alguém que está engaiolado. As nossas únicas diversões são ler, estudar e ouvir rádio." (p.152)
É por demais evidente que todas essas leituras tiveram grande influência sobre o diário de Anne. Que não sendo uma obra de grande elaboração, é uma obra em que se nota uma clara progressão na qualidade descritiva, tanto pelo amadurecimento psicológico da autora, como pela evolução das suas competências de escrita. Anne passa dos 13 aos 15 anos, passa pela sua primeira paixão, e tem imenso tempo para se dedicar à introspeção do que sente, servindo-se do diário como síntese de todos esses sentires.

Por outro lado, o diário foi reescrito por Anne. Depois de ouvir na rádio que no pós-guerra iriam usar os diários das pessoas para tentar reconstituir o que teria acontecido de facto, Anne fez uma segunda versão do que tinha escrito. Anne chega a dizer-nos que quer ser Jornalista ou Escritora. Ou seja, o que lemos nestas páginas, não é algo não autorizado, mas é algo que assume a leitura por outros. Ainda assim a técnica narrativa que permite a Anne aprofundar todas as suas descrições — escrevendo no diário cada dia como se fossem cartas para uma amiga imaginária — é algo que está presente desde o início, dando conta das suas capacidades criativas.

Ao longo do livro, impressionam as descrições dos sentires da casa, do seguimento da evolução da guerra pelo rádio, da manutenção da esperança, do agarrar à vida. Todos faziam cursos por correspondência, para se manter sãos, mas ao mesmo tempo porque acreditavam no que havia de vir. No diário fica claro o confronto entre os instintos mesquinhos do ser humano e os valores superiores, nomeadamente num estoicismo enraizado na educação de Anne que nos toca, porque a estes valores não é alheia a progressão da qualidade e elaboração da sua escrita, motivada por todo o seu trabalho, esforço e dedicação.
“Se Deus me deixar viver, conseguirei chegar mais longe do que a Mamã alguma vez conseguiu, farei ouvir a minha voz, sairei para o mundo e trabalharei para o bem da humanidade!
Sei agora que é preciso em primeiro lugar coragem e alegria!” (p.347)
Tenho poucas dúvidas sobre o potencial de Anne enquanto escritora, caso tivesse sobrevivido ao Holocausto.

fevereiro 04, 2017

Filosofia do Design de Miyamoto

A revista Vox entrevistou Shigeru Miyamoto e questionou-o sobre os fundamentos do design que estão na base dos seus maiores sucessos na indústria de videojogos. A entrevista é curta e a interpretação do que Miyamoto diz é muito fraca, razão pelo qual não sigo os conceitos como explanados pelo vídeo, mas antes como os interpreto das palavras de Miyamoto. Não sendo uma entrevista de grande aprofundamento, os três componentes apresentados conseguem ser relevantes para quem se quiser focar sobre a essência do design de videojogos.




1 - Realização (accomplishment)
Apesar da Vox definir este primeiro componente como história, não sigo, porque não é isso que Miyamoto diz, e nem sequer faz sentido aplicado aos jogos em questão — Donkey Kong e Mario. Nas suas palavras a realização corresponde a: “You have to have a sense that you have done something, so that you get that sense of satisfaction of completing something.”

2 - Visualização (Show, Don’t Tell)
O segundo componente é mais uma vez erradamente interpretado pelos senhores da revista, que traduzem o que Miyamoto quer dizer por simplicidade. Apesar de o poder ser, em essência Miyamoto está a falar do conhecido processo de criação —  show, don’t tell. Nas suas palavras, a preocupação centra-se sobre: “How I’m showing a situation to a player, conveying to them what they’re supposed to do.” A discussão em redor do nível de tutorial é ótima, porque é o ponto em que a visualização do que se deve fazer é maximizada.

3 - Imersão (Immersiveness)
Por fim, a imersão, aqui seguindo Miyamoto, embora acabando por na explicação por misturar o conceito com o de feedback. Para Miyamoto a imersão corresponde simplesmente a: "Being able to feel like it’s a world you’re immersed in, that you’ve become a hero.” Ou seja, criar uma situação que garanta a participação do jogador ao ponto deste esquecer o seu mundo, e sentir-se imerso.

Shigeru Miyamoto's design philosophy (2017)

fevereiro 03, 2017

“Shoah” (1985), monumento cinematográfico

Filme monumento, no qual a palavra é elevada a estatuto indiferente ao meio, fazendo de “Shoah” um artefacto que está para além do cinema e da literatura. 9h26m de vozes ilustradas por caras e espaços que nos contam o que os olhos viram e recriam para o espectador um mundo que inacreditavelmente existiu.
 Shoah é a palavra hebraica usada para referenciar o Holocausto

Claude Lanzmann passou 11 anos a trabalhar para este documentário, tendo definido algumas linhas de partida, de que não se afastou, e que serviram na acentuação de uma estética documental naturalista: não foram usadas quaisquer imagens de arquivo, não foi usada música, nem foi usado qualquer efeito sonoro ou gráfico, nem sequer na etiquetagem dos espaços ou pessoas. Aquilo que vemos são apenas os espaços que a câmara capta nos locais em que os eventos aconteceram, e as caras de quem fala sobre o que aconteceu nesses locais.

“Shoah” é um testemunho polifónico vivo e irrepetível. Grande parte das pessoas entrevistadas e sobreviventes do Holocausto, passados 76 anos sobre o acontecido, já desapareceram. O que nos é dito aqui, fica para a memória da espécie humana, e é por tal um documento de valor inestimável. “Shoah” dá-nos a experienciar o horror, mas de uma forma racional, sem estilhaçar as nossas emoções, sem nos obrigar a virar a cara, o impacto dá-se dentro de nós, por meio das palavras que evocam ideias e experiências  que despoletam sentimentos.
“The greatness of Claude Lanzmann's art is in making places speak, in reviving them through voices and, over and above words, conveying the unspeakable through peoples' facial expressions.” Simone de Beauvior
Não é um filme sobre o qual valha muito dissertar sobre as qualidades estéticas, apesar de presentes e imensamente poderosas, desde a cinematografia ao ritmo da montagem, que tornam a obra uma experiência intensa. Por outro lado, são muitas as evidências apresentadas que nos surpreendem, apesar de a maioria de nós ter visto e lido centenas de obras sobre o sucedido. Da simplicidade aberrante, do uso de um camião e o seu próprio monóxido de carbono para matar dezenas de pessoas de uma vez, às técnicas de propaganda psicológica para domesticar e adormecer as populações, não existem adjetivos que qualifiquem.

No final ficam algumas certezas: a espécie humana é capaz do melhor e do pior; a nossa essência assenta na sobrevivência e essa está biologicamente ligada à discriminação do outro, do que é diferente. Os Judeus foram perseguidos desde sempre pela sua diferença, e passados 2000 anos o melhor que conseguimos fazer foi ditar o seu total extermínio. A diferença corrompe-nos, temos de ser melhores, temos de ser capazes de controlar os nossos instintos ou acabaremos por nos eliminar a nós mesmos enquanto espécie deste planeta.

"Underworld" (1997) DeLillo

As primeiras 400 páginas, 5 estrelas, as segundas 400 páginas, 2 estrelas. A escrita de DeLillo é, neste livro, sublime porque profusa, erudita, eloquente, e atmosférica. Na primeira parte somos apresentados a um conjunto de personagens, eventos e épocas. Na segunda parte DeLillo desenvolve uma profunda análise crítica por meio de uma fragmentação articulada, tipicamente pós-moderna, na qual envolve acontecimentos mais e menos conhecidos da história dos EUA, para dar forma ao imaginário coletivo americano.


Naturalmente a primeira parte deveria ser a mais maçuda e secante, contudo não o é, porque a escrita é fantástica, e tudo o que nos vai apresentando é sorvido por nós avidamente. Os personagens são tipicamente americanos que podemos reconhecer de muito do cinema americano, sente-se particularmente os anos 1950 e os 1970. Fala-se de muita coisa, com dois motivos centrais a funcionar como aglutinadores, o baseball e a guerra fria.

Todas as análises literárias se detêm sobre o primeiro capítulo, o qual foi inclusive destacado e re-publicado em livro à parte. Neste, DeLillo narra um dos grandes episódios do baseball americano a final de 1951 entre os Giants e os Dodgers, que apesar de todo o dramatismo envolvido à sua volta, terá assumido toda esta relevância por algo que DeLillo não diz de forma explícita, mas a que DeLillo é muito sensível, e que é o facto de ter sido o primeiro jogo a ser emitido pela televisão nacional dos EUA. Ou seja, o evento não ficou contido no estádio, nem na região, contaminou o imaginário de todos os americanos no país por meio desse meio de comunicação poderoso que foi a televisão, ao longo de toda a segunda metade do século passado.

"The Shot Heard 'Round The World", Giants X Dodgers, 1951

Este primeiro capítulo, e primeiro episódio de "Underworld", marca o estilo do livro e aquilo que DeLillo pretende fazer. O seu objetivo é claramente entrar na psique do imaginário coletivo, dissecá-lo. A sua descrição é cabalmente detalhada e envolve inclusive personagens da época como Frank Sinatra ou J. Edgar Hoover. A sua leitura é uma enorme delícia, na forma, mas só na forma, e é aqui que reside o problema maior de “Underworld”. Ou seja, para grande parte dos não-americanos, que não percebem o desporto, mas principalmente não detêm qualquer memória do evento reportado, a leitura funciona de forma estranha. Ou seja, em vez de aquele relato profuso nos ir fazendo aproximar do evento, acaba por nos afastar ainda mais, por não sermos parte do colectivo que conhece e se reconhece, porque o relato não se foca na tentativa de nos dar a compreender a grandiosidade do feito, mas antes foca-se na evocação dos sentires de quem o experienciou.

Por outro lado, o episódio seguinte, muito menos discutido, é muito mais efetivo, provavelmente pela sua universalidade. DeLillo continuando a sua digressão sobre os media, elabora uma descrição magistral de um dos assassínios do Assassino da Auto-Estrada do Texas. A particularidade do mesmo, é que tal como o jogo de baseball, é filmado, e passado e repassado nas televisões. Aqui temos uma alusão direta à criação de imaginário coletivo pelos meios de comunicação social. E podemos mesmo ligar este episódio ao primeiro, já que o enfoque na repetição da sequência, é no fundo um decalque daquilo que provavelmente terá acontecido com o jogo de baseball na televisão, em que terá sido repetido ad nauseam.

Dito isto, parecia termos aqui tudo para um livro magnífico. Apesar de não me interessar o baseball, o meu trabalho centra-se em redor dos efeitos dos media, logo tudo isto me interessaria, e tenho de dizer que este segundo episódio vale a leitura mesmo para quem não queira ler o resto do livro. Aliás os dois primeiros episódios, valem a leitura, recomendo vivamente.

O problema surge a seguir, quando DeLillo quer fazer da literatura um espelho dos sentires da massa colectiva criada pelos media. Porque o modo como o faz é por meio da multiplicação de personagens, de eventos históricos e fragmentação de linhas de enredo, o que acaba por nos fazer perder. A leitura ganha um grau acentuado de dificuldade, claramente na senda de um “Infinite Jest” (1996), mas com uma diferença, não existe um elemento unificador. Ou melhor, ele existe, mas por se tratar de um imaginário colectivo, não é algo palpável, nem facilmente delimitado, mais ainda porque trabalha múltiplos eventos da história de um país que não conhecemos, pelo menos o suficiente para o modo distanciado como DeLillo vai relatando. Acabamos assim perante uma massa de fragmentos narrativos, de personagens e eventos, pendurados no ar, sem conexão clara, e se racionalmente lhe podemos atribuir um rótulo, emocionalmente nada sentimos.

Em 2006, "Underworld" terá ficado em segundo lugar atrás de "Beloved" (1987) de Toni Morrison que venceu uma votação de críticos americanos da melhor literatura dos anteriores 25 anos. Comparando ambos, repetiria o argumento que fecha o parágrafo anterior: "Underworld" é um feito académico em termos de escrita, mas "Beloved" consegue aquilo que só a literatura completa consegue, transformar-nos.

janeiro 29, 2017

“Que importa a fúria do mar” (2013)

Mais uma primeira-obra portuguesa que merece nota máxima, depois de “O Meu Irmão” (2014) e “Perguntem a Sarah Gross” (2015). Todas com boas histórias, bem escritas, mas com estéticas muito diferentes, e neste caso não admira que António Lobo Antunes lhe tenha tecido elogios, já que Ana Margarida de Carvalho escreve na sua senda. Temos um discurso indireto livre sem freios, que entra pelas mentes dos personagens adentro e os esventra dos seus sentires. Tendo recentemente lido “Myra” (2008) de Maria Velho da Costa, “Que importa a fúria do mar” não está ao mesmo nível, falta-lhe maturidade capaz de conferir um controlo fino do texto e do que vai dizendo, mas aproxima-se bastante e promete sobre Ana Margarida de Carvalho.


“Que importa a fúria do mar” é um texto curto, 200 páginas, dotado de uma escrita erudita e não-linear, mas que ainda assim no desenrolar de páginas se vai colando a nós, tornando a leitura cada vez mais fácil e rápida. Em pouco tempo damos por nós a querer virar páginas para saber o que vai acontecer a seguir, tendo já esquecido que o discurso não segue linear, e que ora estamos dentro de Eugénia, de Joaquim, Francisco, o Gato ou o Pastor, mas com a autora sempre a manter o caminho da trama suficientemente iluminado, exigindo apenas quanto baste pela experimentação estética que vai realizando.
"Eras tão nova, mãe. E eu agarrada aos teus sonhos, aos teus cabelos, aos teus sapatos, ao teu presente, ao teu futuro – e pior – ao teu passado, que tu querias esquecer. Mas lá estava eu a fazer-te lembrar que tinha mesmo acontecido. Desafortunadamente, era uma menina empecilho, largada numas paragens agrestes e húmidas, em casa de uns parentes remotos. E velhos."
Para primeira obra é admirável escrever-se assim. Não só ter uma boa história para contar, que enlaça o passado ditatorial e colonial do nosso país com o presente das tragédias de quem por cá sempre viveu e tem de viver, mas acima de tudo por um texto capaz de ser tão intrincado e ao mesmo tempo tão aberto, tão dado. Existem claro passagens menores, alguns excessos. Muita crítica é feita ao palavreado rebuscado, que se sente mais no início e que acaba por perder leitores, mas que vejo mais como sintoma de alguma insegurança originada pela imaturidade. Do meu lado, sinto ainda um excesso no número de tragédias apresentadas tão a jeito de catarse emocional, e que por vezes até em aberto se quedam. Mas é também, em parte, graças a estas catarses, que Ana Margarida de Carvalho consegue a nossa atenção e interesse todo o tempo da leitura, fazendo deste texto um dos livros portugueses que mais mexeu com as minhas emoções.
"Ao calor do meio-dia, Joaquim fazia por enterrar os arrames farpados nas costas. Preferia focar-se na dor das feridas do que na sede que o ensandecia. Isso e as moscas que não podia enxotar e lhe sondavam a face com as suas trombinhas impertinentes."
"Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbitos"

Quanto à chave do texto, está no título. As suas duas primeiras palavras dizem tudo. As tragédias passam por nós, os outros passam por nós, e nós seremos o que todos estes fizeram de nós.



Fotografias do Campo de Concentração do Tarrafal, Cabo Verde, 2016


Nota final: O facto de ter estado no Tarrafal este ano contribuiu, e muito, para ampliação do meu sentir do que se encerra nas páginas deste livro. Inevitável criar estas relações com as obras que se aproximam de nós, a familiaridade é um dos mais poderosos afrodisíacos do prazer das histórias.

janeiro 21, 2017

"Pre-Suasion: A Revolutionary Way to Influence and Persuade" (2016)

Nos anos 1980, Cialdini, um académico das áreas da Psicologia e do Marketing, lançou um dos livros mais relevantes sobre persuasão — "Influence" (1984). Nesse, apontava seis grandes princípios determinantes da persuasão — 1. Reciprocidade, 2. Prova Social, 3. Cometimento e Consistência, 4. Simpatia, 5. Autoridade e 6. Escassez. Foram entretanto precisos mais de 30 anos para Cialdini se dispôr a escrever um novo livro, porque segundo ele, não tinha encontrado nada de novo para dizer para além do que já tinha dito. O novo livro, "Pre-Suasion", apresenta-se como um pequeno trocadilho da palavra persuasão, e define em si mesmo o novo conceito que tem para nos apresentar.


Na realidade, o novo conceito que Cialdini nos traz neste livro tem pouco de revolucionário, já que se baseia em dois grandes princípios do Viés Cognitivo, apresentados por Kahneman no seu opus “Pensar, Depressa e Devagar” (2011): “ancoragem” e “priming”. A ancoragem dá conta do viés que possuímos e que tende a conduzir as nossas decisões em função da informação que nos é oferecida (ex. após pensar em números grandes cria-se uma tendência para aceitar valores maiores para produtos). Por sua vez o priming consiste num processo de associação de distintas memórias que partilham semelhanças (ex. pensar em pessoas idosas pode conduzir as pessoas a reduzir a velocidade; pensar em atletas que se esforçam muito pode conduzir à criação de maior a resiliência).

O que Cialdini faz então é potenciar estes vieses na comunicação, apresentando neste novo livro uma nova abordagem comunicativa baseada na manipulação do tempo imediatamente anterior à comunicação da mensagem. Nesse tempo, defende então a introdução de variáveis de ancoragem ou priming, que conduzam à criação de uma predisposição na audiência para aceitarem o que se vai dizer a seguir. Trata-se assim de uma preparação, ou modelação, para a mensagem. Podemos pensar em algo parecido como os genéricos cinematográficos, em que se modela o estado emocional dos espectadores para o filme que se vai seguir.
“If you want people to buy a box of expensive chocolates, first arrange for them to write down a number that’s much larger than the price of the chocolates.
If you want people to choose a bottle of French wine, first expose them to French background music before they decide.
If you want people to agree to try an untested product, first inquire whether they consider themselves adventurous.
If you want to convince people to select a highly popular item, we can begin by showing them a scary movie.
If you want people to choose a more expensive but more comfy option, first show them fluffy clouds
If you want people to feel warmly toward you, hand them a hot drink.
If you want people to be more helpful to you, first have them look at photos of individuals standing close together.
If you want people to be more achievement oriented, first provide them with an image of a runner winning a race.
If you want people to make careful assessments, first show them a picture of Auguste Rodin’s The Thinker.”
 in "Pre-suasion" (2016:Loc. 2338)

O desafio desta abordagem 
A pre-suasão de Cialdini assenta na arte de capturar e conduzir a atenção dos recetores, mas para que funcione é necessário conseguir atingir a atenção dos recetores. Ou seja, se aquilo que definirmos como estímulos de ancoragem e priming não falar aos recetores, o efeito será nulo. Por isso conhecer este processo, em si, pode ser interessante, mas nas mãos de alguém que não trabalhe devidamente a mensagem e o público, de muito pouco valerá. Para ajudar no trilhar do caminho, Cialdini propõe um conjunto de estratégias baseadas em conceitos, de teor mais universal, que podem contribuir para o desenhar de estratégias de pre-suasão.

6 Comandos de Atenção
* O Sexual *
Um dos elementos mais relevantes de toda a sociedade no que toca à captação de atenção, já que está subjacente a toda a origem das artes de persuasão, sendo utilizado por todos aqueles que produzem arte, entretenimento ou marketing. Contudo o sexo não funciona de forma igual para tudo. Se assim fosse não teríamos apenas 8% dos produtos a recorrerem ao mesmo, como nos diz Cialdini. A título de exemplo o apelo sexual funciona muito bem com a moda ou os perfumes, mas funciona mal com refrigerantes ou detergentes. Ou seja, “In any situation, people are dramatically more likely to pay attention to and be influenced by stimuli that fit the goal they have for that situation.” (Loc. 1141)

* A Ameaça *
Nada funciona melhor quando se quer fazer alguém pensar como nós do que definir uma ameaça à forma de pensar dessa outra pessoa. A necessidade de segurança é essencial ao ser humano. Basta ver a transformação da sociedade, tudo o que passou a aceitar em face da ameaça terrorista pós 11 Setembro. A título de exemplo, a maior parte das campanhas sociais trabalham sob este prisma, desde as campanhas anti-tabaco, com as fotografias devastadoras nos maços de tabaco, aos anúncios publicitários que mostram a violência doméstica, de guerra, ou outras. A ameaça tem ainda a capacidade de unir os seres humanos, de os levar a sentir necessidade de se aproximar do seu grupo, o problema é que isso também produz o efeito de rejeição do outro.

* A Diferença *
Talvez o maior marcador de atenção que possamos desenvolver, não é por acaso que a palavra de ordem é o Novo, e que a nossa sociedade se dirigiu na última década desenfreadamente para o mundo da Inovação e da Criatividade. A diferença marca o interesse de todos nós. A base desta relevância está no facto de que a ausência de diferença conduz à estagnação e redução de velocidade de processamento, logo redução da atenção. Evolucionariamente estamos treinados para ignorar o normal, relaxar, até que algo diferente surja, e isso nos volte a por em modo ativo. Contudo, é também obviamente um dos comandos mais difíceis de trabalhar.

* A Auto-Relevância *
Mais um marcador poderoso. O ser humano é por razões de sobrevivência auto-centrado — “primeiro Eu, depois Eu, e depois talvez o Outro”. Daí o surgimento nas últimas décadas dos discursos sobre as preferências pessoais, do “você merece mais”. Contudo, tal como o comando anterior, é difícil de construir, muito baseado nas particularidades de cada indivíduo.

* O Não-acabado *
Um princípio roubado à Gestalt, que esta começou por apresentar no domínio visual, pelo facto de necessitarmos de completar tudo o que se encontra incompleto. Este princípio levaria à criação de um outro que ficou conhecido como Efeito de Zeigarnik, e que defende que as pessoas têm tendência a recordar melhor aquilo que se queda incompleto. Cialdini fala neste ponto de uma técnica do processo de escrita muito interessante, e que consiste em parar a escrita a meio de uma ideia, em vez de a completar e fechar. Deste modo, ficamos a pensar na ideia e acabamos por ter um estímulo adicional para voltar ao processo de escrita.

* O Misterioso *
Este princípio não se diferencia propriamente do anterior, já que não é mais do que a particularização narrativa do anterior. Ou seja, Cialdini fala da criação de mistério em redor de um assunto para manter uma audiência (ex. alunos numa aula) ao longo de toda a duração do discurso. Ora, este género de contar histórias, mistério e thriller, define-se por um truque simples que assenta na criação de uma necessidade de conhecer uma resposta, algo que funciona como cenoura para a audiência. Mas esta resposta não é mais do que a chave que fecha uma ideia não-acabada apresentada no início de um livro, filme ou da tal aula.


No final do livro Cialdini apresenta uma espécie de defesa de um potencial novo princípio de Influência, a juntar aos 6 definidos no seu anterior livro, que seria o de “Unidade”. Apesar de considerar interessante, julgo que o princípio não acrescenta muito ao princípio de “Simpatia”. Ou seja, Cialdini defende que a “Unidade” providenciada pelo sangue, família, região, ou qualquer tipo de relação que una os indivíduos conduz as pessoas a favorecer essas mesmas pessoas. Ora isto é exatamente o mesmo que acontece no princípio de Simpatia (“likeness”), que nos diz que tendemos a favorecer mais aqueles de quem mais gostamos. Embora possamos aqui falar, por exemplo, do ato de defender pessoas da nossa família — irmãos, filhos, pais — mesmo que não gostemos assim tanto deles. Contudo esta definição de não gostar, e do sangue se sobrepôr à amizade, não pode ser vista de modo simplista, o gostar ou não gostar não se define como mero preto e branco.

Para fechar, é um livro interessante, mas que para ser totalmente compreendido, e poder assacar o todo do que ele entrega, exige o conhecimento do livro anterior. Os princípios de pre-suasão não devem, não apenas por questões éticas, ser utilizados de modo indiscriminado, sem um conhecimento mais aprofundado da comunicação persuasiva e dos viés cognitivos que nos definem enquanto seres humanos.