Matthew Inman criou sozinho um dos sites de cartoons mais visitado da web, The Oatmeal, sendo capaz de gerar mais de quatro milhões de visitas ao longo de um mês. A banda desenhada de hoje, "It's going to be okay" é baseada na história real de uma personalidade bem conhecida dos amantes de séries de ficção científica televisivas. Se a personagem é um ícone e a história profundamente inspiradora, o mais interessante para mim acabou sendo a belíssima arte sequencial criada por Inman.
Tal como definida por Eisner e McCloud a arte sequencial delimita-se no conjunto de imagens desenvolvidas em sequência para contar uma história, normalmente mais ligada à banda desenhada, mas podendo aplicar-se ao cinema e cinema de animação, já que estes não passam de 24 imagens por segundo, criando na nossa mente uma mera ilusão de movimento. No caso da banda desenhada, a sequência pode surgir de qualquer forma, na vertical, horizontal, direita para esquerda, esquerda para direita, sendo apenas relevante que exista sequência entre as imagens.
Ora a sequência apresentada nesta banda desenhada acontece na vertical e em quadros únicos, o que pensado de raiz pelo autor, abre espaço a toda uma potenciação do storytelling, nomeadamente na gestão da informação e expectativas que se vão criando na cabeça do leitor. Isto não tem nada de novo, o que aqui se releva é antes a mestria com que Inman geriu toda a sequência de imagens e textos, controlando a história e as nossas emoções com um ritmo absolutamente perfeito.
Leiam a história em "It's going to be okay".
novembro 11, 2015
novembro 10, 2015
Animação 3d: "Os Laços de Sangue"
Uma animação literalmente sumptuosa. Toda a direcção de arte trabalha de forma soberba a luxuria da relação de sangue em questão, criando todo um universo, que não sendo propriamente inovador é altamente eficiente e consistente na criação do sentimento que subjaz à personagem principal. Mais um belíssimo trabalho de alunos da escola francesa de cinema e animação George Méliès.
Temos todo um conjunto de cenários barrocos, cheios de folhos e formas curvas, cobertas por contrastes de luz intensa e volumosa, tudo toldado por tons de vermelho sangue. As personagens assumem uma caracterização particular, autoral, fina e detalhada, de grande coerência entre si.
O menos conseguido, ainda que falemos de uma curta de 3 minutos, acaba sendo a história, pelo cliché, assim como pela tentativa gorada de sugestão, que acaba por passar mais como explicação. Ainda assim a narrativa trabalha em consonância com toda a restante arte, acabando por funcionar como a necessária cola e justificação da criação do universo.
Temos todo um conjunto de cenários barrocos, cheios de folhos e formas curvas, cobertas por contrastes de luz intensa e volumosa, tudo toldado por tons de vermelho sangue. As personagens assumem uma caracterização particular, autoral, fina e detalhada, de grande coerência entre si.
O menos conseguido, ainda que falemos de uma curta de 3 minutos, acaba sendo a história, pelo cliché, assim como pela tentativa gorada de sugestão, que acaba por passar mais como explicação. Ainda assim a narrativa trabalha em consonância com toda a restante arte, acabando por funcionar como a necessária cola e justificação da criação do universo.
"Les Liens de Sang" (2015) de Sophie Kavouridis, Manon Lazzari, Marion Louw, Simon Pannetrat e Thomas Ricquier
novembro 09, 2015
Automação da arte
Nos últimos anos temos assistido à automação de tarefas um pouco por todas as esferas da atividade humana. Qualquer atividade que requeira repetição de passos, sem grande variabilidade, é rapidamente sujeita a processos de informatização que permitam a sua automação por máquinas. Ora se existe área onde isto não parece fazer muito sentido é na criação artística, já que aquilo que se espera neste domínio é sempre a criação de novo, diferente, original. Contudo parece que já nem sempre assim é.
O mais recente exemplo surgiu esta semana no campo da criação de ambientes virtuais em tempo real, para usar na plataforma Unreal. Trata-se do Landscape Auto Material criado pela VEA Games, e que permite criar todo um ambiente florestal, altamente original de cada vez, porque personalizado em termos de posição e dimensão, assim como elementos e texturas. Basta arrastar o rato para rapidamente criar um trilho com ervas, pedras, arbustos, riachos, assim como criar relevos. É o mais próximo que já vimos da criação artística através do clique de um botão.
Como dizíamos acima isto não é novo, em 2010 tínhamos visto a Adobe apresentar a ferramenta Content Aware que faz algo muito parecido em fotografia 2d no Photoshop. Estamos no fundo a falar de algoritmos que conseguem usar informação sobre objetos pré-existentes para criar novos. Aliás o próprio mundo do webdesign já imensamente fustigado pelas gigantescas bases de dados de templates, começa também agora a conhecer ferramentas deste tipo, com IA que se adapta às necessidades mais específicas de cada utilizador. Por um lado tudo isto parece em certa medida ficção científica, por outro começa mesmo a parecer o início do fim das artes, mas será mesmo?
Na verdade não. Primeiro, porque falamos de atividades criativas altamente repetitivas, profundamente orientadas a um objetivo, ou mesmo tarefa. Nada nestes processos é muito criativo, tendo em conta a quantidade de objetos semelhantes criados antes. Ou seja, de que modo podemos separar hoje o desenho de um website, ou de um terreno florestal 3d, do esculpir de uma caneca de barro? Na verdade nada, e por isso mesmo é que estas ferramentas surgem, e cada vez teremos mais. Mas isto não quer dizer que deixaremos de precisar de criadores de universos de paisagens virtuais, ou de criadores de websites.
Simplesmente porque estas ferramentas são apenas e só tecnologias criativas, tecnologias que trazem embebidas em si, conhecimento de suporte à criação. Ou seja ferramentas que permitem a quem nada percebe do assunto rapidamente construir algo, e assim aceder ao universo em questão, encontrando-se em termos criativos. Assim como permitem a um criativo profissional rapidamente executar algumas das tarefas mais repetitivas, sem contudo deixar nunca de executar o seu trabalho, aquele pelo qual verdadeiramente é pago, a ideação e a comunicação, ou seja a capacidade de pensar de forma única, inovadora, e de transformar esse pensar, a imaginação, numa forma real e expressiva.
Por mais automação que venhamos a criar, a ideação e sua expressão são uma espécie de último reduto intransponível. Mesmo que venhamos a conseguir dotar máquinas de consciência um dia, aí passaremos a ter entidades por detrás dos processos de ideação, o que implicará que esses processos continuarão a não ser catalogados de automação, mas sim de criação, ainda que não sejam fruto de uma mente humana.
Como dizíamos acima isto não é novo, em 2010 tínhamos visto a Adobe apresentar a ferramenta Content Aware que faz algo muito parecido em fotografia 2d no Photoshop. Estamos no fundo a falar de algoritmos que conseguem usar informação sobre objetos pré-existentes para criar novos. Aliás o próprio mundo do webdesign já imensamente fustigado pelas gigantescas bases de dados de templates, começa também agora a conhecer ferramentas deste tipo, com IA que se adapta às necessidades mais específicas de cada utilizador. Por um lado tudo isto parece em certa medida ficção científica, por outro começa mesmo a parecer o início do fim das artes, mas será mesmo?
Na verdade não. Primeiro, porque falamos de atividades criativas altamente repetitivas, profundamente orientadas a um objetivo, ou mesmo tarefa. Nada nestes processos é muito criativo, tendo em conta a quantidade de objetos semelhantes criados antes. Ou seja, de que modo podemos separar hoje o desenho de um website, ou de um terreno florestal 3d, do esculpir de uma caneca de barro? Na verdade nada, e por isso mesmo é que estas ferramentas surgem, e cada vez teremos mais. Mas isto não quer dizer que deixaremos de precisar de criadores de universos de paisagens virtuais, ou de criadores de websites.
Simplesmente porque estas ferramentas são apenas e só tecnologias criativas, tecnologias que trazem embebidas em si, conhecimento de suporte à criação. Ou seja ferramentas que permitem a quem nada percebe do assunto rapidamente construir algo, e assim aceder ao universo em questão, encontrando-se em termos criativos. Assim como permitem a um criativo profissional rapidamente executar algumas das tarefas mais repetitivas, sem contudo deixar nunca de executar o seu trabalho, aquele pelo qual verdadeiramente é pago, a ideação e a comunicação, ou seja a capacidade de pensar de forma única, inovadora, e de transformar esse pensar, a imaginação, numa forma real e expressiva.
Por mais automação que venhamos a criar, a ideação e sua expressão são uma espécie de último reduto intransponível. Mesmo que venhamos a conseguir dotar máquinas de consciência um dia, aí passaremos a ter entidades por detrás dos processos de ideação, o que implicará que esses processos continuarão a não ser catalogados de automação, mas sim de criação, ainda que não sejam fruto de uma mente humana.
"UE4 Pack: Landscape Auto Material" (2015) da VEA Games
novembro 07, 2015
"Não É Meia Noite Quem Quer"
Li centenas de crónicas de António Lobo Antunes (ALA), contudo este é o seu primeiro romance que termino. Não que me tenha esforçado por ler outros, confesso que outros antes não me motivaram suficientemente, nomeadamente pelo surgimento constante do tema da guerra colonial, que me provoca algum distanciamento. Este perseguia-me quase desde que saiu, pois gostei imenso das primeiras páginas, o retrato que ALA ali desenha abre para uma espécie de cenário tipo do cinema português dos anos 1990: Urbano, melancólico, pausado, reflexivo, e profundamente introspectivo.
“Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.
A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.
Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.
São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.
Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.
“Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.
“Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.
A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.
Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.
São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.
Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.
“Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.
novembro 05, 2015
Adereços do storytelling
Rishi Kaneria criou um belíssimo ensaio audiovisual, “Why Props Matter”, no qual dá conta da importância dos adereços no cinema. Apesar de focado no cinema, serve qualquer outra arte narrativa (teatro, literatura ou videojogos), uma vez que a análise se foca no modo como estes impulsionam o contar de histórias.
De forma geral os adereços servem de caracterização, ou melhor de exteriorização dos personagens. Ou seja, as artes narrativas visuais sofrem do problema de terem de traduzir em imagem sentimentos de pessoas, ações internas, o que é por si só todo um trabalho de concepção, desenho e escrita para chegar ao melhor modo de o conseguir. Como posso mostrar que uma pessoa está impaciente ou nervosa? Mostrando-a a olhar incessantemente para o adereço “relógio”. O adereço contém em si mesmo uma carga significativa suficiente para traduzir visualmente aquilo que vai na cabeça do personagem.
Claro que fazer isto com sentimentos universais é até simples, ou quando simplesmente queremos dar conta dos objetivos externos ou das ação necessárias para os conseguir, mas quando queremos ir ao fundo da psyche do personagem, quando precisamos de traduzir complexidade interna e elaborada como o remorso, a vergonha, ou dar conta do crescimento e amadurecimento de um personagem, tudo fica mais complicado, e os adereços começam a fraquejar.
Não é por acaso que muitos dos exemplos aqui dados são do cinema de hollywood, um cinema reconhecido pela acção, pela aposta nos problemas externos dos personagens das suas histórias. "Como diz Kaneria, os adereços são objetos com que qualquer pessoa se consegue relacionar."
Mas quando queremos compreender com que se debate internamente uma criança abandonada pelos familiares, uma jovem violada por um pai, ou uma mãe que perdeu um filho, temos de recorrer ao cinema alternativo, nomeadamente independente ou europeu. E aí os adereços continuam a ter relevo, mas dada a complexidade que representam, a sua leitura é muito menos direta, deixa de existir um acesso facilitado ao mundo representado, ficando tudo muito mais dependente daquilo que o espetador consiga fazer com eles. No fundo assistimos à transformação dos adereços como objetos de representação em objectos de simbolização.
Alguns desses símbolos podem até tornar-se ícones após o seu uso numa obra, por via do contexto narrativo que passa atribuir-lhe valor direto, mas inicialmente surjem numa forma puramente simbólica, sem qualquer objetivo icónico, como uma roda de charrete em "O Dia do Desespero" (1992) de Manoel de Oliveira, ou uma árvore num descampado em “The Sacrifice” (1986) de Andrei Tarkovski.
Agradeço ao Fernando Martins que teve a amabilidade de me fazer chegar este ensaio.
De forma geral os adereços servem de caracterização, ou melhor de exteriorização dos personagens. Ou seja, as artes narrativas visuais sofrem do problema de terem de traduzir em imagem sentimentos de pessoas, ações internas, o que é por si só todo um trabalho de concepção, desenho e escrita para chegar ao melhor modo de o conseguir. Como posso mostrar que uma pessoa está impaciente ou nervosa? Mostrando-a a olhar incessantemente para o adereço “relógio”. O adereço contém em si mesmo uma carga significativa suficiente para traduzir visualmente aquilo que vai na cabeça do personagem.
Claro que fazer isto com sentimentos universais é até simples, ou quando simplesmente queremos dar conta dos objetivos externos ou das ação necessárias para os conseguir, mas quando queremos ir ao fundo da psyche do personagem, quando precisamos de traduzir complexidade interna e elaborada como o remorso, a vergonha, ou dar conta do crescimento e amadurecimento de um personagem, tudo fica mais complicado, e os adereços começam a fraquejar.
Não é por acaso que muitos dos exemplos aqui dados são do cinema de hollywood, um cinema reconhecido pela acção, pela aposta nos problemas externos dos personagens das suas histórias. "Como diz Kaneria, os adereços são objetos com que qualquer pessoa se consegue relacionar."
Mas quando queremos compreender com que se debate internamente uma criança abandonada pelos familiares, uma jovem violada por um pai, ou uma mãe que perdeu um filho, temos de recorrer ao cinema alternativo, nomeadamente independente ou europeu. E aí os adereços continuam a ter relevo, mas dada a complexidade que representam, a sua leitura é muito menos direta, deixa de existir um acesso facilitado ao mundo representado, ficando tudo muito mais dependente daquilo que o espetador consiga fazer com eles. No fundo assistimos à transformação dos adereços como objetos de representação em objectos de simbolização.
“Why Props Matter” (2015) de Rishi Kaneria
Agradeço ao Fernando Martins que teve a amabilidade de me fazer chegar este ensaio.
novembro 03, 2015
"Assassin’s Creed V" (2014)
Tinha enormes expectativas em relação a “Assassin’s Creed Unity” essencialmente por retratar um dos períodos históricos que mais admiro, a Revolução Francesa. É um período fulcral da era moderna que ficou marcado pelo grito: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Parece um simples mantra, mas foi imensamente relevante na mudança das nossas vidas, o destronar das hierarquias sociais, ainda que muito se tenha revirado novamente por via da economia de mercado, mas o mundo mudou e isso temos de o agradecer a quem lutou pela mudança, e que nos permite hoje gritar: “Viva a Liberdade”.
“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.
A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.
Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.
Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.
A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.
Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.
Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.
A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.
Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.
Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.
O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.
O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.
Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.
Na generalidade,
“Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.
“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.
A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.
Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.
Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.
A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.
Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.
Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.
A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.
Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.
Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.
O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.
O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.
Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.
Na generalidade,
“Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.
novembro 02, 2015
"Player Stories vs. Designer Stories"
Já aqui falei antes de "Middle-earth: Shadow of Mordor" e também da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, mas agora venho dar conta da ligação entre ambos, estabelecida por Michael Plater, CEO da Monolith Studios, numa talk dada na DICE este ano, "Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World", na qual desvelou um pouco mais do véu sobre o sistema que suporta a jogabilidade e que ficou conhecido como Nemesis.
No essencial Plater vem dizer que a base de trabalho para o desenho do jogo partiu da teoria de Deci e Ryan, ou seja, do triângulo motivacional suportado pela Competência, Autonomia e Ligação. Deste modo, em vez de se limitarem a seguir os vagos e ambíguos desígnios do Fun ou Flow, agarraram-se a uma teoria com parametrização clara, e procuraram a partir daí conceber toda a experiência do jogador. Para tornar a base de Deci e Ryan mais diretamente presente no desenho de jogos, conectaram-na com a teoria dos RPGs, a GNS (Gamist, Narrativist, Simulationist), uma teoria que vem sendo desenvolvida por Ron Edwards. A ligação resultou na essência do design de "Middle-earth: Shadow of Mordor":
No essencial Plater vem dizer que a base de trabalho para o desenho do jogo partiu da teoria de Deci e Ryan, ou seja, do triângulo motivacional suportado pela Competência, Autonomia e Ligação. Deste modo, em vez de se limitarem a seguir os vagos e ambíguos desígnios do Fun ou Flow, agarraram-se a uma teoria com parametrização clara, e procuraram a partir daí conceber toda a experiência do jogador. Para tornar a base de Deci e Ryan mais diretamente presente no desenho de jogos, conectaram-na com a teoria dos RPGs, a GNS (Gamist, Narrativist, Simulationist), uma teoria que vem sendo desenvolvida por Ron Edwards. A ligação resultou na essência do design de "Middle-earth: Shadow of Mordor":
Assim temos de um lado a autodeterminação do jogador e do outro o seu resultado em termos concretos do artefacto. Plater não vai ao detalhe que gostaríamos nesta triangulação, focando-se mais sobre os dois aspectos mais salientes do sistema: memória e emergência. Ou seja, a forma como eles conseguiram desenvolver o,Competence <-> Gamist (jogo e mecânicas)->Autonomy <-> Simulationist-> (estratégia e credibilidade)Relatedness <-> Narrativist-> (foco na história)
“Empowering players to tell stories, not us telling them (..) We had to give people detailed anchors so their imagination would fill in the gaps (..) We had to understand how much was enough to give…”
Isto foi conseguido por meio da criação de estruturas de memória de eventos passados, que permitiam aos jogadores sentir a ligação com os personagens, e desse modo exponenciar a sua motivação. Plater apresenta um vídeo de um jogador a jogar, no qual podemos ver como a memória de conflitos anteriores cria a ligação, e como esta acaba sendo responsável pelo enorme envolvimento deste com o jogo.
Por outro lado o modo como os designers suportaram a sistematização das memórias, apesar de se referir a base narrativa, não foi baseada numa lógica como a literatura, o cinema ou a televisão, mas antes no desporto, nomeadamente nas histórias que se criam à volta deste. Não deixa de ser algo com que não nos tenhamos já debatido, já que um jogo não é um filme, mas tem muito deste, assim como não é um desporto, mas também tem muito desse. Dessa forma as memórias, sendo bastante simples diga-se, acabaram por se servir de uma lógica desportiva, que trabalha numa base de conflitos de hierarquia, domínio e tribalismo.
Uma das questões levantada por Plater que surge por via desta repescagem de eventos passados no âmbito de um jogo em mundo aberto e sua recolocação em jogo, foi o da necessidade de improvisar on-the-fly argumentos para responder ao jogador, daí que tenham recorrido para o design, a um conjunto de técnicas de stand-up e teatro de improviso para dar suporte à credibilidade dos NPCs.
"Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World" (2015) Michael de Plater
novembro 01, 2015
"Her Story" (2015)
Na semana passada foram anunciados os vencedores do IndieCade, com o grande prémio a ser conquistado por um dos mais interessantes videojogos deste ano "Her Story" de Sam Barlow, ao que se juntou o interessantíssimo facto, da entrega do prémio carreira a Brenda Laurel. A leitura da lista de premiados gerou impacto pela conexão entre os dois prémios o que me levou de imediato a dedicar-lhes a minha coluna no IGN: "A Narrativa nos Indies".
"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.
Já Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.
"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.
Brenda Laurel no IndieCade 2015 recebendo o Trailblazer Award
Já Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.
outubro 26, 2015
Tarkovsky, plano por plano
Juntei a leitura de um texto do BFI com o visionamento de um ensaio de Antonios Papantoniou, e senti um arrepio nostálgico, com enorme vontade de voltar aos mundos experienciais de Tarkovsky. Por isso aproveito para deixar aqui o ensaio audiovisual, que apesar de longo vale todos os minutos, para quem quiser perceber Tarkovsky, mas especialmente para quem quiser compreender em maior profundidade a linguagem cinematográfica, nomeadamente a sua amplitude, e neste caso a sua capacidade para trabalhar a psicologia humana, para nos levar ao íntimo do ser.
Tarkovsky é visto como um criador único, dotado de uma capacidade expressiva especial no campo da linguagem audiovisual. Contudo, não é o único como ele próprio admite quando reflete sobre as suas grandes influências, que podemos ligar claramente à estética das suas obras. No texto "10 great films that inspired Andrei Tarkovsky", Patrick Gamble dá conta de dez influências essenciais na filmografia do autor: Alexander Dovzhenko, Charlie Chaplin, Jean Vigo, Robert Bresson, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa, Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Sergei Parajanov. O artigo abre com "Terra" de Dovzhenko o que me rendeu logo ali, Tarkovsky tinha razão comparando-se com este, o sensorial e experiencial é vital nesta obra, e é dessa forma que ambos os criadores conseguem nos fazer passar através do interior dos seus personagens, sentir como eles sentem, ver como eles vêem, quase sem ocorrências de expressão verbal.
Mas o que me fez escrever este apontamento foi o ensaio "Andrei Tarkovsky - Shot By Shot" (2015). Se a recordação da sua obra é suficiente para me fazer viajar, poder escrutinar o trabalho à lupa, como Papantoniou faz neste documental, é francamente impressivo. É verdade que o filme se foca na pedagogia, servindo com excelência esse propósito, mas ao mesmo tempo podermos olhar, ver e sentir pausadamente a linguagem audiovisual de Tarkovsky, é toda uma viagem de emocionalidade racionalizada feita com enorme mestria.
Tarkovsky é visto como um criador único, dotado de uma capacidade expressiva especial no campo da linguagem audiovisual. Contudo, não é o único como ele próprio admite quando reflete sobre as suas grandes influências, que podemos ligar claramente à estética das suas obras. No texto "10 great films that inspired Andrei Tarkovsky", Patrick Gamble dá conta de dez influências essenciais na filmografia do autor: Alexander Dovzhenko, Charlie Chaplin, Jean Vigo, Robert Bresson, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa, Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Sergei Parajanov. O artigo abre com "Terra" de Dovzhenko o que me rendeu logo ali, Tarkovsky tinha razão comparando-se com este, o sensorial e experiencial é vital nesta obra, e é dessa forma que ambos os criadores conseguem nos fazer passar através do interior dos seus personagens, sentir como eles sentem, ver como eles vêem, quase sem ocorrências de expressão verbal.
"Terra" (1930) de Alexander Dovzhenko
Mas o que me fez escrever este apontamento foi o ensaio "Andrei Tarkovsky - Shot By Shot" (2015). Se a recordação da sua obra é suficiente para me fazer viajar, poder escrutinar o trabalho à lupa, como Papantoniou faz neste documental, é francamente impressivo. É verdade que o filme se foca na pedagogia, servindo com excelência esse propósito, mas ao mesmo tempo podermos olhar, ver e sentir pausadamente a linguagem audiovisual de Tarkovsky, é toda uma viagem de emocionalidade racionalizada feita com enorme mestria.
"Andrei Tarkovsky - Shot By Shot" (2015) de Antonios Papantoniou
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