abril 30, 2014

"The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity"

Bruce Hood, professor de psicologia da Universidade de Bristol, traz-nos uma discussão profundamente filosófica, e tão antiga como a nossa consciência, na qual se discute “o que somos, de que é feito “aquilo” a que chamamos EU?”. Hood trabalha essa discussão a partir das mais recentes descobertas da neurociência e psicologia. Apesar da abordagem ser feita pelo lado interno do ser humano, das pesquisas sobre o funcionamento do cérebro, “The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012) acaba por apresentar a sua proposta fundamentada no reconhecimento da relevância do social, como indica o próprio sub-título.

The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012)

Sobre o livro em si, dizer que pode ser muito interessante para quem não acompanha a área dos estudos da psicologia, psicologia social ou neuropsicologia, mas para quem segue o assunto, o livro pode tornar-se algo aborrecido, já que grande parte dos exemplos e estudos apresentados foram já amplamente debatidos por muitos outros autores. Hood faz uma resenha ao longo de todo o livro dos estudos mais importantes na área para suportar a ideia central e conclusiva do seu livro. Nesse sentido, o melhor do livro acaba sendo o início do capítulo “Why Our Choices Are Not Our Own e todo o último capítulo, “Why You Can’t See Your Self in Reflection” de síntese das ideias e conclusões. Desta forma, podemos dizer que temos material para um paper longo, digamos de 20 a 30 páginas, mas não temos propriamente material para um livro, a não ser que queiramos encarar o mesmo como uma introdução à área.

Na verdade as conclusões de Hood não são novas, muito do que é aqui dito pode ser encontrado anteriormente em Platão (Filósofo), Espinoza (Filósofo), William James (Psicólogo), Erwin Goffman (Sociólogo), Douglas Hofstadter (Físico) ou mesmo Philip K. Dick (autor de ficção científica). A diferença é que Hood apresenta fundamento científico para suportar as suas afirmações. Anteriormente tínhamos especulação filosófica sobre o modo como funcionamos, hoje podemos ter um pouco mais de certezas sobre os processos, porque temos mais evidência empírica. Por outro lado Hood não se fica pelas evidências, e avança por questões profundamente filosóficas adentro, trazendo para o centro da mesa a problemática do determinismo, discutindo-o nos fundamentos que suportam o EU, incorrendo nos mesmos problemas dos autores anteriores, a ausência de evidência. Aliás, por isso se diferencia totalmente do trabalho de Damásio no campo da consciência, já que este limita o seu discurso ao que é demonstrável. Damásio apresenta as suas dúvidas, e deixa as questões para quem quiser continuar a investigar, enquanto Hood se deixa levar pela ânsia de dar respostas.

Indo directo a esta diferença com Damásio, Hood não se limita a declarar que o nosso EU é uma ilusão porque construída na base das experiências sociais vividas. A partir desta constatação Hood afirma que na verdade não existimos enquanto EU, porque somos e fazemos apenas aquilo que o sistema em que estamos inseridos nos permite. Ou seja, Hood assume uma perspectiva do mundo determinista, e esquece por completo o que dá origem ao processo de consciência. Mas na verdade, como Damásio afirma no seu último livro, continuamos a não saber o que produz o processo de consciência em nós. A única coisa que sabemos é que “somos feitos” de frágeis memórias, vividas, sentidas e experienciadas, nada somos sem elas. Por isso nos choca tanto doenças como o Alzheimer, quando estas atacam, o nosso corpo continua vivo, mas o nosso EU desaparece. Ou seja, sabendo que não existe nenhum fantasma, alma ou homunculus dentro de cada um de nós, falta-nos perceber como damos sentido a um amontoado de memórias, representações mentais feitas de imagem, som, cheiro e textura. Damásio diz-nos que somos feitos de um fluxo autobiográfico, mas falta perceber como se forma este fluxo, no fundo como emerge a consciência.

Dizer que somos aquilo que o universo nos permite, que fazemos apenas aquilo que as nossas experiências nos permitem, é dar um salto nas etapas de análise do problema. Porque se não sei como emerge a consciência, torna-se muito complicado afirmar que esta simplesmente faz o que lhe é permitido. É verdade que de um ponto de vista determinista, tudo aquilo que fazemos é fruto de condições anteriores, a grande questão que se coloca, é quem para além de nós pode conhecer certas condições anteriores, se não apenas a nossa consciência. Por isso é que só ela pode tomar certas decisões, ainda que saibamos que estas dependem de um conjunto de pressupostos que a condicionam.

Seguindo ainda nesta discussão entre Damásio e Hood discordo completamente das assunções que Hood retira do “experimento do botão” e da sua relação com o livre-arbítrio. Deixo um resumo do experimento, retirado do livro,
“Imagine that I ask you to push a button whenever you feel like it. Just wait until you feel good and ready. In other words, the choice of when you want to do it is entirely up to you. After some time, you make the decision that you are going to push the button, and low and behold you do so. What could be more obvious as an example of free will?…

Of course, in making a decision, we also experience a conscious intention or free will to initiate the act of pushing the button about a fifth of a second before we actually begin to press the button. But here’s the spooky thing. Libet demonstrated that there was a mismatch between when the readiness potential began and the point when the individual experienced the conscious intention to push the button…

Libet established that adults felt the urge to push the button a full half second after the readiness potential had already been triggered. In other words, the brain activity was already preparing to the press the button before the subject was aware of his own conscious decision…

One might argue that half a second is hardly a long time but, more recently, researchers using brain imaging have been able to push this boundary back to 7 seconds. They can predict on the basis of brain activity which of two buttons a subject will eventually press. This is shocking.”
Isto na verdade não apresenta nada de chocante, pelo menos em 2010, depois de tudo o que já descobrimos sobre a ausência de qualquer dualidade mente/corpo. Damásio foi o primeiro a colocar o dedo na ferida, mas depois dele muitos outros o corroboraram. Não existe EU etéreo, o EU é feito de memórias vividas, mas essas estão registadas no nosso corpo. Para além da questão corpo/mente, temos ainda a questão do consciente e não consciente. Sabemos que o nosso córtex pré-frontal mantém acessível à consciência apenas excertos de tudo aquilo que está espalhado pelo nosso cérebro e corpo, e ainda bem, não conseguiríamos lidar com tanta informação simultaneamente. Deste modo é natural que o processo de tomada de decisão de apertar o botão ocorra bastante antes de eu ter a consciência clara de que o desejo fazer, porque antes disso, ocorre todo um processo interno de acesso a memórias espalhadas pelo cérebro, e emoções espalhadas pelas nossas vísceras. A decisão forma-se no corpo, o não consciente ganha ideia de que o deve fazer, e só depois o consciente recebe a informação para avançar, já depois dos músculos do dedo a terem recebido.

Dizer que isto configura ausência de livre-arbítrio é no mínimo estranho. Segundo Hood isto incomoda-nos porque “We want to believe that we are more than fleshy computing devices that have evolved to replicate. We are not simply meat machines.”. Pois é verdade que as pessoas desejam isso, a religião é a maior prova desse desejo, mas a ciência tem feito o seu caminho e demonstrado que é apenas isso que somos, máquinas biológicas. Máquinas que operam condicionadas pela sua própria forma, assim como pela forma do sistema em que estão inseridas. O livre-arbítrio é reduzido, e no fundo podemos apenas dizer que ele se limita ao nosso pensamento, mas existe, ele representa aquilo que chamamos de consciência, o problema é que não percebemos ainda o que é no fundo a consciência.


Links de interesse
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma, in Virtual Illusion

abril 28, 2014

Matemática e animação 3d

Com o advento da informática a matemática tornou-se o centro de praticamente tudo aquilo que fazemos, já que pouco fazemos hoje que não requeira o processamento de um computador. Como os computadores não percebem outra linguagem além da matemática, necessitamos cada vez mais de saber dialogar neste registo. Para demonstrar isto mesmo trago dois pequenos filmes, um sobre a modelação 3d, e outro sobre a animação 3d.




O primeiro filme é produzido pela TEDed e chama-se "Pixar: A Matemática por detrás dos Filmes". Neste podemos ver Tony DeRose, director de investigação da Pixar, explicar como é usada a matemática básica da escola, no dia-a-dia da criação de filmes de animação 3d na Pixar. Ou seja, como é graças a ela que podemos ver os personagens mover-se, e como é também graças a ela que temos conseguido criar personagens cada vez mais "fofos" (com formas curvas).

PIXAR: The Math behind the Movies (2014)

No segundo filme, Morr Meroz, da Bloop Animation, explica a diferença entre o processo de animação 2d e 3d. O interessante neste contexto é percebermos como a transição da animação 2d para a animação 3d operou transformações profundas no processo de criação, que inevitavelmente obrigou a uma maneira de estar diferente no mundo da animação. [Atualização: o filme de Meroz deve ser visto com algumas cautelas, já que contém algumas incorreções, tais como afirmar que a interpolação matemática surge apenas com o 3d. Nesse sentido teria sido mais sensato intitular o filme como As Diferenças entre a animação Analógica e Digital. Por outro lado no que toca ao trabalho de animação 3d, existem outras valências além, da composição a partir de funções matemática, que um animador precisa de conhecer.]

The Difference Between 2D and 3D animation (2013)

A matemática foi sempre vista como o lado oposto das artes, dos processos criativos, mas o que podemos ver nestes dois pequenos filmes, é que nos dias que correm, andam ambas de mãos dadas. Daí que assim como a engenharia tem assumido que precisa das artes para abrir novos mundos conceptuais, as artes precisem de assumir que precisam das tecnologias e matemática para aceder a novos modos de se expressar.

abril 26, 2014

a interacção é a mensagem

A empresa Guy Cotten, especializada em roupas para trabalho no mar, produziu um anúncio de serviço público (PSA) a propósito da necessidade do uso de coletes em alto mar, simplesmente brilhante. O anúncio só pode ser acedido online, uma vez que o centro da sua mensagem só é compreensível através da interactividade. O conceito foi desenvolvido pela agência CLM BBDO, sendo a produção feita pela Wanda Productions e dirigido por Ben Strebel. Se ainda não experimentaram o mesmo, façam-no agora, antes de continuar a ler, em Sortie en Mer (em ecrã pleno e som alto).



O brilho deste trabalho advém do modo como se trabalhou a linguagem de interactividade para expressar o sentir da mensagem. Ou seja, temos um filme com um excelente cenário que nos transporta para uma atmosfera calma, preparando-nos para um choque, mas quando esse choque chega, deixamos de ser meras testemunhas do mesmo, passamos a agir, a participar, e com isso a sentir o choque de forma muito mais memorável. 

Mas não se fica por aqui, tudo isto poderia ter sido desenhado apenas para nos colocar no lugar, mas a forma como a interacção foi concebida, não nos coloca apenas no lugar, vai muito mais longe do que isso, porque nos faz sentir a principal sensação que sente o protagonista, o cansaço. Não conseguindo transmitir a sensação de frio do mar, o facto de termos de desesperadamente continuar a fazer scroll para nos mantermos à tona, exerce sobre nós uma pressão que aos poucos nos vai aproximando mais e mais da realidade do evento. Se juntarmos a isto o facto da experiência ser bastante aberta, ou seja a morte não chega para todos, nem de todas as vezes, ao mesmo tempo, e o tempo que investimos a resistir ser recompensado em progressão narrativa, torna este trabalho num dos melhores anúncios interactivos que alguma vez experienciei.


Em termos gerais, o anúncio situa-se no âmbito dos comuns PSA que usam o choque como prevenção. Temos visto trabalhos só em video, sem interactividade, que são capazes de ser mais aterradores que este. Mas é aí que julgo que estará a diferença deste anúncio, que não se preocupa com o mero choque ou terror, mas antes com o fazer passar pela sensação real, ainda que simulada. Apesar de curta, fico com a ideia de que quem passar por esta experiência dificilmente se esquecerá dela, nomeadamente quando da próxima vez estiver para entrar num catamarã para rumar ao alto mar. A simulação, a participação interactiva desenhada para atingir as nossas emoções, dificilmente descolará das nossas impressões somáticas nos próximos tempos.

Se ainda aqui estão, e ainda não experienciaram, sigam para Sortie en Mer

abril 21, 2014

Inovando o storytelling nos media interactivos

“CIA: Operation Ajax” é uma obra de leitura digital interactiva com uma forte base de banda desenhada (BD). Lançada em onze capítulos entre 2010 e 2012, não é propriamente uma novidade, mas posso dizer que é a melhor experiência que tive até hoje de BD digital. Através de uma lógica que vai para além do “motion comic” e do multimédia documental, faz um aproveitamento soberbo da plataforma tablet.



Ao contrário dos cd-roms dos anos 1990 “CIA: Operation Ajax” não se perde com deslumbramentos tecnológicos e multimédia, somos transportados para o reino da história que nos é contada, e tudo funciona em seu redor. Uma história centrada num evento político do século XX, o golpe de estado no Irão operado pela CIA em 1953. A obra é uma adaptação do livro “All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror” (2003) de Stephen Kinzer, acabando assim por trabalhar a realidade geopolítca atual que vivemos, em profundidade.

Nesta obra a narrativa é o cerne. Para isso contribui imenso a ideia de focalizar a estrutura narrativa na BD, servindo esta muito bem a progressão. Ou seja, a cada toque nosso sentimos o avanço no interior da estrutura de uma prancha, na verdade o conceito de prancha desaparece, o que temos é um “atravessar” das vinhetas, uma espécie de filme entrecortado, quadro a quadro, com animação e som, e a possibilidade de navegar para trás e para a frente. O conjunto cria uma sensação de leitura fluída, com o tempo controlado pelo leitor, mas com uma direcção narrativa capaz de imprimir ritmos e suspense. A isto adiciona-se ainda uma camada adicional de documentos fotográficos e vídeos de época que podem ser acedidos opcionalmente. Segundo Burwen o objectivo desta camada documental não era o mero aproveitamente técnico, mas tinha como objectivo aumentar o realismo narrativo,
"The features we provide will include anything we can find to augment the story we are telling, and to remind people that this stuff really did happen. That real people with personalities and families were making decisions that made a major impact on the way that we think and live today. To be able to be immersed in a narrative, and to have that narrative infused with evidence like photos or newspaper articles from the period in which the story took place, it adds an element of humanity to the drama and intrigue. I can’t go too far in revealing what we have planned, but I can say that I think it’s very exciting." [Link]
Componente documental multimédia

"Ajax" foi criado pela Cognito Comics, com a plataforma The Active Reader da Tall Chair, que funciona sobre Unity, e esteve 4 anos em produção. Parece exagero mas não é, se pensarmos que como livro de BD é desde logo enorme, com 212 páginas, a partir das quais foram produzidas 6 a 7 mil vinhetas animadas!

O que faz a diferença não é a plataforma, mas o facto da animação/interacção, de grande qualidade, ter sido desenhada quadro a quadro. Aquilo que a Marvel e outros têm tentado fazer, é criar um editor que permita rapidamente transformar pranchas em objectos navegáveis. O que temos aqui é um livro de 212 páginas, totalmente reconceptualizado, ou conceptualizado desde o início, para uma lógica de acesso interactivo, com movimento e som. A cada toque no ecrã avançamos um quadro, por vezes 2 ou 3, ou melhor avança-se uma cena. A progressão não está presa a quadros fechados, mas a ambientes que podem ocupar todo o ecrã (a antiga página) que podem desenvolver-se em vários quadros, ou um mesmo quadro no qual vão surgindo novos elementos, novos balões, etc. Não existem vozes, apenas sonoridade ambiente e música, a história continua a ser acedida através dos balões, base da linguagem BD. Ou seja, "Ajax" é todo um novo modo de contar histórias, porque não é livro nem BD, não é animação nem filme, não é site nem jogo, é um novo modo de contar histórias, é um modo integrado e interactivo, e por isso complicado de descrever sem se experienciar.

Três ecrãs que concorrem para criar uma cena, que é uma página completa.

Visão completa de uma cena que comporta vários quadros sobre um quadro geral.

Como é que surge um objecto destes? O seu principal mentor veio da indústria dos videojogos, Daniel Burwen, que trabalhou na EA e Activision, na área da ilustração. Depois de ter estalado a guerra no Iraque, em 2002, e depois de ler o livro de Stephen Kinzer, Burwen encarou o projecto BD como uma forma de dar voz ao que sentia sobre o assunto. Nesse sentido convenceu Kinzer a avançar com a adaptação do seu livro para BD. Mas em 2010, com o anúncio do iPad, resolveu mudar para o formato digital. O guião ficou a cargo de Mike de Seve que depois foi adaptado para BD por Jason McNamara (The Martian Confederacy, Full Moon). Na ilustração as capas foram feitas por Steve Scott (conhecido por Batman Confidential, X-Men Forever), o design dos personagens foi criado por Jim Muniz (X-Men, Hulk), e Steve Ellis (Iron Man, Box 13, High Moon) desenvolveu um capítulo completo. Burwen refere a propósito da complexidade da integração,
“I think the hardest part was learning how to make comics. Ajax is entirely built off traditional comics, and it’s because the traditional compositions work in print that the animation and interactivity works in the iPad version. Figuring out how to create a compelling animation style that honored the print page legacy was key. It was very easy to over-animate the content, and I discovered it’s a fine line between creating a poor film experience versus a rich reading experience.” [link]
Fluxogramas do design de interacção (a qualidade não é a melhor)

Temos aqui um trabalho movido por uma forte vontade de fazer, de comunicar e expressar, e isso faz mover montanhas. Além disso tenho poucas dúvidas em afirmar que Burwen apresenta nesta obra um talento muito especial no que toca à direcção e design de narrativa e interacção. O trabalho contém uma miríade de componentes de grande qualidade, mas a singularidade da obra emerge da direcção, da forma como foi imprimido sentido narrativo e acesso interactivo ao todo.

O maior problema deste formato de contar histórias é que uma produção com este nível de detalhe e qualidade fica muito cara. Se a produção de BD já é hoje considerada cara e de difícil rentabilização, muito por conta do online (pirataria), quando entramos neste detalhe multimédia os preços disparam, tal como diz Don Norman, “What is the future of the book? Very expensive.” Inicialmente cada capítulo era vendido por $7,99 mas recentemente o projecto foi colocado na íntegra grátis na AppStore. Este projecto acaba demonstrando várias coisas, essencialmente que a criatividade e imaginação conseguem ir muito além daquilo que por vezes temos acesso no mercado, mas que a inovação por si só não chega, é preciso que o mercado esteja pronto para a receber.

Trailer

Podem descarregar a obra, para iPad e iPhone, completamente gratuita, na App Store (484 mb).


Links de Interesse
Do comic para a animação interactiva, in Virtual Illusion
Comunicação visual digital, in Virtual Illusion
Brandon Generator, animação interactiva online, in Virtual Illusion
Reinventing the Graphic Novel for the iPadpalestra de Daniel Burwen no SXSW 2012
Narrative Mechanics - The Elements and Spaces of Interactive Storytelling, [Slides] Palestra de Daniel Burwen na React 2013

abril 18, 2014

Videojogos no "Sociedade Civil"

Ontem passei pelo Sociedade Civil para participar numa mesa de discussão sobre o "vício" em videojogos, com Jorge Loureiro, editor da Eurogamer.pt, Rogério Ribeiro, fundador do Game Studio 78 e produtor de Hush, Maria Carmo Carvalho, professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Porto, moderada pela Eduarda Maio. O debate foi interessante e produtivo, apesar do potencial de polémica que o assunto encerra. Julgo que de uma forma geral se conseguiu passar informação no sentido da desmistificação do assunto.

Sociedade Civil: Nelson Zagalo, Rogério Ribeiro, Eduarda Maio, Maria Carvalho e Jorge Loureiro [17.4.2014]

Em síntese, procurei passar a ideia de que o "vício" em videojogos, apesar de real, não é diferente do "vício" em séries de televisão, ou em telenovelas. Existem no entanto algumas diferenças no acesso a este tipo de artefactos que contribuem para que a sociedade sinta que os jogos podem ser mais viciantes, nomeadamente o facto das pessoas não controlarem o tempo que podem estar a ver uma série ou telenovela. Quando acaba um episódio que está a passar na televisão, são obrigadas a desligar. Por outro lado quem já viu séries em caixas de DVD sabe bem o quanto custa parar de ver uns episódios atrás dos outros, muitas vezes pela noite dentro.

Este tipo de vício pode ser desenvolvido também com livros, e em menor grau com o cinema (o cinema tem uma menor capacidade para exercer este vício porque não se estende no tempo). Existem vários casos de miúdos que passam dias inteiros mergulhados em livros, mas aí as pessoas não recriminam, porque a atividade de leitura é vista pela sociedade como uma atividade nobre. E esse é o outro problema dos videojogos,  é que são ainda considerados um media menor. Duas questões concorrem para esta visão, a associação com a brincadeira de crianças, algo que os pais querem afastar dos filhos à medida que crescem, e por outro lado os jogos de casino ou de azar, vistos como um lado negro do ser humano.

Ora os videojogos, apesar de serem relevantes para as crianças, não são um meio usado apenas por crianças. Tal como a banda desenhada, são meios que servem a comunicação humana, e a comunicação pode ser dirigida a qualquer faixa etária. No caso dos jogos, o seu público majoritário está neste momento situado na faixa dos 30 anos. Relativamente aos casinos, não existe qualquer relação, já que os videojogos se situam no terreno do chamado “círculo mágico”, ou seja aquilo que acontece ali não pode ter efeitos na realidade, como acontece num casino em que se pode perder ou ganhar dinheiro real.

No fundo, os videojogos devem ser vistos, como são vistas as séries de televisão, os filmes no cinema ou os livros da literatura. Se me preocupo com aquilo que os meus filhos veem na televisão, também tenho de me preocupar com aquilo que jogam. Se não quero que o meu filho passe o dia em caso fechado a ver filmes, também não devo querer que passe o dia jogar. Todos estes media/artes servem os seres humanos de forma fundamental, informando-os e agilizando-os socialmente, são importantes para a regulação da vida em sociedade, mas todos eles precisam de ser consumidos com moderação, e de forma suficientemente diversificada. Um livro não dá o mesmo que um jogo, nem um jogo dá o mesmo que um filme. Mas na vida, a maior parte daquilo que precisamos e aprendemos, é com os outros seres humanos, por isso os media devem ser usados com moderação, é preciso dar tempo aos que nos rodeiam, eles precisam de nós, mas nós também precisamos deles para crescermos.

O programa pode ser visto na íntegra no RTP Play.

"Monument Valley", estéticas do impossível

Uma obra-prima de design, tanto no design de jogo como no design gráfico. Monument Valley está carregado de influências, não num sentido intertextual, mas antes como raízes conceptuais criativas, que vão de M.C. Escher a Fez (2012), passando por Echochrome (2008) e Wonderputt (2011).



É evidente que não existiria Monument Valley sem MC Escher, um artista gráfico que tem servido de inspiração a muitos de nós pela força do seu trabalho. Escher demonstrou por via do grafismo como a realidade que vemos e que tanto sentido faz, é por vezes verdadeira ilusão. As suas dimensões impossíveis continuam a exercer forte encantamento sobre nós, pela forma como misturam o real e o virtual, criando uma espécie de caminhos para o possível.

Relativity (1953) M.C. Escher

Monument Valley serve-se dessa força encantatória do impossível para criar o seu mundo de jogo e para nos seduzir. Mas se fosse apenas por Escher, seria apenas mais um jogo como Echochrome (2008), entre múltiplos outros pequenos jogos que já tentaram explorar esta ideia. Muitos têm tentado explorar as lógicas visuais de Escher, porque quando olhamos para as suas obras sente-se uma tremenda vontade de lhes dar vida, de as colocar em movimento, de passear dentro delas. Mas a verdade é que muitos dos trabalhos que se têm socorrido deste universo visual ficam-se pela sombra de Escher, não conseguindo ir além daquilo que já temos nas telas.

Echochrome (2008) Sony Japan

Por isso quando tomei conhecimento de Monument Valley fiquei logo algo receoso de ser apenas mais uma mera tentativa de gamificar os mundos de Escher. Mas quando começamos a jogar percebemos que é claramente mais do que isso, uma das primeiras evidências surge com o design gráfico e a atmosfera, que seguem o minimalismo do trabalho de Escher, na evolução visual das suas obras pela cor, movimento e som. Cada um dos níveis possui uma atmosfera bem delineada, e acima de tudo muito coerente em si e no conjunto dos 10 níveis. Todos os elementos — cor, movimento e traço — trabalham para solidificar o universo de jogo, transformando-o num espaço imensamente atrativo e envolvente.

Mas se Monument Valley fosse apenas um conjunto coerente de universos audiovisuais envolventes, seria apenas uma interessante animação. O design de jogo é ele próprio brilhante, no sentido em que serve o universo impregnando-o de interesse, motivando-nos assim a perscrustar cada detalhe de cada ecrã, muito na linha de Wonderputt (no meu Top 10 2011). Porque o design não se limita à resolução dos espaços impossíveis, ele é servido por um conjunto de personagens muito relevantes, que conferem uma camada adicional de valor e envolvência ao espaço, gerando narrativa e jogabilidade, tal como temos em Fez (no meu Top 10 2012).

Wonderputt (2011) de Reece Millidge

Fez (2012) de Phil Fish

De forma geral, podemos dizer que o design é progressivo e bastante balanceado. A cada novo nível, novos elementos são trazidos para o espaço de jogo, e apesar de sentirmos que o jogo espera mais de nós, cognitivamente na sua resolução, nunca nos sentimos presos num espaço por tempo demasiado. Ou seja, a dificuldade foi algo muito bem balanceado, demonstrando que os autores estavam mais interessados em criar um universo interativo que fosse gerador de emoções estéticas do que de resolução de problemas. Aliás a demonstrar esta vontade de criar uma experiência estética, e não uma fórmula de puzzles, é o facto de o jogo conter apenas dez níveis, preocupados em desenhar uma experiência única — com um princípio, meio e fim — longe do mero sucedâneo de níveis sem fim.


Links de Interesse
Página do jogo
Jogo na App Store

abril 16, 2014

"Fallout 3"

Fallout 3 (2008) terminado. Quando saiu joguei apenas até sair do Vault 101, voltei depois a investir mais algum tempo até encontrar a vila Megaton, nada mais do que isso. Achava a interface do jogo demasiado complexa, e o modo de combate rígido e muito errático. Agora resolvi pegar-lhe de novo e dedicar-me a tentar terminar a main quest, tendo-o feito com um total de 16 horas, o que é perfeitamente normal, mas dá conta do facto de ter evitado completamente as side-quests.



Porque demorei tantos anos a chegar ao final? A razão principal tem que ver com a confusão entre géneros de jogo. Fallout 3 apresenta-se inicialmente como um normal jogo de acção 3d em primeira-pessoa, com possibilidade de jogar em terceira, e isso faz com que o jogador procure usar lógicas cognitivas de resolução de jogos desse género. O grande problema é que Fallout é muito mais RPG do que jogo de Acção.

Começando pelo elemento essencial à progressão no jogo, o modo de combate, este está desenhado para nos obrigar a jogar segundo uma lógica RPG. Ou seja, quando tentamos progredir no jogo apenas combatendo em tempo real, o normal em jogos de acção, simplesmente não conseguimos, não acertamos, morremos facilmente, e daí que muitos, como eu, tenham desistido pouco depois de sair do Vault, já que é quando as necessidades de combate a sério começam a ser necessárias. Assim Fallout só se torna verdadeiramente jogável se optarmos por combater através do chamado V.A.T.S. (Vault-Tec Assisted Targeting System), o sistema turn-based de Fallout 3. Através destes sistema somos obrigados a realizar os combates de modo estratégico, e não simplesmente em modo shooting. Ainda assim e por estar muito bem desenhada a progressão de jogo, inicialmente o V.A.T.S. vai parecer complicado, mas quanto mais o utilizamos mais gostamos dele, até que se torna a nossa segunda natureza dentro do jogo.

V.A.T.S. (Vault-Tec Assisted Targeting System)

Ainda dentro da ideia RPG, se o V.A.T.S. é vital nas lutas, o Pip-Boy 3000, que é uma espécie de PDA, é o cerne de toda a jogabilidade. Se o V.A.T.S. se torna na segunda natureza dentro do jogo, é porque o PIP-Boy 3000 é a primeira camada dessa natureza. Sim, porque a camada de acção directa em tempo real sem HUD surge apenas como terceira camada do jogo. Para alguns pode ser motivo de afastamento, mas é a natureza do jogo. Fallout nasceu como RPG, a sua terceira encarnação deu um passo grande no sentido dos jogos de acção e aventura 3d, mas as suas raízes não foram apagadas, o seu fundamento de jogabilidade continua a ser RPG, sendo a acção em tempo real mais dada à criação de atmosfera e progressão narrativa.

Depois de termos interiorizado esta ideia da jogabilidade RPG com narrativa de acção-aventura, o jogo ganha todo um novo encanto, porque abre um enorme leque de possibilidades, impossíveis de realizar em jogos exclusivamente RPG ou acção-aventura. O mundo gigantesco navegável de Fallout 3, filtrado por um sistema complexo de regras do design de jogo, permite desenvolver uma vastidão de possibilidades, que dão ao jogador a sensação de liberdade como nunca antes sentiu em qualquer outro jogo. Mesmo quando comparado com GTA, o facto da jogabilidade possuir um enorme conjunto de regras que alicerçam todas as nossas acções, e essas regras poderem ser agenciáveis pelo jogador, faz disparar o nível de interactividade, e logo de sensação de liberdade no jogo.

Em Fallout 3 as escolhas começam antes de nascermos, já que podemos escolher nascer como menino ou menina, daí em diante todas as escolhas que fizermos irão ditar o nosso modo de agir sobre o mundo. Sem ser um sistema binário de escolhas A ou B, vamos percebendo que o mundo se dá a nós consoante as várias opções que vamos fazendo, tanto na estratégia do desenho do personagem através dos sistemas Personalidade (S.P.E.C.I.A.L. - Strength, Perception, Endurance, Charisma, Intelligence, Agility, Luck) e Competências (Skills), como na forma como decidimos interagir com os outros personagens dentro do universo, como ainda nos modo como decidimos completar cada uma das atividades que encontramos pela frente. O nosso jogo define-se segundo as nossas acções, nós somos responsáveis pelo jogo que estamos a jogar, porque ele reflecte aquilo que escolhemos ser naquele universo.

Pip-Boy 3000, menu das competências (Skills)

Pip-Boy 3000 menu da personalidade (SP.E.C.I.A.L.)

Relativamente ao universo ficcional temos uma atmosfera fantástica, embora ao fim de algumas horas se comece a sentir o seu peso, por ausência de variabilidade, demasiado verde acastanhado, e também o facto do jogo ser de 2008 não lhe permite apresentar atributos visuais em termos de definição gráfica que compitam com trabalhos mais recentes. Ainda assim continua a produzir o seu encantamento, muito graças ao detalhe da estética centrada no universo visual americano dos anos 1950, assim como as vozes de grandes actores, como Liam Neeson, Malcolm McDowell ou Ron Perlman. A verdade é que depois de entrarmos dentro da lógica do jogo, dificilmente conseguimos esquecer o universo, que nos vai atormentando a mente várias vezes ao longo dos dias, quando não estamos a jogar.

Atmosfera de Fallout 3 renderizada em 2014 através de sistemas técnicos modificados. Mais imagens.

Quanto à história, é bastante interessante, não sendo nada de novo, pós-apocalipse com seres humanos que se mutaram por força da radioatividade gerada pelas explosões nucleares. A narrativa segue a lógica do duplo-enredo, em que por um lado procuramos o pai do nosso personagem e por outro tentamos salvar a humanidade através de um elemento base da vivência neste planeta.

Comparando com Metro: Last Light (2013), temos aqui um sistema de jogo bastante mais complexo, mais trabalhado e enraizado na narrativa, por outro lado Metro: Last Light é atmosfericamente mais denso e rico. Claro que Fallout 3 por ser aberto permite uma liberdade de exploração e criativa completamente impossíveis em Metro: Last Light. Ainda assim são dois belíssimos jogos para quem gostar de universos pós-apocalípticos.

abril 15, 2014

storytelling "noir"

"Francis" (2013) é uma curta de animação que podia ser de imagem real, capaz de criar toda uma atmosfera particularmente cativante e envolvente do tipo noir. Todos os elementos de animação, modelação, luz, música, voz off funcionam em total sintonia e ao serviço da narrativa, carregando o espectador ao colo, colocando-o bem no centro da acção, imerso, sem se conseguir mexer, à espera de saber o que irá acontecer.



A história surgiu de um concurso lançado por Ira Glass no programa de rádio ‘This American Life’. Uma das histórias vencedoras foi “Francis” escrita por Dave Eggars, que depois de lida no programa gerou tanto interesse que Eggars resolveu avançar para a transformar em filme com a ajuda de Richard Hickey. Na realidade, a história de Eggars está tão bem estruturada que quase só a sua dramatização audio seria suficiente para nos agarrar. Aliás "Francis" segue em toda a linha aquilo que Glass referiu numa entrevista a propósito dos aspectos criativos do storytelling.

"Francis" (2013) de Richard Hickey

abril 14, 2014

“The Drunkard's Walk”

Leonard Mlodinow, co-autor de Stephen Hawking nos livros “A Briefer History of Time” (2005) e “The Grande Design” (2010), e autor de vários outros livros de divulgação científica escreveu em 2008, “The Drunkard's Walk: How Randomness Rules Our Lives”, um interessantíssimo livro sobre o acaso, e as teorias das probabilidades. Como físico que é, Mlodinow dedica-se a desmontar o universo que nos rodeia, ou melhor dizendo, a desmontar as ideias que criamos na nossa cabeça sobre esse universo. Desde os grandes produtores de Hollywood, aos grandes correctores de Bolsa e CEO de empresas cotadas, Mlodinow demonstra, de uma forma já algo familiar para quem segue os estudos da área de behavioral economics, como a grande maioria dos padrões que encontramos pela frente não passam de meros acasos, coincidências criadas a partir de um conjunto demasiadamente grande de variáveis impossíveis de controlar, menos ainda de prever.


O livro de Mlodinow é um contributo importante para a tomada de consciência do real. O “passeio do bêbado” dá conta do modo como deambulamos por entre um mundo constituído por um conjunto infinito de variáveis, sendo empurrados de um lado para o outro, por leituras, decisões, apostas e feedbacks que constituem o elemento base da existência, o acaso. O simples bater de asas de uma borboleta na China pode fazer cair uma ponte em Lisboa, esta constatação da Física dá bem conta do mundo físico e real em que estamos inseridos.

Para aprofundar tudo isto Mlodinow dedica uma boa parte do meio do livro à discussão das teorias das probabilidades, tornando o livro um bocado mais denso, e menos fluído. Ainda assim é uma componente relevante para quem quiser adensar o seu conhecimento sobre os modelos matemáticos de previsão de acções futuras. Além de nos ajudar a compreender a complexidade em que nos movemos, e que na maior parte do tempo nem sequer nos damos conta.

"And it might be shocking to realize that you are twice as likely to be killed in a car accident on your way to buying a lottery ticket than you are to win the lottery."

O pior é que se achamos que podemos prever o que vai acontecer a seguir, temos ainda mais certezas sobre o modo como as coisas se sucederam à posteriori. Mlodinow dá o exemplo dos eventos que antecederam o ataque a Pearl Harbor que dão uma indicação tão óbvia do que iria suceder, que não se entende como não foram identificados pelos generais. Mas o que Mlodinow nos diz, também é que nesta análise posterior, estamos apenas focados nos eventos alinhados em função do objetivo concreto em análise. Ou seja construímos um padrão que liga todos os eventos que justificam o objectivo, e descartamos todas as variáveis que não interessam. Quando vemos a arena limpa, parece-nos cristalino que só aquilo poderia suceder. O mesmo se poderia dizer do 11/9. Estes eventos não são gerados pelo acaso, foram pensados e planeados, mas até acontecerem, são completamente impossíveis de prever, porque  o cruzamento das diversas informações poderiam conduzir a múltiplas hipóteses, ou seja probabilidades.

Ou seja, constatamos que se chega a um ponto de impossibilidade de replicação de acções. Como diz Mlodinow, se fizermos um exame a uma disciplina hoje, e um novo exame amanhã à mesma disciplina, os resultados irão divergir. O número de variáveis que rodeiam essa acção é demasiado elevado, e incontrolável, apesar de nos parecer algo extremamente objectivo. E é por isso que precisamos de aprender a relativizar muitas das limitações artificiais que fomos criando na nossa civilização. As provas que fazemos na escola, ou para entrar na universidade, as entrevistas de emprego que fazemos, os trabalhos em que damos o nosso melhor, etc., etc.. Apesar de termos a ideia de estar no controlo de tudo isto, a nossa capacidade de atuar sobre a imensa variabilidade do universo é bastante reduzida. Isto não quer dizer que devemos deixar tudo à sorte, e esperar que nos caia de uma árvore no colo. Podemos contribuir para mudar as condições, exercendo esforço para ser mais competente, e procurando o melhor contexto para que as nossas competências sejam melhor aceites, mas não podemos controlar muito de tudo o resto, não podemos ser todos como Albert Einstein, Bill Gates, Marc Zuckerberg ou Steven Spielberg. Não é uma mera questão de genes, é muito mais do que isso, é um conjunto de variáveis de espaço e tempo que condicionam muito daquilo que somos e muito daquilo que podemos ser.

Aqui surgem ideias antigas, como o determinismo, que parte das premissas básicas da Física e Química, nomeadamente das leis de Newton e do princípio de Lavoisier, que nos conduzem para uma noção do funcionamento do universo no qual cada ação tem uma causa e uma consequência. Esta abordagem teórica do mundo diz-nos que podemos prever com exactidão o futuro a partir da análise do estado atual do universo. O problema surge quando se inicia o processo de análise desse estado atual, e nos damos conta que temos de ir além do bater de asas da borboleta. Chega-se a um número de variáveis a analisar tão imensamente grande que apenas para calcular o minuto futuro seguinte, precisaríamos de uma calculadora mais complexa que o próprio universo. Ou seja, apesar do determinismo, o cálculo do futuro é apenas executável pelo próprio sistema. O universo é a calculadora que pode calcular o que vai acontecer a seguir. Qualquer tentativa de encurtar este processo de cálculo, tende a divergir muito rapidamente. Por outro lado poderíamos até construir uma calculadora que fosse mais lenta que o próprio universo, e o resultado seria certamente igual, o problema é que deixaria de prever o futuro, para passar a identificar o passado.

Se tudo isto parece estranho ou exagerado, impossível ou ridículo, é porque simplesmente o nosso cérebro vê a realidade de forma diferente. Ou seja, o nosso cérebro não consegue processar o mundo à sua volta matematicamente, porque não consegue suportar a imensidade de informação que o rodeia. Por isso desenvolveu um conjunto de artimanhas, as histórias e narrativas, para poder condensar a informação em blocos mais pequenos de informação e assim conseguir atribuir-lhes significado. Para isso precisou de desenvolver estratégias de hierarquização, categorizarão, padronização, etc. da informação, tudo lógicas que funcionam muito bem no interior das nossas mentes, mas têm pouca ou nenhuma relação com a realidade. O cosmos em que estamos inseridos pode até ser fruto de tudo o que o antecede, mas dada a sua complexidade, não nos resta outra alternativa a aceitar o acaso, o resto é mera ilusão, interpretação fruto das nossas necessidades de imaginação e comunicação.


Nota: O livro está editado em Portugal com o título "O Passeio do Bêbado. Como o Acaso Rege as Nossas Vidas" pela Bizâncio.