Imagem 1 [fonte]
Nunca falamos de manipulação de texto, ou seja não dizemos que Saramago manipula as letras das palavras para dizer o que diz. No entanto dizemos que um criativo publicitário ou um fotojornalista, manipula imagens. Recriminamos socialmente ao ponto de descredibilizar quem "manipula" imagens, seja uma companhia de cremes que usa um modelo manipulado [ver Imagem 2], seja um fotojornalista que altera uma imagem de modo a corresponder mais concretamente ao que viu e ao que precisa de expressar [ver Imagem 1]. Criou-se mesmo uma ciência, digital forensics, para descobrir os chamados embustes, na qual o trabalho do grupo de investigação de Hany Farid é uma autoridade.
Imagem 2 [fonte]
Porquê esta diferença de pesos em dois media que nada mais fazem do que expressar ideias? Simplesmente porque partimos do pressuposto errado de que uma fotografia vale tanto como a própria realidade. O artista de Photoshop brasileiro, Waldemar Júnior (aka Mandrak), cita na sua página, uma frase de Fernando Pessoa (aka Alberto Caeiro),
"O Universo não é ideia minha.
A minha idéia de Universo é que é ideia minha."
A questão é que a fotografia, à semelhança do texto, é uma construção. Uma construção que acontece numa sequência tripartida: pré-produção, produção e pós-produção. No momento de pré-produção falamos do modo como o fotógrafo, o emissor e artista, se posiciona face ao objeto. Falamos ainda de tudo o que é colocado em evidência na frente da objetiva, desde o contacto direto com as pessoas ou objetos da imagem que pode passar pelo pedido de execução de ações ou de expressões, a chamada encenação, ao contacto indireto da escolha das condições climatéricas ou do ambiente dentro de estúdio. Já no segundo momento, a produção ou a criação da impressão de imagem propriamente dita, temos de levar em conta a máquina utilizada, o tipo de sensor, as objetivas, os filtros, os flashs tudo o que é utilizado pelo dispositivo de produção da impressão.
No meio de tudo isto, o terceiro momento, o da pós-produção, parece ser o único do qual se fala quando se quer recriminar a fotografia. Este momento corresponde ao momento no qual a imagem é otimizada, no qual aquilo que não correu bem nas duas etapas anteriores se pode ainda corrigir. Ou mesmo, sendo um terceiro ato, pode desde o início ter sido planeado em pré-produção, que se executaria aquela componente da imagem apenas no momento de pós-produção.
Imagem 3 [fonte]
As duas técnicas mais usadas desde o aparecimento da fotografia, têm sido o simples adicionar e o retirar, o exemplo mais antigo conhecido, data de 1860 e diz respeito a uma imagem de Abraham Lincoln [ver Imagem 3], diga-se que dele parece que apenas a cabeça resta. Mais recentemente estas técnicas evoluíram e passaram a definir-se por processo de retocar. Este processo pode incluir aumento/diminuição de elementos específicos na imagem, assim como o seu tratamento em termos de brilho, luz, sombra, mas muito mais. O site Worth 1000, em homenagem ao ditado, de que uma imagem vale mais do que mil palavras, é o local aonde podemos ir para averiguar o estado de complexidade destas técnicas. O Worth1000 possui várias categorias de concursos em que os utilizadores são chamados a produzir as melhores manipulações fazendo uso das técnicas mais elaboradas e complexas que possamos imaginar.
I Wont Zip It (2010) trabalho de Bruno Sousa vencedor do concurso Zip It 8 do Worth1000
Em termos de recriminação social face à manipulação fotográfica, os temas mais quentes têm sido: o Corpo-humano, a História, a Política, a Discriminação, a Informação, o Tabaco. Cada uma à sua maneira tem provocado reações fortes de associações, sociedades, políticos, da população.
Imagem 4 [fonte]
A primeira reação às imagens de Kim Kardashian [Imagem 4] acima é de ira para com a moda, as revistas da moda, e principalmente para com a manipulação realizada sobre as imagens. Nessa manipulação podemos identificar algumas áreas fortemente retocadas - a celulite, as ancas, os braços, a barriga, a roupa, o topo da cabeça, e o pescoço. Podemos depois ler o que a próprio modelo tem a dizer sobre o assunto que fez correr muita conversa online. Mas mais importante do que saber o que ela tem a dizer, são as imagens que ela nos revela de toda a sessão, através das quais podemos procurar perceber melhor como se chega até àquela fotografia final. Perceber que a manipulação digital que podemos identificar nestas duas imagens, são apenas a ponta do icebergue. Que toda a imagem é uma construção visual, que não estamos a ver a pessoa real, estamos sim a ver uma imagem que é baseada naquela pessoa.
Mas sobre a componente de manipulação digital podemos dizer que em termos de evolução da arte de pós-produção fotográfica o tema do corpo-humano é dos que mais tem feito evoluir as ferramentas (ex. Photoshop) e as técnicas de manipulação. Uma rápida pesquisa pelo YouTube permite-nos encontrar tutoriais de excelência sobre o retoque do corpo-humano, desde a Dieta Virtual, ao Aumento de Peito, passando pelos Olhos que Brilham e mesmo técnicas Regresso ao Normal, uma espécie de reverse engineering.
Mas se dúvidas ainda houver, quanto ao papel meramente expressivo, em que a realidade que conta é aquela que se fabrica à saída da pós-produção, vejam-se os seguintes dois exemplos que opõem o mesmo tema, de um lado a discriminação negativa [imagem 6], do outro a discriminação positiva [imagem 7]. Na Imagem 6, a Microsoft precisou de realizar a localização de conteúdos do seu site existente nos EUA para a Polónia. Já na imagem 7 a revista Fun canadiana precisava de evidenciar a sua política editorial de diversidade étnica.
Imagem 6 [fonte]
Imagem 7 [fonte]
Sei bem que este é um assunto delicado e complexo em demasia para tratar apenas num pequeno texto. Apesar de tudo o meu maior interesse na produção deste texto foi tentar perceber até onde podemos ir na tentativa de compreender as diferenças de perceção da comunicação fazendo uso de diferentes media. Em certa medida perceber melhor a essência do fenómeno da manipulação fotográfica. Ou seja não me interessa aqui defender ou criticar a arte da manipulação, apenas e só discuti-la abertamente para a tentar compreender melhor.
Go your own Road (2008) de Erik Johansson
Em termos de discussão mais filosófica sobre os efeitos e impactos deste universo imagético recomendo vivamente a leitura de Simulacres et Simulation (1981) de Jean Baudrillard e "La Société du spectacle" (1967) de Guy Débord.