Título original: Le Scaphandre et le Papillon
Título internacional: The Diving Bell and the Butterfly
de Julian Schnabel, França, 2007
Toca-nos o sentir, toca-nos a percepção, toca-nos a emoção. Não conseguimos ficar indiferentes a uma condição que pode vir a ocorrer connosco próprios. Ao contrário das doenças de degeneração cognitiva onde perdemos a noção de identidade e dessa forma o mundo se torna num emaranhado de abstracções o que temos aqui é a manutenção completa da intelectualidade em detrimento da parte física, aquela que tantas vezes desprezamos por pensarmos que nada mais é que uma habitáculo para o nosso ser. Damásio refere que a nossa emoção fica registada no nosso corpo e não propriamente na nossa mente, e desse modo não existe lugar para criar uma divisão corpo/mente. Sem o corpo podemos continuar a imaginar e a sentir, contudo isso estará sempre ligado à memória que fixou os marcadores emocionais do que é bom e do que é mau, perde-se o acesso à regeneração desses mesmos marcadores. O que aqui vemos é alguém soterrado pelo seu corpo, uma espécie de escafandro que vai puxando o que resta da sua vida para o fundo através de um enorme peso gravitacional e à medida que nos vamos afundando as águas vão ficando mais turvas e indecifráveis. Temos sempre a ideia de que a visão é o sentido mais importante de todos e que este nos dá acesso ao mundo, mas não chega, falta a percepção física desse mundo que nos é dada pela ecologia do ambiente (Gibson, 1969) e que nos chega através de milhares de informações que o nosso sentir (que é mais do que aquilo que os nossos 5 sentidos realizam individualmente) filtra e transforma em informação essencial à manutenção do nosso ser no mundo.
Como filme, a primeira meia hora é sem dúvida o filme que se quer mostrar, tudo o resto é uma reconstrução dramática de algo que já não existia, mas que serve para contar a história ao espectador e não prolongar a sensação dolorosa daquela condição. É nesta primeira parte que o filme consegue ser surpreendente do ponto de vista estético pondo em evidência o que é passar por aquela condição. O cinema conseguiu uma vez mais usar toda a sua arte para exemplificar de um modo, diria quase perfeito, uma condição humana nova para todos nós. Poderia-se pensar que o livro escrito pelo próprio Jean-Dominique Bauby que dá suporte a este filme poderia ser visto como brotado do interior da fonte desta condição, contudo o cinema como arte audiovisual é o modo mais completo para a tradução do sentir desta pessoa. O filme, é assim algo que se deixa entranhar, porque não é filme, é antes uma projecção de algo que nos intimida e que nos suga para o seu interior. Neste espaço temporal percebemos a condição daquela pessoa, sente-se perfeitamente o que é estar limitado a uma projecção do mundo sonoro e visual apenas, o que é poder apenas mover a órbita do olho em busca da informação. Nestes 30 minutos, poderia dizer-se que a empatia é difícil para com o personagem, que o é porque não o vemos e vemos apenas o que ele vê, mas por outro lado, sentimos o que ele sente, e isso vai muito além do que poderiamos imaginar. A tela consegue uma tradução do que o personagem vê e do modo como vê, bastante carregada de expressividade através dos enquadramentos e da fixação ou permanência temporal nesses enquadramentos que nos transmitem o que pensa o nosso personagem sobre a realidade à sua volta. Sem dúvida um grande trabalho de Julian Schnabel, apesar de a restante parte do filme parecer por vezes não passar de um aglomerado de momentos esteticamente apelativos dada a beleza da imagem, sonoridade e alguma música fácil (pop), mas que podemos sempre procurar enquadrar no âmbito da "vida normal" de um editor de uma famosa revista de moda. Schnabel autor do belíssimo Basquiat, ganhou o prémio da melhor realização em Cannes e recebeu uma nomeação para os Oscares por este trabalho para além de uma extensa lista de outros prémios.
Como objecto de análise e investigação não posso deixar de reflectir sobre o impacto deste acesso ao mundo via sentido visual (e auditivo) e colocar em evidência os trabalhos realizados no campo da realidade virtual. Trabalhos esses que se têm centrado no campo da visão, com alguma sonoridade à mistura mas à qual vai faltando exactamente essa percepção do ambiente. O que podemos ver neste filme é realmente o quão difícil é perceber o que nos rodeia só com a audição e a visão, ou melhor o quão difícil é estar limitado a isso apenas, onde ficam todas as restantes sensações. O que este filme coloca em evidência é que o acesso RV é uma prisão e não uma libertação deste mundo enquanto projecção da primeira-pessoa, seguindo o filme, o acesso VR será um acesso do tipo Locked-in Syndrome. E assim este é mais um ponto em favor da teorização da ausência de empatização para com o personagem principal que não se deixa ver porque o acesso é extremado e mantido na primeira-pessoa, ou seja em câmara-subjectiva que tenho vindo a defender. Ou seja, precisamos de ver, o que o personagem vê e sente desse mundo, e não apenas ver através dos olhos deste e por isso mesmo o filme foge desse registo ao fim de pouco tempo. Percebe-se durante aquela primeira parte o quão opressivo pode ser um acesso à realidade dessa forma, o acesso restringido ao que se vê e ouve é manifestamente insuficiente e nem mesmo a voz off consegue adocicar aquela condição. Não queremos apenas ver o mundo como ele vê, mas queremos senti-lo, acima de tudo queremos percebe-lo e dessa forma o livro consegue ser muito mais forte na empatização que cria para com os seus leitores do que o filme, mesmo sendo o filme muito mais fiel à condição do seu autor.
Toda esta discussão faz-me pensar nos ambientes virtuais da actualidade e percebe-se que o Second Life não seja apenas uma perspectiva em primeira-pessoa, mas de terceira-pessoa. Imaginemos se esta pessoa, dentro de um escafandro, pudesse projectar o seu próprio corpo em outro corpo e controlá-lo, sem controlar apenas a visão e audição. Porque o que choca Jean-Dominique não é a falta de mundo, ele próprio refere, que pode imaginar tudo o que ele quiser, contudo o que lhe falta é a interacção com esse mundo. A metáfora do cérebro dentro de uma cuba de água, alimentada pelas teses metafísicas de Descartes caem aqui completamente por terra. Não há lugar para esses devaneios, não há lugar para esses desencantos com a materialidade e o terreno, o que nos atrai é o aqui e agora, é a relação com os outros é a interacção com os outros e para voltar ao core do meu trabalho é o contacto físico com os outros, o toque.
Trailer de Le Scaphandre et le Papillon (2007)