Finalmente! Esta entrevista vem desde o ano passado. Primeiro demorei eu meses a escrever as perguntas e a enviá-las ao Artur, depois demorou ele porque o apanhei em mudanças. Enviei as perguntas quando ele ainda trabalhava na
Ingreme em Lisboa, hoje as respostas chegaram-me de Reykjavik, onde o Artur trabalha como Senior VFX Artist na
CCP Games, a empresa por detrás de
EVE Online.
O Artur Leão nasceu no Porto há 31 anos, e é um dos artistas 3D mais conhecidos na cena nacional. Para além de ter passado por várias empresas nacionais, entre as quais a
Dreamlab de que aqui falei há uns meses, a sua actividade online tanto nos tempos do IRC (aka Kameleon) como mais tarde criando o fórum Dimensão3 tornou o seu trabalho amplamente conhecido em Portugal. O mais interessante não é ele ter-se tornado conhecido por estes meios, é antes ter utilizado estes meios como o seu centro de aprendizagem. O Artur é um auto-didacta autêntico, não realizou qualquer curso na área, aprendeu através da pura experimentação e através da continuada discussão com os pares.
A leitura desta entrevista é profundamente esclarecedora deste modelo de aprendizagem, e não é caso único. O Artur faz parte de uma geração como o
Tiago Sousa (Crytek) ou o
Bruno Ribeiro (Sony Europe), entre outros, que começaram a aprender com o online no final dos anos 1990 com a massificação da internet. Pessoas que andaram a estudar mas nunca acabaram os seus cursos, porque estes não lhes ofereciam o conhecimento de que precisavam e pelo qual ansiavam. Descrever isto desta forma pode dar a entender que este deveria ser o caminho a seguir por todos, mas longe disso. Estes casos que cito, como o Artur, são pessoas excepcionais, com uma motivação intrínseca desmedida, uma sede de aprender acima do comum e só isso explica que tenham conseguido "sozinhos" chegar onde chegaram. Aliás o próprio título do sítio pessoal do Artur é um bom indicador desta motivação -
You can do it! VFX - mas vejam o seu Showreel e leiam a entrevista para perceber melhor tudo isto a partir das suas palavras e dos seus trabalhos.
Artur Leão Showreel 2012
1 - Como entraste no mundo do 3d? Qual foi o teu primeiro software?
:: Um bocado por engano. Um dia um colega emprestou-me um CD do Red Hat Linux 5 e, por acréscimo, vinha lá um CD que trazia o 3D Studio R4 para MS-DOS. Curioso, instalei e fui ver o que era. Lá mexi e carreguei nos botões, e tal, e lembro-me perfeitamente que fiquei fascinado quando descobri o material editor com os "sample slots", ou seja, as esferas com o material a aplicar. Tinha ouro, prata, latão, cobre, e só esses samples deixaram-me maravilhado! Confesso que ficava a olhar para aquilo durante uns segundinhos, a apreciar. No entanto, nunca fiz nada de jeito nessa versão do 3D Studio.
Uns tempos depois, e como estive sempre mais ligado à área da programação, fui aprendendo umas coisas muito interessantes (o famoso
modo 13h...) através de uma revista chamada PC Mania (revista espanhola com bastantes tutoriais em Pascal/Assembly). Como fazer objectos em 3d e representá-los numa tela a 2d, modos de shading, muitas dessas coisas relacionadas com a
demoscene, que na altura já tinha algum impacto em Espanha (ainda me lembro de tentar organizar a Demoparty 99 no Porto, mas sem sucesso).
Depois de uma aprendizagem regular de gráficos e interfaces em Pascal, a revista trouxe também o POV-Ray, que misturava de forma bem clara as duas coisas a que eu estava mais atento nessa altura: programação e 3D. Li imenso, fiz muitas esferas e planos com checkerboards, e lembro-me de uma animação de uma bola a saltar que demorou uma semana a renderizar!
3D Studio R4 para MS-DOS
2 - Como é que realizaste o teu percurso de aprendizagem?
:: Vem um pouco na continuação do que disse anteriormente, em que tudo aconteceu muito cedo na minha vida. Comecei aos 11 anos a aprender algoritmia e Pascal na antiga Microcamp e tive, felizmente, um professor fantástico que me passou dados valiosos e uma forma de pensar que me acompanha até aos dias de hoje. Por isso, obrigado Professor Eusébio Dobrões, pelos 6 meses de algoritmia antes de sequer tocar num teclado para programar.
Depois desta fase, passei pela tal revista PCMania, até que arranjei o meu primeiro trabalho... em programação, claro, nada de 3D, nem de longe nem de perto. Pouco tempo depois, tive a oportunidade de trabalhar em Autocad como desenhador/projectista de moldes para plástico e fundição injectada, a ganhar melhor e com melhores condições, e nem hesitei.
Passado algum tempo, e graças à minha vontade de querer sempre mais, comecei a explorar softwares que permitiam saltar a fase de desenhar os moldes primeiro em 2D para depois voltar a desenhá-los em 3D. Descobri assim o SolidWorks, onde fazia tudo de raiz em 3D e os desenhos 2D eram praticamente obtidos de "borla". Nesta fase, comecei a sentir o “bichinho”, ou seja, já não fazia só os moldes em 3D, fazia as peças, depois já não fazia as peças só no SW, já as exportava para o Max e tentava fazer renders hiper-realistas..... Eram horríveis, mas era sempre mais espetacular para o cliente ver um objecto rendido no Max com um material cromado e o "Lakerem2.jpg" a reflectir no environment do que uma peça em Phong shading!... E assim começou.
Lakerem2, material muito utilizado para efeitos de reflexão nos objectos
2 - Porque criaste um forum de discussão, Dimensão 3? Quais eram os objectivos iniciais, e em que se transformou?
:: Muito simples. Há muito tempo atrás, eu era operador no #3dsmax da PTnet e passava horas a teclar, a falar de 3D, a aprender, a tirar dúvidas, etc, até que um dia virei-me para o Hugo Adão, na altura também operador do canal, e disse-lhe que devíamos ter um sítio onde pudéssemos guardar a informação com perguntas que eram ali esclarecidas. Era um desperdício isso desaparecer nos confins do IRC. O pessoal estava a começar a migrar do IRC para os fóruns, por isso pareceu-nos lógico e, na altura, era o mais próximo de algo "social". Assim nasceu a Dimensão3, que era suposto ser mais do que um fórum, mas até hoje nunca foi mais do que isso. Acho que durante um bom tempo, transformou-se num hub importante para os artistas de 3D em Portugal, onde muita gente se conheceu, aprendeu, partilhou, se uniu, onde se fez umas coisas divertidas, como concursos, entrevistas, etc. Custa-me dizer isto, mas a D3 nesta fase da minha vida, está de facto em total e completo stand-by.
Gostava de dizer ainda que antes da Dimensão3 existiu o CGPortugal, que foi de facto o primeiro sítio onde se falou de 3D em português e onde, pela primeira vez, se reuniram pessoas apaixonadas pelo 3D. Essa ideia partiu inicialmente do Paulo Ricca, e eu e o Hugo Adão também fizemos parte.
4 - Quantas horas investias por dia no início, e quantas horas investes hoje num dia normal?
:: Ao início, sinceramente, não via mais nada à frente. Posso dizer que investia praticamente todo o meu tempo sentado em frente ao computador, à parte do dormir, comer, ir às aulas. Hoje em dia, e porque gosto do que faço, estou no mínimo 5 horas por dia no computador. Não quer dizer que esteja necessariamente a aprender ou a ser produtivo, mas com o tempo também aprendi uma coisa que é: ser bom nesta área não implica apenas fazer coisas em frente ao computador, por isso tenho tentado dedicar mais tempo a coisas que aconteçam “fora do computador”. Ouvir música, ir ao cinema, teatro, concertos, exposições, excursões, são tudo coisas que me dão experiências e adicionam conhecimento que mais tarde posso vir a utilizar na minha área de trabalho.
5 - O que te dá mais gozo fazer no mundo 3d? No teu reel destaca-se o shading, lighting e Render, por necessidade ou porque é o que mais gostas? Podes explicar um melhor em que consistem estas especializações do 3d?
:: Sinceramente, gosto de tanta coisa… Sei o que não gosto, e mesmo assim tenho dúvidas, que é animar personagens. De facto, as áreas em que me desenvolvi mais foram as de lighting/shading e rendering. Quando trabalhava em archviz via os renders espectaculares no fórum do
Evermotion e queria sempre “fazer como eles” e, pronto, passava horas a dissecar a informação lá contida. Penso que essa foi a minha primeira fonte de verdadeiro conhecimento relativamente ao 3dsmax. Veio um pouco por necessidade, mas o bichinho ficou lá e, pelos vistos, até tinha jeito, porque foi graças a isso que consegui um emprego na área da publicidade.
De uma forma muito geral, lighting/shading refere-se à iluminação das cenas, como no teatro ou nos sets de cinema/publicidade em que existe alguém que tem de colocar as luzes e dar um ambiente àquilo que está no cenário. O shading especificamente consiste na criação dos materiais que constituem todas as coisas que vês em 3D, como por exemplo definir se a toalha de mesa é de pano ou plástico e colocar os parâmetros correctos para que o pano pareça pano e o plástico pareça plástico.
Quanto ao rendering, apesar de haver uma posição que se chama “render wrangler”, que consiste em monitorizar os renders e certificar que sai tudo como era suposto, eu sempre estive mais ligado a outra coisa, o “scene assembly”. Hoje em dia, o “scene assembly” vê-se cada vez mais, até porque as cenas vão aumentado de complexidade e tem de haver alguém ou uma equipa que reúna e componha tudo o que as outras pessoas/equipas estiveram a fazer para que saia algo de útil para passar para a composição.
6 - Porque é que tão difícil aprender 3d? Falta de sensibilidade artística, falta de destreza visual, falta de vontade e motivação para trabalhar o tempo suficiente, ou outra?
:: Não acho que seja difícil aprender 3D. Hoje em dia, existe muita informação, quer gratuitamente quer por parte de empresas que se dedicam exclusivamente à criação de material de ensino. O que poderá existir são pessoas que pensam que fazer 3D, ou “coisas-como-o-Senhor-dos-Anéis”, implica saber apenas os menus dos programas. Como é óbvio, não implica apenas isso, daí que tal como disse há pouco, ache cada vez mais importante aprender coisas de outras áreas. Ao longo do meu percurso, posso dizer que as pessoas que faziam 3D com formação em Artes eram normalmente melhores do que as que vinham de outras áreas. Tinham uma maior sensibilidade para certas coisas. Por isso, é sempre bom saber mais do que os menus e há medida que evoluis vais sentindo essa necessidade, caso contrário, estagnas.
7 - Para trabalhar nesta área basta escolher um pacote 3D e trabalhar 100% nele ou é preciso aprender outras coisas do tipo After Effects, Nuke, Maxscript, etc? Porquê, é uma questão de ser generalista, ou é mais do que isso, uma vontade de possuir alguma polivalência?
:: É óbvio que acabas sempre por ter uma ferramenta de eleição, mas isso não significa que não precises de outras para fazer o teu trabalho. Provavelmente toda a gente que faz 3D precisa de saber fazer algo no Photoshop, por exemplo, ou noutra ferramenta qualquer de edição de imagens/video. A questão de ser generalista prende-se mais com o facto de não existir muito espaço em Portugal para pessoas que façam só uma determinada tarefa, logo tens de ser polivalente/generalista para sobreviveres no mercado.
8 - Qual o teu melhor trabalho de sempre? E qual o que te consumiu mais tempo a desenvolver?
:: Pode parecer cliché, mas realmente é difícil eleger apenas um. Há, no entanto, um anúncio da Vodafone que me marcou. Foi o primeiro em que tive oportunidade de trabalhar e, ainda por cima, sozinho. No final, correu tudo bem, mas a responsabilidade que senti foi enorme e acabou por abrir caminho para continuar a trabalhar noutros anúncios. Também tenho muito carinho pelos que foram feitos para a marca Chipicao, porque foram resultado de um grande trabalho de equipa, e gostei sempre do resultado final. Há outros trabalhos que me deram gozo a fazer, como o Arad, uma curta-metragem de um realizador iraniano que trabalha na Sony, o video de apresentação do novo estádio do Atlético de Madrid.
O que me deu mais trabalho.... Todos!... Mas talvez possa salientar um trabalho feito para a Nissan que foi uma dor de cabeça por várias razões, mas mais uma vez tudo se resolveu bem, e é isso que interessa no final do dia.
9 - Tendo em conta que trabalhas há mais de uma década com animação e modelação 3d, como é que te viraste para a programação e para o desenvolvimento de aplicações para iPhone? Faz sentido na tua carreira?
:: Como disse há pouco [nas primeiras respostas], estive ligado à programação desde o início do meu percurso, por isso é natural que tente usar isso como uma vantagem, seja para mim ou para equipa com que trabalho. O desenvolvimento de aplicações para iPhone surgiu invariavelmente da minha curiosidade em experimentar e testar coisas novas. Essa curiosidade leva-me a escrever centenas de scripts e/ou programas que guardo no meu disco ao longo do tempo. No entanto, o intuito foi mais comercial quando comecei a desenvolver para iOS, e daí resultou a minha primeira app, o
iDevCam. Isso faz sentido na minha carreira, porque gosto de estar ligado às novas tecnologias, e mesmo que não seja eu a desenvolver as futuras versões da minha app, quero continuar relacionado com isso.
iDevCam Promo 1
10 - Olhando para o teu percurso pareces encaixar-te naquelas pessoas insaciáveis, sempre com vontade de aprender mais e mais? Como é que podemos estimular isso noutras pessoas?
:: Sim, gosto sempre de saber mais sobre tudo o que esteja relacionado com as novas tecnologias. Desde pequeno que sempre tive a ânsia de querer “chegar ao futuro". Lembro-me de ter 14 anos e pensar como seriam as coisas no ano X.
Tenho alguma dificuldade em responder sobre como estimular isso, mas posso dizer que nunca fui nem sou uma pessoa muito ligada à leitura, por exemplo. A vontade de querer aprender nem sempre tem de parecer aborrecida ou estar ligada a “marrar em livros”. Gosto de aprender pela experiência e talvez isso seja um bom caminho para as próximas gerações. Dar-lhes a oportunidade de interagir com as coisas, de as aprender a fazer desde tenra idade. Talvez essa possa ser uma solução, quanto mais não seja para aprender o que não gostam.
11 - Que dica darias a um jovem que visse hoje o Toy Story 3 e saísse da sala a pensar que queria fazer daquilo a sua vida?
:: Dir-lhe-ia que será precisa muita dedicação, paixão pelo que se faz e muita determinação, porque realmente não é um mundo fácil, principalmente para quem está a começar, sobretudo em Portugal. Uma coisa é certa: muita gente consegue fazer disto a sua vida e é feliz. Pixar, Dreamworks, Bluesky, etc, é possível :)