Sócrates, Academia de Atenas
Começando pelo aumento massivo do ensino superior nas últimas décadas, um aumento de instituições e recursos humanos que inevitavelmente começaria a gerar pressão para que se justificasse o dinheiro investido pelos contribuintes. O conhecimento per se não interessava propriamente a quem ia chegando ao Ensino Superior, já que este era visto como “centro de treino para emprego”. Não se tiravam médias de 19 para ir aprender Medicina, mas apenas e só para ter acesso ao emprego de médico. O conhecimento era um cartão de emprego. Ora, durante algum tempo a relação entre o ensino superior e a empregabilidade foi suficiente para justificar a sua existência, mas essa linha foi ultrapassada quando os números aumentaram exponencialmente e se percebeu que o ensino superior não tinha cartões de emprego para oferecer a todos. Foi então preciso encontrar formas mais criativas de justificar o investimento massivo.
Produzir pessoas com elevados recursos de conhecimento precisava de ciclos muito grandes, não era só o tempo que demorava a produzir o empregado “superior”, era ainda preciso bastante tempo, fora da academia, para este começar a produzir, por isso era preciso encontrar formas alternativas de aumentar o ciclo de produção das universidades. Reduzir o número de anos dos cursos ajudou, Bolonha tinha sido uma vitória, mas sabia a pouco. Muito melhor era se pudéssemos transformar o conhecimento diretamente em produto, politicamente classificado como “transferência de tecnologia” ou “ligação à sociedade”. Os professores precisavam então de acordar para o mundo à sua volta, sair das suas “torres de marfim” e “falar” com a sociedade. Na verdade, e visto de fora, os professores faziam muito pouco, ou nada, diziam que se dedicavam ao conhecimento, mas isso era pouco diferente de se dedicar ao ócio, era preciso pô-los a trabalhar. Havia então que secundarizar o aprender e ensinar, e passar a produzir. Dizia-se, ‘O conhecimento só vale a pena quando aplicado em produtos’, quando 'dá dinheiro'. Chamavam-lhe inovação e criatividade, e diziam à academia que ela tinha a responsabilidade de salvar a economia dos seus países. Com isto esquecia-se a sua principal função, o conhecimento e a formação de pessoas com esse conhecimento, ao que se acrescentou ainda o declínio da natalidade. Era preciso fazer algo que mantivesse o fluxo de estudantes.
Os rankings vieram “ajudar” as universidades mais antigas que tinham perdido espaço para a emergência das que tinham surgido como “centros de formação”. Estar bem posicionado no ranking permitia às universidades tornarem-se atrativas, e assim reganhar alunos a essas instituições “arrivistas”. Mas os rankings eram internacionais, dizia-se que eram independentes e por isso muito bons. Mas também por causa disso precisavam de usar uma única língua, não era possível realizar rankings se o conhecimento produzido fosse nas línguas dos seus países, e como o poder económico era regulado pelo Império Americano, que outra língua além do inglês poderia ser adotada? Começaram então todos a produzir papéis (artigos e textos) na língua que esses rankings pudessem perceber. As pequenas conferências em que os académicos se encontravam e discutiam conhecimento em estado bruto começaram a escassear, cada um estava agora apenas interessado em produzir e publicar papéis. Porque eram esses papéis que permitiam aos rankings classificar as universidades internacionalmente. Quantos mais papéis fossem publicados no sítio em que mais pessoas queriam publicar, mais reconhecidos eram esses papéis. Não mais interessava o que dizia o conhecimento, era tudo uma questão de dança e posicionamento de papéis que garantiam rankings, ou seja, produto.
O número de papéis duplica à razão de 10 anos. Enquanto isso os autores passam a assinar papéis uns dos outros para garantir aumentos de produção de papéis.
Os rankings produziam reconhecimento, ofereciam status, e com ele atraiam alunos que escasseavam, mas também serviam para triar financiamento. Como vimos, a academia já não podia sobreviver só com o ensinar, tinha de produzir, todos o diziam, mas na verdade havia pouco dinheiro para pôr nas mãos dos académicos para potenciar essa produção. Desejava-se que produzissem mas que o fizessem com o mínimo, que fossem criativos, usassem o conhecimento, a “suprema” matéria-prima, a massa cinzenta, para criar produtos. Desta forma os rankings ajudavam também a decidir quem de entre esses académicos tinha direito a receber mais apoios, a ver projetos financiados com os dinheiros que iam sobrando aos estados. Por isso não tardou até que grupos de académicos passassem a dedicar mais tempo a numerar, listar e quantificar os seus feitos do que a discutir conhecimento. Muitos destes passaram a dedicar-se às metodologias de avaliação dos seus próprios feitos, passando até por especular a probabilística dos mesmos a 5 e a 10 anos, enquanto atacavam rankings por usarem maus indicadores e elogiavam outros por usarem as melhores fórmulas de cálculo.
Na verdade, os rankings e os papéis, o produto, interessavam apenas a um grupo restrito, quem os escrevia fazia-o por obrigação, quem fazia a revisão por pares fazia-o por obrigação, e quem os citava fazia-o por obrigação, sobravam as editoras que ganhavam milhões pelo meio, ao que se juntavam as agências de rankings que ganhavam mais alguns milhões. Os políticos fechavam os olhos, na verdade todo esse sistema permitia-lhes tomar decisões sem terem de perceber nada do conhecimento criado pelos académicos. Não admirava por isso até que o próprio comissário europeu para Ciência e Investigação fosse alguém que nunca tivesse produzido qualquer conhecimento, não era preciso, as tabelas e gráficos produzidos por estas empresas eram suficientes para tomar decisões. E, no entanto, a indústria real não queria saber desses rankings nem papéis para nada, da relação que podiam estabelecer com a academia, estava apenas interessada no que poderia ganhar em termos de melhoria das vendas do seu produto, e para esse efeito os papéis eram inconsequentes.
Repare-se como a produtividade não depende dos papéis nem da investigação, já que o aumento de investigadores não representa qualquer aumenta de produtividade.
A ânsia pelo produto conduzia assim ao desaparecimento do conhecimento de cada país, da sua especificidade regional e cultural, porque interessava mais aquilo que era comum a todos, porque só assim poderiam entrar nos locais em que todos “tinham” de publicar. O Império Americano e seus satélites jogavam em casa, os outros tinham de duplicar a velocidade, para em paralelo criar conhecimento e colocá-lo na língua desses. Se em domínios aplicados o conhecimento era facilmente aceite em inglês básico, em domínios fundamentais, em que a língua era ela própria criadora, não bastavam meras proficiências das escolas de inglês do bairro. Deste modo, o Império transferia-se da economia para o conhecimento, e do conhecimento novamente para a economia, tudo conjugado numa hegemonia que se queria robusta.
Os papéis noutras línguas simplesmente desaparecem.
De cada vez que um papel era publicado num daqueles sítios em que todos queriam publicar ficava-se feliz, mas apenas naquele dia, naquela hora, já que apenas interessava o que ainda estava por publicar, porque o que interessava era aumentar o número de papéis, para garantir o aumento e manutenção do reconhecimento que per se não trazia qualquer felicidade. De cada vez que um projeto científico era aprovado, ficava-se feliz, mas apenas até se iniciarem os trabalhos e perceber-se o inferno da gestão burocrática do mesmo que mudava a cada seis meses. Mesmo assim, a ânsia pelo reconhecimento e o receio da falta de financiamento que justificasse a sua posição, faziam com que mal iniciado um projeto se iniciasse de imediato a submissão de um novo, mesmo sem qualquer novo conhecimento que o justificasse.
O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.
Referências
O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.
Referências