março 07, 2013

a exploração dos criativos digitais

Os oscars de 2013 ficaram marcados pela contestação do grupo de trabalhadores do campo dos VFX (Efeitos Visuais). Uma área de trabalho cada vez mais importante para o cinema, mas que tem um reconhecimento em termos de mérito muito abaixo do seu valor. Esta falta de reconhecimento é dupla, porque acontece ao nível da contribuição para a estética final dos artefactos fílmicos, e depois ao nível da compensação financeira e ausência de estabilidade.


Começando pelo reconhecimento estético, que não é algo novo, mas está presente na Academia desde pelo menos 1982, o ano em que Tron não foi nomeado para o oscars de VFX. A lógica usada para excluir Tron dessa nomeação foi de que os criadores teriam feito batota na criação dos efeitos visuais ao utilizarem computadores! Fica o link para o excerto do livro em que falo deste acontecimento nos VFX. Esta lógica perdura ainda hoje, e cada vez mais, porque se em Tron era fácil distinguir o que era CGI e o que era imagem real, nos dias que correm isso deixou simplesmente de ser possível. Mesmo para um olho treinado, principalmente quando falamos de imagem em movimento, deixou de ser possível realizar essa distinção. Quando vemos o tigre de Life of Pi, só sabemos que aquilo não seria possível com um tigre real, de resto, não existe qualquer indicador visual que nos consiga garantir que não é real. Pior ainda quando falamos de filmes em que a evidência de poder ou não ser possível é menor, como é caso de Lincoln (VFX) ou Zero Dark Thirty (VFX).

Tron (1982)

Em termos estéticos os VFX servem o cinema cada vez mais em todas as frentes, não se trata apenas mais de criar o impossível, mas trata-se de um trabalho completo, que funciona como verdadeira pós-produção e que se ocupa de praticamente todo o filme. Como já se tornou prática dizer, nas rodagens de grande orçamentos, "We'll fix it in post production". E é claro que é possível, mas isso tem custos, não se trata apenas de fazer meia-dúzia de planos com um personagem 3d, de repente é necessário passar quase todos os planos através de algum processo de filtragem com olhar humano, e isso leva imenso tempo. E é aqui que começam a surgir os verdadeiros problemas da indústria de VFX que não são diferentes de praticamente toda a outra indústria criativa que trabalha com computadores.

Life of Pi (2012)

Criou-se na sociedade aquela ideia de que as coisas são feitas pelos computadores, a tal batota, e por isso é fácil, rápido e barato. Mas isto é uma das maiores falácias de toda a indústria criativa digital. Porque se é verdade que os computadores vieram acelerar todos os processos, trouxeram também um olhar muito mais clínico e perfeccionista, que não aceita que o boneco 3d se mova como se fosse um animatrónico (boneco mecânico), ele tem de se mexer de modo indistinto da realidade. Alguém aceitaria um tigre em Life of Pi que se movimentasse aos solavancos? Mas para isso são precisas muitas horas de trabalho duro, realizado por seres humanos, não são os computadores que fazem esse trabalho.
"Live action shooting can't go for 24 hours because they have union crews that expect to be paid. There's a cost factor and a turnaround time and all the other stuff, with people monitoring them and keeping them on track. But once the live action is done, there's nobody monitoring anymore, so the director and studio are free to change everything. They can ask for anything, and the VFX company has to do it. A director will go to the VFX guys late on and say something like, "Oh, I want to change all these skies. I want blue skies with fluffy clouds now." The problem is, that wasn't part of the original storyboards, so nobody would have predicted that, but the companies are reluctant to bill the studios. The studio might say, "Well, they charged us for this extra thing: we thought that would have been part of the deal!" So the effects companies accept the changes and don't pass the costs on to the client, so now what little profit they had, because they're competing against each other, is even less." Scott Squires entrevista na Empire
De repente para cumprir os prazos a companhia tem de contratar mais umas dezenas de pessoas. É possível fazer tudo o que possamos imaginar, mas alguém tem de o fazer, e esse alguém deve ser reconhecido por isso e como tal ser pago. Mas isso não acontece. Uma grande maioria trabalha por projecto, e não em empregos fixos. Quando o projecto acaba estão na rua. Durante esse projecto, passam quase todo o tempo em crunch-time, ou seja a fazer 90 a 120 horas (fonte) por semana para acabar o projecto a tempo de entrar na produção do filme A ou C. E depois ainda é preciso ouvir bocas de realizadores como Ang Lee que se queixam de que os efeitos são demasiado caros, ou pior,
“For a movie like this (“Life of Pi”) it’s very common for visual effects to take up half the budget. Some of those segments are so expensive. Millions of dollars have to be spent before the studio can see it. How do they approve that budget?” Ang Lee em entrevista à Variety.
A sério 50% do budget? Será que Ang Lee se deu conta que neste caso os VFX são responsáveis por quase 80% daquilo que se vê no ecrã?! Se acha que são caros, que faça mais Brokeback Mountain's, e deixe de desejar adaptar ideias literárias, impossíveis de filmar, ao ecrã.

Life of Pi (2012), com e sem os VFX da Rhythm & Blues, empresa que ganhou o Oscar para melhores VFX este ano, mas que apesar disso entrou em falência.

Para mim tudo isto é grave, não apenas por causa dos VFX mas porque vem colocar em evidência o problema clássico de quem trabalha indefeso, sem direitos, e sozinho. Os trabalhadores freelancer, ou por projecto de que aqui falamos, são aquilo que a sociedade está a tentar criar para todas as profissões. E este é o destino que nos espera. Ser espremido ao máximo em cada projecto, e ser jogado fora quando já não se é preciso. Deste modo a produção fica mais barata, porque não é preciso assegurar segurança social, seguros de saúde, subsídios de desemprego, etc. Cada trabalhador é apenas mais um bloco indistinto na engrenagem, facilmente substituível por qualquer outro, de preferência mais barato. Por isso a única resposta possível a tudo isto, só pode ser a criação de um sindicato para os trabalhadores de VFX.
"Visual-effects people pride themselves on being individuals, but the fact is that they work on projects and there are times when it's useful for people to gather as an organisation, to say, "No, we won't put up with this." We work really hard on what we do." Scott Squires entrevista na Empire
Não existe alternativa ao sindicato. Todas as outras profissões no cinema e televisão americanas são reguladas por sindicatos fortes, mas todas elas passaram pela mesma exploração que estão a passar os trabalhadores dos VFX, antes de se sindicarem. As pessoas têm de se mentalizar que o modelo individual não funciona, que é preciso unir-se, e defender-se a si e à sua profissão. Não podem trabalhar em freelancing e acreditar que não precisam de mais ninguém, são apenas eles e o cliente. Porque separados serão sempre explorados. Não é apenas a mão de obra barata do outro lado do mundo (Índia), não são apenas os apoios concedidos por países a certas indústrias para aí se instalarem (Canadá), não são apenas os clientes a exigir mais e mais e á última da hora, não é apenas o miúdo com qualidade que trabalha no quarto dos pais, sem pagar renda e com uma licença de software pirata. É tudo junto, tudo isto mina a qualidade de vida, e corrói a profissão.

Venham dizer-me que é corporativismo. E eu digo que não, que é antes defender a qualidade de vida, que é defender os mais fracos dos mais fortes, que é verdadeiramente viver em sociedade e contar com o próximo, e não ser atirado à sua sorte. Mais, que é preservar a profissão para que mais pessoas queiram enveredar pela mesma, e que o possam fazer sendo criativos e não meros escravos do pagamento a cada projecto incerto.

2 comentários:

  1. Nem mais! Eu que o diga, que ando nisto há quase 20 anos!

    (CLAP, CLAP CLAP)
    (standing ovation)

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  2. Muito bom!
    Gosto muito de ler o seu blog.

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