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novembro 14, 2012

A Invenção de Morel

A Invenção de Morel (1940) é um livro com mais de 70 anos, mas que é hoje, num mundo cada vez mais hiper-realista (seguindo Baudrillard), mais atual e relevante que nunca. A sua premissa nasceu muito provavelmente do contexto vivido face à forte sedução que o cinema causava nas pessoas na primeira metade do século passado. Hoje esta sedução reduziu-se, existem muitas outras atracções, criámos ambientes de realidade virtual, desenhámos videojogos 3d com interactividade e feedback constante, o cinema tornou-se em apenas uma das muitas janelas que temos à disposição para olhar para lá da suposta realidade.


Adolfo Bioy Casares foi um escritor argentino que conheceu o sucesso com esta novela de fantástico. Nesta edição podemos ler um prólogo de alguém que não nos surpreende tendo em conta a temática do livro, Jorge Luis Borges, por sinal também Argentino. Pelo que percebi entretanto Bioy e Borges ainda escreveram vários contos e guiões para filmes juntos. Borges não é comedido no seu prólogo e fecha o texto afirmando simplesmente, 
Discuti com o seu autor os pormenores do enredo e reli-o; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole classificá-lo como perfeito.” 
Concordo, mas é complicado explicar porquê. O livro é pequeno, cerca de 100 páginas, mas não é por isso que é difícil falar dele, é que o conceito central da sua história é a chave de todo o conto. Tentar discutir o livro, sem falar do núcleo da narrativa não faz o menor sentido. Podemos contudo discutir que o seio da história trabalha sob o desígnio da realidade e do valor da imagem enquanto representação. Além disso o narrador fala através de um diário, como se estivesse a falar diretamente connosco, interrogando-se por vezes no mesmo sentido em que nos interroga a nós leitores. Um exemplo fantástico desta construção narrativa, pode ser visto neste trecho,
“Contarei fielmente os factos que presenciei entre a tarde de ontem e a manhã de hoje, factos inverosímeis, que a realidade não terá podido produzir sem trabalho... Agora a verdadeira situação parece não ser a descrita nas páginas anteriores; a situação que vivo não é a que julgo viver.”
L'Année dernière à Marienbad (1961) 

Noto ainda que a conceptualização intertextual que levou Thomas Beltzer a dizer que Alain Resnais se teria baseado em Invenção de Morel para criar L'Année dernière à Marienbad (1961) me parece imensamente acertada. Aliás essa ligação entre as duas obras levou-me assim de repente a compreender Marienbad sob toda uma nova luz, permitindo que o filme tivesse ganho dentro das minhas memórias novas camadas de leitura, mais intensas e relevantes. 

Sawyer lendo A Invenção de Morel em Lost, s04.e04

Uma outra obra recente em que Morel aparece é exatamente a série Lost. Sawyer aparece no quarto episódio da quarta temporada a ler uma edição americana do livro. E aqui é ainda mais forte a colagem do que em Marienbad. Aqui temos uma ilha, e acontecimentos e visitantes estranhos, tal como na ilha de Morel. Lost pode também ser visto de uma forma completamente nova depois de ler este pequeno livro.

outubro 29, 2012

Frankenweenie: An Electrifying Book

Desta vez a Disney surpreendeu, criou um livro interactivo sobre o filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton e colocou-o na App Store grátis. E se isso não fosse suficiente ainda nos diz que opta por este formato por forma a poder ir realizando actualizações dos conteúdos à medida que estes forem sendo disponibilizados.


O livro é muito interessante para quem se interesse por cinema de animação, ou por este filme em particular porque aborda toda a arte por detrás da criação de Frankenweenie que é um filme de animação em stop-motion baseado numa das primeiras curta criadas por Tim Burton em 1984. O livro é apresentado em sete capítulos mas pode ser percorrido de forma totalmente não linear, em função do que mais nos interessar ou por exemplo do tipo de conteúdos. Podemos encontrar aqui desde trailers, a pequenos documentários, excertos de obras, muitas fotografias, imagens interactivas que nos permitem rodar em volta dos personagens, excertos da banda sonora, e algum texto, mas não muito.


Chapters
1. Spark of the Idea
2. Welcome to New Holland
3. Meet the Residents of New Holland
4. The Art of Frankenweenie Exhibit
5. Frankenweenie Music
6. New Holland Bookshop
7. See Frankenweenie in Theaters
Em termos de organização o primeiro capítulo é dedicado à explicação da ideia e conceito do filme. O segundo aborda o local, cenários e ambientes. O terceiro apresenta detalhadamente cada personagem. No quarto é apresentada uma mostra da arte de Frankenweenie que tem circulado por várias cidades. Depois no quinto temos a apresentação da banda sonora, mas infelizmente se a quisermos ouvir teremos de pagar. O mesmo se sucede com os livros apresentados no capítulo seis sobre o filme, que de certo modo me parecem algo redundantes face à obra em que os estamos a ver. Finalmente o capítulo sete traz-nos um clip exclusivo e um convite a ir ver o filme.



Não é nenhuma obra magnífica mas pelo valor a que é disponibilizado vale todo o tempo que possam perder a fazer o download (~800Mb) e a passear pelo livro.

outubro 14, 2012

"O Talento é Sobrestimado"

Talent is Overrated. What really separates world-class performers from everybody else é um livro de Geoff Colvin que me obrigou a imensa reflexão. Essencialmente porque numa primeira parte me obrigou a analisar concepções contrárias às que defendo sobre a aprendizagem e a criatividade, e numa segunda parte volta a aproximar-se das minhas ideias de origem. O livro de Colvin foi baseado num artigo inicialmente escrito para a revista Fortune, da qual é editor chefe.


Assim o que Colvin começa por dizer neste livro é que o talento é uma espécie de desculpa que nós encontrámos para deixar de desenvolver determinadas competências. E que qualquer um de nós pode desenvolver as competências que quiser, desde que lhe dedique um esforço considerável (as tais 10 mil horas de Andrew Ericsson). Baseia todo este discurso na análise da performance do ser humano. Um simples demonstrador da performance da técnica face ao talento inato sobressai quando olhamos para a constante quebra de recordes mundiais desportivos. Ainda este ano o NYTimes realizou um excelente trabalho de infografia em que demonstrava a diferença entre o recorde dos 100 metros natação, de 2008 para 1896 com uma distância de quase 50%.

Um corrida (imaginária) com todos os medalhados de sempre (NYT)

Colvin continua com os exemplos de Mozart e Tiger Woods, demonstrando que ambos não eram nenhum talento especial em crianças, mas que a grande diferença entre eles e os demais esteve no facto de terem ambos em casa professores da profissão. Pais que não só os fizeram treinar, como os orientaram na melhor forma de o fazer desde muito pequenos, no fundo foram os seus primeiros professores. Nenhum deles terá inovado muito antes dos 20 anos, mas chegados a essa idade a quantidade de horas acumuladas de trabalho prático de qualidade desenvolvido por ambos terá feito com que estes se distinguissem dos demais.


Para suportar ainda mais esta ideia vai buscar nada menos que Laszlo Polgar, um defensor extremista da genialidade fabricada. Polgar teve três filhas com o simples intuito de as tornar campeãs mundiais de xadrez, tendo começado a treinar todas elas desde bebés, e dedicando-se ele e a mulher apenas e só à educação delas. As três irmãs são hoje heroínas da Hungria, conseguiram chegar as três a grandmasters, conseguiram abrir a prática às mulheres, ultrapassaram muitos homens, foram modelos, e conseguiram grandes feitos. Mas no FIDE Top 100 a filha mais nova, Judit Polgar, foi a que chegou mais alto e nunca passou do 8º lugar, em 2005. E aqui começam as minhas dúvidas sobre todo este discurso.

As três irmãs Polgar

Ainda assim uma das conclusões que Colvin retira de tudo isto parece-me a reter, e que tem que ver com o conceito de Prática Deliberada ou intencional já definida antes por Andrew Ericsson. Para compreender este tipo de prática Colvin define-a em 5 passos,
  1. A prática intencional deve ter como objectivo melhorar a qualidade do trabalho.
  2. Múltiplas repetições. Primeiro definir o que é preciso melhorar, e depois ver se as acções levam a melhorar, e depois trabalhar intensivamente para melhorar.
  3. É preciso ter feedback dos resultados do trabalho. Se não é impossível saber como continuar a melhorar.
  4. O trabalho deliberado requer esforço mental. A intensa busca por melhorar só se consegue com focagem em profundidade.
  5. A prática deliberada não cabe em descrições românticas. É dura porque não é o momento em que treinamos aquilo em que já somos bons, mas antes aquilo em que ainda não somos.
Para suportar tudo isto dá ainda um exemplo, para mim muito mais interessante do que o de Lazlo Polgar, e que já explicarei porquê. O exemplo é de Benjamim Franklin (1706-1788) um dos fundadores dos EUA, apelidado de homem da renascença dadas as suas reconhecidas polivalências: escritor, político, cientista, inventor, activista, satirista, diplomata, entre outras coisas. O exemplo que Colvin nos traz é sobre o modo como Franklin aprendeu a escrever. Um dia o seu pai disse-lhe que os seus textos eram superiores aos dos seus colegas em conteúdo mas falhavam na forma e por isso acabavam por não conseguir fazer passar as suas ideias. Franklin resolveu então começar a trabalhar a sua escrita. Transcrevo agora parte directa da autobiografia de Benjamim Franklin,

Imitating the Style of the Spectator, (1789), Benjamim Franklin
About this time I met with an odd volume of the Spectator. I had never before seen any of them. I bought it, read it over and over, and was much delighted with it. I thought the writing excellent, and wished, if possible, to imitate it. With that view, I took some of the papers, and making short hints of the sentiment in each sentence, laid them by for a few days, and then, without looking at the book, tried to complete the papers again, by expressing each hinted sentiment at length and as fully as it had been expressed before, in any suitable words that should come to hand. I then compared my Spectator with the original, discovered some of my faults and corrected them. But I found I wanted a stock of words, or a readiness in recollecting and using them, which I thought I should have acquired before that time if I had gone on making verses; since the continual occasion for words of the same import, but of different length, to suit the measure, or of different sound for the rhyme, would have laid me under a constant necessity of searching for variety, and also have tended to fix that variety in my mind, and make me master of it. Therefore I took some of the tales and turned them into verse; and, after a time, when I had pretty well forgotten the prose, turned them back again. I also sometimes jumbled my collections of hints into confusion, and after some weeks endeavored to reduce them into the best order, before I began to form the full sentences and compleat the paper. This was to teach me method in the arrangement of thoughts. By comparing my work afterwards with the original, I discovered many faults and amended them; but I sometimes had the pleasure of fancying that, in certain particulars of small import, I had been lucky enough to improve the method or the language, and this encouraged me to think I might possibly in time come to be a tolerable English writer, of which I was extremely ambitious.
O que podemos ver neste texto, é exatamente aquilo que Andrew Ericsson disse, e Colvin aqui repete, como Prática Deliberada. Trabalhar repetidamente em busca da melhoria, constante, sem parar nunca. Ora isto levanta um problema claro, e que ficou já bem evidenciado no exemplo das filhas de Lazlo Polgar. Estas chegaram aos 20 anos e desistiram de competir no xadrez de alto-nível. A explicação é dada por elas. Queriam ter filhos, queriam conhecer mundo, queriam mais do mundo em que viviam, e o xadrez não as preenchia. Porque aliás num outro exemplo que Colvin dá a respeito de grandes músicos, através de inquéritos realizados, aquilo que custava mais a estes músicos, era a parte em que treinavam sozinhos além dos períodos de treino normal na orquestra. Mas eram exatamente estes músicos aqueles que se destacavam dos demais, porque treinavam muito além dos outros. Aliás aqui não posso deixar de citar um exemplo popular português, Cristiano Ronaldo.

A incansável busca pela perfeição é dolorosa e este é para mim o elemento central de tudo. É o ponto que deita por terra esta conceptualização totalmente errada do ser humano nascido tal uma tábua rasa à espera de ser moldada através de práticas radicais behavioristas. É possível criar grandes profissionais, Polgar demonstrou-o, mas não é possível criar génios. Não é possível fazer mentes brilhantes com as nossas mãos apenas. E porquê? Bem a resposta é muito simples, e a resposta está num livro de Ken Robinson, The Element que nos fala de descobrirmos o elemento no qual nos sentimos bem, no qual sentimos que podemos contribuir para a sociedade, no qual os outros que nos rodeiam também acreditam que podemos retribuir. Colvin dá exemplos de grandes mentes que vieram de pequenas cidades, e diz que isso pode ter sido um bom estímulo, porque num meio pequeno é mais fácil destacarmo-nos, sermos elogiados pelo que fazemos bem, o tal feedback não é apenas no sentido de explicar o que devemos melhorar, mas é também para nos levar a continuar, a enfrentar o doloroso esforço da prática deliberada.

Os seres humanos não são tábuas rasas

Ora o que falamos aqui vem de encontro ao que ainda esta semana defendi na conferência COIED e que é o factor de sermos todos diferentes, termos todos talentos únicos. Como poderíamos ser todos diferentes e únicos por fora, e por dentro sermos totalmente iguais e moldáveis como nos é dito aqui?! Agora não podemos sobrestimar os talentos, e aqui em total acordo com Colvin. Precisamos verdadeiramente é de encontrar em nós o mais cedo possível aquilo que nos move, que nos faz correr incansavelmente. E é por isso que considero o exemplo de Benjamim Franklin totalmente diferente de Lazlo Polgar, porque o que Franklin fez partiu totalmente da sua motivação intrínseca (Drive). A força de querer fazer, impeliu-o para o seu elemento e deu-lhe força para continuar a tentar, a desenvolver a escrita e a verbalização de ideias.

Slides da minha comunicação na COIED

Nada devia ser mais importante na Escola do que ajudar os alunos a encontrarem-se, a descobrirem aquilo que mais gostam de fazer e em que são verdadeiramente dotados. É claro que o caminho de lhes dar a conhecer o mundo é necessário, mas depois é preciso ir além disso, é preciso trabalhar individualmente com cada criança, e ajuda-la a encontrar-se. Não é possível ajudar crianças a serem geniais em turmas de 20 ou 30 alunos. Serão apenas medianos se não tiverem alguém ou pais que se dediquem de amor e alma à educação destes. Porque o talento, até pode estar lá, mas se não for ajudado a estruturar-se nunca florirá em força. E para isso temos de ser capazes de lhes proporcionar um ambiente próprio para tal. E aqui Colvin vai buscar os estudos de Mihaly Csikszentmihalyi da Universidade de Chicago, um dos mais importantes investigadores no campo da criatividade para nos dizer, a partir da sua investigação,
“why it's easier for some adolescents than others to sustain concentrated, effortful study, the core of deliberate practice and high achievement. The research focused on the students’ family environments, evaluating them on two dimensions, stimulation and support. A stimulating environment was one with lots of opportunities to learn and high academic expectations. A supportive environment was one with well-defined rules and jobs, without much arguing over who had to do what, and in which family members could rely on one another. The researchers classified family environments as stimulating or not and supportive or not, creating four possible combinations. Adolescents living in three of those combinations reported the typical low-interest, low-energy experience of studying. But in the fourth combination, the environment that was both stimulating and supportive, students were much more engaged, attentive and alert in their studying.” (p.174)
Ou seja, o talento tem de estar lá, mas precisa de ser explorado. É preciso ajudar a pessoa a conseguir chegar a ele. Assim como temos de ajudar uma criança a aprender a comer com o garfo, a aprender a andar de bicicleta, e isso requer tempo e atenção, também temos de a ajudar a aprender a encontrar-se. Para isso não basta estimular a curiosidade, é preciso garantir apoio, muito apoio. Só o feedback constante, mas verdadeiro, pode levar a que uma mente jovem se consiga encontrar.

setembro 28, 2012

Jonah Lehrer forjou citações

É com enorme tristeza que faço este artigo neste blog. Mas depois de ter lido os seus três livros, e os ter analisado para este blog, seria imperdoável se não o fizesse - Imagine: How Creativity Works (2012), How We Decide (2009), Proust Was a Neuroscientist (2007). Quando soube inicialmente desta notícia nem quis acreditar, resolvi esperar para tentar perceber em detalhe o alcance daquilo que se dizia. Mas chegou a altura de o escrever aqui, divulgar que o autor Jonah Lehrer procedeu à fabricação de citações e mentiu sobre as suas fontes.


Jonah Lehrer com apenas 30 anos tinha acabado de conseguir ser contratado pela New Yorker, uma das revistas mais selectas do mundo. E se o conseguiu foi porque nos seus três livros e nos muitos textos que publicou na Wired, no Wall Street Journal e em vários outros jornais e revistas de renome, demonstrou uma enorme inteligência, perspicácia, e acuidade para interpretar a realidade à luz dos novos preceitos da neurociência. Aliás basta ver que o seu livro Imagine chegou ao primeiro lugar do NYT na primeira semana.

Imagine: How Creativity Works (2012), How We Decide (2009), Proust Was a Neuroscientist (2007)

Deste modo o seu contrato com a New Yorker não durou sequer um mês, e pode-se ver na sua coluna online, que teve apenas tempo para realizar cinco entradas. Em todas essas é agora possível ler pedidos de desculpa da New Yorker a propósito de autoplágio. Ou seja, partes daqueles textos foram publicados previamente em outros textos. Mas não foi por isto que a New Yorker o despediu. Quando isto foi descoberto, o editor ainda desculpou o autor, esperando que não voltasse a acontecer. O problema acontece a seguir quando se descobre que Lehrer forjou citações de Bod Dylan para o livro Imagine. Ou seja, no livro Imagine aparecem frases, que supostamente terão sido ditas por Dylan, mas que nunca o foram, e é aqui que a carreira de Lehrer começa a sua queda vertiginosa.

Nota de aviso da Wired

A New Yorker despede Lehrer, e começa uma enorme investigação a tudo o que Lehrer escreveu e publicou. Desse modo no final de Agosto, e depois de se descobrirem mais problemas nos textos na Wired, é a vez da Wired o despedir. Entretanto a editora Houghton Mifflin Harcourt dos livros de Lehrer retira do mercado Imagine e começa também uma investigação que ainda decorre aos três livros. Depois foi a vez do Wall Street Journal retirar também dois artigos da sua página online, e corrigir dois outros.

Nota de aviso da New Yorker

As notícias correm online em vários sítios de referência. Nota-se contudo alguma contenção por parte de quem escreve, porque acredito que muitos devem ter ficado tão chocados como eu fiquei, tornando-se muito difícil de digerir tudo isto. Apesar de tudo isso e procurando não me deixar levar por esse viés, concordo totalmente com o professor de jornalismo, Charles Seife, contratado pela Wired para analisar os seus posts, que acaba o seu parecer dizendo o seguinte,
Lehrer's transgressions are inexcusable—but I can't help but think that the industry he (and I) work for share a some of the blame for his failure. I'm 10 years older than Lehrer, and unlike him, my contemporaries and I had all of our work scrutinized by layers upon layers of editors, top editors, copy editors, fact checkers and even (heaven help us!) subeditors before a single word got published. When we screwed up, there was likely someone to catch it and save us (public) embarrassment. And if someone violated journalistic ethics, it was more likely to be caught early in his career—allowing him the chance either to reform and recover or to slink off to another career without being humiliated on the national stage. No such luck for Lehrer; he rose to the very top in a flash, and despite having his work published by major media companies, he was    operating, most of the time, without a safety net. Nobody noticed that something was amiss until it was too late to save him.
Fica aqui explícito, que não é apenas uma questão de verificação, para mim é uma questão de vida em alta-velocidade. Em todos os trabalhos criativos, todos temos que cada vez dar mais, e mais, e mais, em cada vez menos, e menos, e menos tempo. E isso complica tudo. Eu próprio apesar de ser muito arrumado em termos de organização de ficheiros, textos e imagens, já dei por mim a tentar perceber se uma determinada frase que estava num txt/doc era minha ou retirada de uma qualquer página da net. Tentar perceber se o tipo de escrita era minha, e claro fazer a pesquisa no Google, que nem sempre ajuda, caso tenhamos entretanto já mexido na frase. Face ao Lehrer tenho a vida facilitada, porque o facto de escrever em Português e usar maioritariamente fontes em inglês, ajuda a distinguir facilmente os textos que vamos colando nas folhas de texto.

Claro que nada disto desculpa a sua atitude. Chegamos a um ponto em que percebemos que isto era o seu modo de funcionar, o constante remix de tudo o que digeria. E na verdade Lehrer era excelente nisso, era brilhante mesmo. E por isso mesmo alguns dizem, que apesar de ter caído tão fundo, ainda voltaremos a ler a sua escrita. E a realidade, é que a última notícia sua que temos, é que este está neste momento a escrever sobre todo este assunto.

setembro 09, 2012

"Nobreza de Espírito" de Rob Riemen

O livro, Nobreza de Espírito de Rob Riemen, divide-se em três momentos distintos, começando por uma exposição introdutória explicativa da razão do livro, e do porquê do seu formato. Seguida por uma revisão do trabalho e ideias sobre o mentor de Riemen, Thomas Mann. Nestes dois primeiros capítulos ficamos a saber de onde vem, e ao que vem Riemen. Percebemos que está a cumprir um desígnio, e sabemos com o que o fundamenta. Estas duas partes do livro estão formatadas num tom documental, ligadas por conversas com a filha de Thomas Mann, Elizabeth Mann Borgese, com o atentado do 11/9 em 2001, e a composição de uma sinfonia que se perde com a morte do seu compositor.

Riemen, R. (2008), Nobreza de Espírito, um ideal esquecido, E. Bizâncio, 2011

A terceira parte é depois dividida em dois capítulos - Conversas extemporâneas... e Coragem - e é aqui que está a essência do livro, numa fusão e colagem de textos, misturando realidade e ficção, de autores do passado desde Sócrates e Platão a Espinoza, Nietsche, Goethe e Whitman terminando com uma homenagem a Leone Ginzburg, o ideal encarnado do espírito da sua missão. O objectivo do livro parece ser definir o que é a Nobreza de Espírito, mas só depois de o lermos e de convivermos com este algum tempo percebemos que a definição não se fecha numa frase ou num parágrafo, e nem sequer num livro. A missão de Riemen é lembrar-nos de que o diálogo e o debate são a única via, não podemos esperar respostas prontas ao virar de esquina, ou soluções que fechem todas as nossas preocupações.
A liberdade – difícil e trágica liberdade – já não é mais o espaço de que o indivíduo necessita para praticar a aquisição da dignidade humana; é antes a perda dessa dignidade a favor da idolatria do ideal animal: tudo é permitido. O significado é desconhecido, o sentimento é substituído pelo objectivo. Experiências ‹‹divertidas›› e ‹‹saborosas›› substituem o conhecimento do bem e do mal. Porque o eterno não existe, tudo tem de ser agora, novo e rápido. Ninguém pode ser mais sábio, portanto todos têm razão. Todos são o mesmo, portanto o que é difícil é antidemocrático. A arte transforma-se em entretenimento, e a  fama das coisas ou das gentes é importante. A declaração de Gracián de que o peso material determina o valor do ouro mas o peso moral determina o valor humano é posta às avessas (..) O que é bom para o ouro, é bom para ti. Portanto comercializa-te! Adapta-te (...) é este niilismo da sociedade de massas que, como um cancro, ataca a civilização, o tecido conectivo da ordem social, e o destrói. O que resta sem esse tecido é uma quantidade ilimitada de indivíduos separados que no fim procuram destruir-se uns aos outros porque já não estão unidos por um valor universal mas seduzidos pela ideia de ‹‹eu sou livre, portanto tudo é permitido›› (Riemen, 2008, p.110)
Riemen trabalha seguindo Mann quando este nos anos 1920 dizia que só os valores do Humanismo podiam proteger a civilização da barbárie e do fundamentalismo. É este o ideal da sua missão, e foi por ele que Mann teve de fugir pouco depois para os EUA. Riemen dá os exemplos de Mann que continuou todos os dias a trabalhar na sua obra, apesar da grande guerra ou do suicídio do seu filho. De Camus que disse não aos seus amigos, quando lhe pediram para pôr de lado a moral em nome da política. Trabalha com o grande final de Sócrates, quando este optou pela morte, em vez de parar de questionar o mundo. E fecha com a recusa de Leone Ginzburg em colaborar com o Fascismo, optando por morrer sob tortura.

A Morte de Sócrates (1787) Jacques-Louis David

O último capítulo Coragem é dedicado ao fim de Ginzburg, desenvolvendo um diálogo que se terá passado entre Ginzburg e um ex-colega da universidade, convertido ao fascismo. Neste diálogo inesquecível, está muita da atualidade das elites intelectuais que vemos passar pelos palcos dos media, que optam por se subjugar ao medo em defesa do seu bem-estar social e financeiro. Segundo estes, nada é mais importante do que saber adaptar-se às circunstâncias. Um “mundo melhor” é aquele no qual nos adaptamos ao poder que nos regula, independentemente do que este ordena. Fica para trás a liberdade do pensamento individual, e qualquer defesa dos valores morais da humanidade.

Aqui se encerram os ideais para uma Nobreza de Espírito, na intransigente defesa dos valores daquilo que nos torna Humanos, a liberdade e a fidelidade de pensamento.


Nota: Interessante e estranho que tanto a edição portuguesa da Bizâncio, aqui analisada, como a inglesa pela Yale University Press estejam esgotadas e fora de impressão. Consegui uma cópia porque contactei directamente a editora que tinha lá umas sobras e teve a amabilidade de me disponibilizar um desses exemplares.

setembro 04, 2012

Making is Connecting (2011) de David Gauntlett

Making is Connecting: The social meaning of creativity, from DIY and knitting to YouTube and Web 2.0 (2011) de David Gauntlett é um livro fundamental na corrente atual de livros (ex. livros de Clay Shirky ou Charles Leadbeater) sobre os efeitos da nova criatividade potenciada pela internet e mais especificamente pela web 2.0.

"This is a book about what happens when people make things." (p.1)

David Gauntlet forma o seu discurso na base de que as pessoas deixaram de lado o tempo que perdiam com a TV para passarem a criar, a nova era do DIY. E justifica essa vontade de criar com base em dois autores do século XIX que vale a pena ler ou reler William Morris e Jonh Ruskin. Estes acreditavam que o processo industrial de produção em massa era desumanizador porque impossibilitava as pessoas de criar, de experienciar a criação e sentir os efeitos da sua realização, eliminando o pensamento que antes se construía enquanto se fazia.

O fosso não criativo criado no século XX pela TV

Em consonância com a discussão da Revolução Industrial surgiram os movimentos que separaram a arte do artesanato, mas Gautnlet vem agora defender que esta separação não faz sentido, e eu concordo integralmente. A arte é fruto da materialização de ideias, se a materialização e as ideias são boas, só depois o saberemos, à partida são ambas iguais. O artesanato não é um processo industrial como se quis fazer crer, é um processo manual através do qual o criador se constrói enquanto pessoa. Fazer e pensar são inseparáveis.

DIY Arduino helicopter

Gauntlett repesca também Ivan Illich há muito adormecido, e opõem-se a Chris Anderson. Esta sua oposição foi uma das mais interessantes, pois depois de ler Free quase que acreditei, ou quis acreditar que seria tudo assim simples como Anderson nos dita. Mas a realidade é que todos precisam de sobreviver, sem pagamento pelo trabalho criativo, deixaremos de ter trabalho de qualidade, porque as pessoas apenas o poderão fazer nas horas livres. E por isso mesmo a cultura do gratuito porque é digital é desprovida de sentido e apenas sustentável numa lógica de "copia dos outros, mas não a mim".


Uma das coisas que menos acredito em todo este discurso da nova criatividade, é que é muito fácil de construir numa cultura de pessoas com formação superior, mas quando os níveis de literacia baixam, torna-se muito difícil sustentar toda esta cultura produtiva de ideias, porque as ideias não germinam no ar. A Taxonomia de Bloom apesar de dizer respeito à aprendizagem, vista num modelo hierárquico, continua a ser bastante elucidativa sobre o modo como evolui a nossa capacidade para inovar. Não querendo com isto dizer que não existem excepções, basta ver Saramago, mas são excepções, ou melhor extraordinárias excepções.

Taxonomia de Bloom

Gauntlett criou um excelente sítio de acompanhamento do livro que está carregado de informação adicional, extractos do livro e vídeos de conferências suas muito interessantes. Deixo aqui abaixo uma das conferências que tão bem resume todo o seu pensamento. Entretanto no número 22 da revista Comunicação e Sociedade do CECS, dedicado às Tecnologias Criativas e que estou a editar com o Pedro Branco, sairá uma recensão alongada do livro por Elisabete Ribeiro. 

setembro 02, 2012

A minha viagem ao Alaska

Legend of a Suicide de David Vann é uma obra poderosa de ficção assente em pormenores da vida do autor que lhe permitiram levar o romance a um nível de qualidade literária raramente vistos. O facto de se passar no Alaska e abordar a solidão humana em conjunto com o suicídio de um pai, ajuda a construir o cenário para uma viagem perfeita, mas é na escrita, e na narrativa que está o detalhe do trabalho de Vann.


O livro contém uma espécie de cinco contos que falam sobre o mesmo mas com diferentes abordagens, seja no tempo, no espaço, ou mesmo nos eventos. O livro consegue encantar-nos porque nos transporta para um universo próprio do autor, não é o Alaska, mas é o Alaska de Vann, é Roy e Jim, pai e filho. E a uma determinada altura somos levados ao engano, e o livro parece dar uma volta de 180º, e não queremos parar de ler, porque queremos saber, queremos perceber como é que a narrativa permitiu que aquilo acontecesse. Temos uma espécie de twist a meio do livro e ficamos há espera que outro twist aconteça no final, mas esse twist vai dar-se dentro de nós, quando começamos a encaixar todos os cinco contos, e a estrutura global narrativa começa a fazer sentido e somos capazes de dar sentido a tudo o que ali se passou.

Aleutian Islands, Alaska (Hawkfish)

O livro tem sido descrito como uma espécie de exorcismo para Vann, e bem parece, como que se pudesse através da arte literária não só libertar-se de um peso, mas ao mesmo tempo jogá-lo para o outro lado da rede. O próprio Vann define à posteriori o conto central como uma espécie de vingança sobre o seu pai, mas acredito mais que Vann se tenha deixado levar pela escrita, e que este tenha sido o seu grito literário. Um grito forte inaudível mas muito pesado emocionalmente.  Sem dúvida, que toda a arte tem o poder de nos desenterrar, de nos elevar, mas fazer o que Vann faz não está ao alcance de todos.

A narrativa é experimental mas está de acordo com o atual modo de escrita, algo influenciada pelos modelos narrativos cinematográficos de deslinearização do enredo (veja-se Memento ou Inception). Uma tentativa de fazer discorrer a narrativa num modo associativo de ideias e não meramente encadeado cronologicamente. Não é a toa que Vann chega a ser comparado a Virginia Woolf. Diria que estamos perante uma nova corrente na criação ficcional, uma espécie de neo-estruturalismo, em que se busca maravilhar o leitor não pelo que se diz, mas pela forma como se diz. A arte pela arte.


Algumas notas mais. 
a) Não leiam a sinopse do livro que está no sítio do autor pois fala tangencialmente do twist central.
b) A capa da Penguin é magistral, e em papel funciona ainda melhor porque o peixe vem imprimido em papel brilhante que contrasta fortemente com o amarelo da capa.
c) A obra original tem um inglês elaborado, nomeadamente os primeiros contos e os últimos. Para quem não esteja totalmente à vontade, aconselho a tradução portuguesa da Ahab.


5/5

julho 09, 2012

o Futuro do Livro

Epilogue: the future of print (2012) de Hanah Ryu Chung é um filme sobre o objecto livro. Na manhã do possível desaparecimento do livro substituído por formas digitais que fazem do livro uma identidade etérea, este documentário questiona-nos se será mesmo assim. São lançadas várias pistas sobre a impossibilidade de assim ser.


Um dos aspectos que me parece mais relevante e é referido por quase todos os entrevistados, é o eterno problema do digital com a sua "atitude" muito pós-moderna da temporariedade e da descartabilidade. Ou seja, no reino do digital, tudo dura muito pouco, e tudo é muito facilmente substituído por outra moda qualquer. Não precisamos de voltar muito atrás no tempo, para saber que magníficos livros digitais editados no formato de CD-Rom são hoje ilegíveis. Tenho-os aqui na minha estante, mas não lhes posso aceder, a não ser que recorra uma miríade de processos que me permitam emular o sistema informático do passado, isto para não falar da grande possibilidade de os bits que estavam naquele CD já terem desaparecido.


Ou seja, quando os entrevistados nos falam do objecto livro como "permanently available, to remain accessible" que "the beauty of the book is that it is absolutely static, it is printed, and the content never changes", sou obrigado a dar-lhes razão. Quando dizem que o livro digital é algo que "progresses every month" que "the ebook is not going anywhere, every year we got more and more", é também verdade. Desde que lançámos os e-readers da moda, a quantidade de formatos de livros digitais não tem parado de aumentar. Não posso deixar de sublinhar uma frase que me ficou gravada quanto aos e-readers,
"This technology hasn't found what is good at, yet"
Por outro lado, e em termos de experiência táctil mas acima de tudo estética, é verdade também que "all the eBooks are presented in the same manner, and this changes the option to experience the singleness of each book". Ou seja não existe um objecto, uma identidade livro, existe apenas algo que está ali dentro, mas que nunca assume o carácter de uma obra, de um todo. E isto leva-me a um último ponto, o da posse do objecto
"The chance to own something, you valued it as possession... I can't imagine giving someone a ebook for Christmas"

Mas reflectindo sobre a posse. também me lembro bem de ter esta atitude face aos CDs e aos DVDs, e a realidade é que estes acabaram por desaparecer. E isso deve fazer-nos questionar sobre as diferenças em termos de medium e plástica expressiva. Quando falamos de um álbum de um músico, ou de um filme de um realizador, não existe um objecto que o encarne. Porque o CD é apenas um suporte, o album circula na rádio, na televisão, no cd, no vinyl, na cassete, no mp3, na internet, tal como o filme. A essência desta arte não está no seu suporte. Por outro lado, e seguindo esta abordagem lógica, o livro está muito mais próximo da tela do pintor. Apesar da sua reprodutibilidade, este mantém ainda resquícios dessa fisicalidade, dessa unicidade, que faz do livro um objecto que funde o discurso e o objecto num só. Como é dito a uma certa altura "books are an aesthetical medium as and informational medium".


Mas atenção, porque isto é verdade, mas apenas para alguns livros. Existem várias categorias de livros, que pela sua natureza são efémeros. Falo de muitos dos livros que hoje rotulamos de livros de supermercado, com historietas para consumir e deitar fora. Mas falo também do material que produzimos na nossa investigação diária. Muito dele em poucos anos estará desactualizado e inútil sem actualizações. Claro que devemos manter o registo, mas esse não necessita de encher bibliotecas inteiras, nem tão pouco desbastar florestas. As bases de dados online científicas, são e devem ser a resposta. Assim como todos os sistemas de acesso livre e aberto a essa informação.


Para fechar, uma última constatação que acredito que muitos de nós poderemos vir a sentir no futuro próximo, "ebooks are an invisible abstraction, and the more it happens the more the tactil impression will become important".


Sobre o documentário, está muitíssimo bem conseguido, é mais um belíssimo trabalho de estudante. Hanah Ryu Chung realizou este projecto como trabalho de fim de licenciatura na Ryerson University, Toronto. Foi pena apenas os problemas de som na captação de algumas entrevistas, mas dada a qualidade de tudo o resto, torna-se perfeitamente sofrível. Vejam aqui abaixo, são 20 minutos, mas valem bem o tempo investido.


This documentary is a humble exploration of the world of print, as it scratches the surface of its future.
The act of reading a “tangible tome” has evolved, devolved, and changed many times over, especially in recent years. I hope for the film to stir thought and elicit discussion about the immersive reading experience and the lost craft of the book arts, from the people who are still passionate about reading on paper as well as those who are not.

julho 01, 2012

"A Doutrina do Choque", o novo fundamentalismo

Ler A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo de Desastre de Naomi Klein é hoje em Portugal uma obrigação. O livro data de 2007, e nesse sentido a sua análise detém-se no exacto momento em que estalou uma das maiores crises de sempre deste modelo económico, mas o livro não perde nada. Tudo aquilo que Klein faz, ao longo das mais de 500 páginas, é desmontar historicamente as reacções do chamado Mercado-Livre (Free-Market) a grandes desastres e estados de emergência, desde o golpe de estado no Chile nos anos 1970 até ao desastre do furacão Katrina em plenos EUA, passando pelas ilhas Malvinas e Thatcher, pelo pós-perestroika e os oligarcas russos, pelo 11 de Setembro, atingindo o seu pico na Invasão do Iraque.


Klein traça uma linha que liga o desmantelamento de estados e da desregulação comercial a grandes desastres da contemporaneidade. Como que se esses desastres tornassem inevitável a mudança de políticas seguidas. Mesmo quando os desastres acontecem por meras causas naturais. A resposta de quem ajuda, parece ser sempre a mesma, abrir o mercado.
Só uma crise - verdadeira ou percepcionada - produz mudanças reais. Quando a crise ocorre, as acções que se tomam dependem das ideias à sua volta. Isto, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível, se torne no politicamente inevitável." Milton Friedman Capitalism and Freedom, 1962, p.IX
Lendo Klein sobre o pensamento de Friedman, a uma determinada altura senti que deixámos o fundamentalismo religioso mas as Cruzadas não morreram, só que agora vivem de um novo fundamentalismo, o do mercado-livre.
Salvador Allende, presidente do Chile que iniciou processos de nacionalizações e colectivizações foi retirado à força do poder por imposição americana, tendo a CIA servido Pinochet nas suas práticas de tortura, e os economistas de Chicago nas transformações do país numa chamada economia livre.
Os últimos 50 anos de caminho em frente na total desregulação, flexibilização e privatização trouxe-nos até aqui. Os efeitos para a Europa e o seu modelo social, estão aí. As palavras de ordem são, tornar privado e terminar com o estado. Teorias que defendem que o Estado tem custos insuportáveis, que tudo pode ser feito de forma melhor pelos privados, desde a Saúde à Educação. Na última guerra do Iraque como muito bem fica demonstrado por Klein, até as estruturas militares foram privatizadas. Porque segundo alguns é muito mais barato fazer outsourcing. Ter um estado que apenas dite leis, com meia dúzia de cabeças, um estado fantasma que deixe a sociedade auto-regular-se. Segundo Milton Friedman é preciso libertar as pessoas, maximizar a força do indivíduo e fazer definhar o colectivo, destruir o comunitário.

Só esquecemos que deixamos de pagar os desperdícios em impostos necessários à regulação das estruturas colectivas, mas em troca passamos a pagar pela perda de qualidade, perda de responsabilidade, perda de solidariedade. Alguns enriquecem brutalmente, enquanto uma enorme franja é despojada de qualquer direito. E o livro de Klein está carregado de exemplos, sendo um dos mais gritantes, o desastre Katrina, por ser recente e no interior dos EUA, mas que demonstra claramente que o mundo voltou ao ter pessoas de primeira, e pessoas de segunda. Mas o que se está a passar neste momento pós crise financeira não é em nada diferente, apenas na escala, a destruição da classe média americana e europeia está à vista.

Estádio que albergou os desalojados do desastre Katrina, e que foram ali largados à sua sorte pelo governo americano.

Ler Doutrina do Choque é ver um mundo novo abrir-se em frente aos nossos olhos, começar a compreender os modos de funcionamento de uma sociedade assente nos princípios desenhados por economistas da Universidade de Chicago, que tiveram como grande maestro, Milton Friedman. Todos os grandes desastres descritos no livro foram seguidos por grandes operações de recuperação baseadas não na ajuda desinteressada, mas sempre em estruturas privadas que procuraram fazer dinheiro com o desastre dos outros. Quanto mais no fundo do poço, mais rentável se torna ajudar. É isto que podemos assistir neste momento na Europa, a crise das dívidas soberanas e o acosso constante dos mercados totalmente desregulados, para quem o Social deixou de existir.

Os oligarcas russos (na foto Abramovich) aproveitaram o desmantelamento da URSS para legalizar as suas práticas ilegais e apoderarem-se de todo o aparelho financeiro do Estado a custos irrisórios. Uma mão cheia de indivíduos tornou-se milionária à escala mundial, muitos milhões de russos e caíram na pobreza total, milhares de crianças foram abandonadas em instituições sem condições para os receber, a droga e a prostituição tornou-se nos únicos ganha-pão de milhões de pessoas. Tudo isto está à vista de todos.
Concordo com o nobel Stiglitz quando este diz que Klein exagerou com a metáfora dos procedimentos dos anos 1950 para a realização de lavagens cerebrais. Mas percebo a frustração activista de Klein, ao perceber que tudo se passa à nossa frente, mas continuamos sem nos dar conta. Ela precisava de uma metáfora forte que chamasse à atenção, mas julgo que em certo sentido acaba por perder alguns leitores. Porque na primeira parte do livro poderão sentir que se trata de mais um livro demagógico com teorias da conspiração. Por isso aconselho vivamente que mantenham a leitura, aquilo que este livro tem para revelar vale isso, e muito mais. Mas é o próprio Stiglitz a defender o discurso, nomeadamente a suportar toda a lógica económica descrita por Klein,
Klein provides a rich description of the political machinations required to force unsavory economic policies on resisting countries, and of the human toll. She paints a disturbing portrait of hubris, not only on the part of Friedman but also of those who adopted his doctrines, sometimes to pursue more corporatist objectives (..)
Indeed, the case against these policies is even stronger than the one Klein makes. They were never based on solid empirical and theoretical foundations, and even as many of these policies were being pushed, academic economists were explaining the limitations of markets — for instance, whenever information is imperfect, which is to say always. [#]
A invasão do Iraque foi a última grande machadada do mercado privado contra o estado e as funções públicas. Rumsfeld, ministro da defesa americano, conseguiu despedir milhares de pessoas do Pentagono e das forças militares, e em sua vez foram contratadas empresas privadas de fornecimento aos militares. Empresas nas quais o próprio ministro da defesa tinha interesses e acções. No Iraque, o número de equipas mercenárias privadas a actuar é desconhecido. As empresas envolvidas no fornecimento ao exército americano viu os seus lucros aumentar exponencialmente durante toda a guerra. Assim esta não pode terminar, sem guerra não haverá fonte de receitas.

Klein não é economista, mas como jornalista fez um magnífico trabalho de investigação, realizando entrevistas in loco em muitas das partes do globo de que fala no livro. Não baseia o seu trabalho em meras teorias económicas, antes faz um levantamento e procura respostas, e actores que as possam confirmar ou não. Este seu trabalho ganhou imenso reconhecimento internacional, e acredito estar na base de muito daquilo que são os movimentos internacionais Occupy.


Muito dirão que isto são teorias da conspiração. Mas o que aqui temos foi descrito anteriormente por Althusser na sua conceptualização de ideologia. Ou seja o que aqui temos é fruto de empurrar as pessoas, as instituições, a sociedade para o pensamento único, do consumo como sinal de progresso. E assim, quando o desastre acontece, existe apenas uma resposta possível para manter o status quo da ilusão do progresso, que passa por tirar a muitos para manter alguns na redoma protegida. É tempo de nos levantarmos e dizer basta. A Europa e Portugal estão a saque, disso já não restam dúvidas.

junho 17, 2012

Nova editora: engagePress

No próximo dia 21 Junho 2012 4 de Julho vou apresentar, juntamente com o Pedro Branco, a nova editora de livros de "arte+ciência", a engagePress, que funcionará como editora do laboratório engageLab. Estão desde já todos convidados. O local será o LCD, Guimarães.


O nosso objectivo com este novo selo editorial é garantir uma maior transferência de trabalho académico para a sociedade, e para isso tudo será editado sob Creative Commons. Eu e o Pedro acreditamos que o mundo precisa de se libertar das amarras do copyright no que toca ao conhecimento. A criatividade é sempre gerada a partir do remix de conhecimento prévio, e sem acesso a este dificilmente se pode inovar e avançar. Precisamos de trabalhar para a criação de uma cultura de participação e disseminação do conhecimento criativo. Precisamos não só de desenvolver novas tecnologias criativas, mas também de libertar o conhecimento para que mais pessoas possam entrar no processo.


No dia da apresentação contamos com a presença do Heitor Alvelos que nos irá falar sobre a sua visão à volta destas questões, e contamos ainda com a presença das autoras dos dois primeiros livros, a Raquel Pinto e a Liliana Rocha.

Visitem o site para obter mais informações em engagePress. Os livros serão todos editados no formato Pdf e iPad.

Se acreditam que o vosso trabalho merece estar estar nesta colecção contactem-nos.

maio 31, 2012

Imagine: How Creativity Works (2012)

Imagine: How Creativity Works (2012) é o terceiro livro de Jonah Lehrer. Depois de Proust era um Neurocientista (2007) e How We Decide (2009), dois belíssimos livros de divulgação na área das neurociências, traz-nos agora um trabalho à volta das questões da criatividade. Um livro que faz todo o sentido no seguimento de How We Decide, porque a criatividade no fundo, não é mais do que um processo refinado de tomada de decisões, de resolução de problemas.


Em termos gerais o livro é muito interessante, condensa muito daquilo que se tem estudado sobre o assunto em poucas páginas, carregadas de exemplos e estudos que suportam o que se vai alegando. Apesar de me parecer um bom livro, julgo que fica algo abaixo daquilo a que Lehrer nos habituou. Senti o estilo da escrita a aproximar-se demais de alguns bestsellers de divulgação de ciência, como os livros de Malcolm Gladwell ou Daniel Pink, que pegam em meia dúzia de casos e constroem um livro a partir desses casos. Nos seus anteriores dois livros, Lehrer usava os casos apenas como mote para ir ao fundo das questões, para sobre eles trabalhar a forma como ele próprio vê a realidade. Dando a sua visão pessoal, contribuindo para um avanço do pensamento. Aqui por vezes parece que se fica por agregar casos que suportem uma ideia, sem depois a aprofundar na sua visão pessoal.

Síntese de ideias do livro narrado pelo próprio Jonah Lehrer

Apesar de tudo isto é um livro obrigatório. Food for thought, para vos ajudar no vosso caminho. Não é um livro de receitas, mas em certa medida pode quase funcionar como tal. Em termos específicos existem vários momentos altos no livro, que diga-se, lê-se muito rapidamente e fluidamente. Passo assim em revista aqui alguns dos pontos que mais me interessaram desta leitura.


1. Analisar de fora (Outsider)

O livro começa com o caso de R&D do produto Swiffer. Depois dos PhDs em química terem chegado à conclusão que não era possível melhorar mais os produtos de limpeza, a Procter & Gamble resolveu fazer outsourcing numa empresa de design. Pedindo especificamente um produto novo. Estes, ao contrário dos químicos, não foram ver como melhorar o produto, mas foram antes tentar perceber como é que a actividade era realizada, passaram 3 anos a estudar os comportamentos das pessoas que limpam o chão. Gravaram e viram centenas de horas de vídeo, até que um dia viram alguém usar papel de cozinha meio-húmido para limpar o sujo e deitar fora. E foi aqui que se deu a epifania para criar o Swiffer.


O que a Procter & Gamble aprendeu com tudo isto foi que as soluções por vezes têm de vir de pessoas não especialistas, pessoas de fora do meio. Neste sentido Lehrer dá também o exemplo da 3M uma das empresas que mais patentes tem criado nos últimos anos, porque praticamente se dedica apenas à inovação e ao desenvolvimento de novas ideias para outras empresas. E o que estes fazem no seio da empresa, é muito particular. Possuem pessoas de áreas científicas muito distintas que rodam regularmente entre distintas áreas, mesmo que nada tenham a ver com elas. Para além disso existem processos na empresa que sugerem o transporte de técnicas de umas áreas para outras. Depois de ler isto, sem dúvida que a 3M merece um estudo em profundidade relacionado com a noção de transdisciplinaridade.


Com tudo isto a Procter&Gamble e outras empressa resolveram criar o site Innocentive. Neste site depositam os problemas que as suas equipas de R&D não conseguem resolver. E esperam que apareça alguém que seja capaz de oferecer uma solução. Pode parecer uma forma de outsourcing barata, uma vez que no fundo não há investimento. Mas não é disso que se trata. O que está aqui em questão é garantir que pessoas que nada têm que ver com aquelas áreas possam surgir com uma ideia a partir de um ponto nunca antes imaginado possível. É algo que vai muito para além dos focus groups ou inquéritos, porque podemos ter milhares de pessoas a olhar para o problema de ângulos inimagináveis. E só isso per se garantirá à partida avanços e inovação. Aliás Lehrer dá o caso de um físico que resolvia problemas de química,
“Ed Melcarek, a seven-time solver on InnoCentive, perfectly exemplifies this finding. Although Melcarek has a master’s degree in particle physics, he has never solved a physics challenge on InnoCentive. Instead, he peruses the chemistry and engineering categories on the site, searching for problems that might benefit from his expertise.”
2. Epifania e Serendipidade

A meio do livro Lehrer tenta definir mais em concreto o conceito de criatividade, acabando por o rotular de momento de epifania. Aquele momento em que a nossa mente vê claramente a ideia cristalizada, em que se faz luz. Um momento que é normalmente precedido de serendipidade na associação de ideias mentais. Lehrer fala nas ondas Alfa, que se verificam nos momentos que precedem a epifania. É como se estas varressem o nosso cérebro à procura de ligações, até descobrir o caminho entre ligações correcto. Quando encontram dá-se a epifania. Ao que parece estas ondas alfa não se activam de modo igual em todos nós, e parece, não é uma verdade absoluta, que as pessoas que produzem doses mais elevadas destas ondas são normalmente mais criativas, mais capazes de gerar novas ideias.


Em termos menos técnicos, Lehrer define de forma muito interessante o que diferencia a epifania do pensamento analítico, dedutivo ou indutivo. É que aqui a ideia aparece-nos à mente de modo quasi-instântaneo, como que empurrada pela serendipidade, enquanto no analítico sentimos claramente a nossa mente a deambular por entre ideias e pensamentos em busca de soluções lógicas.

3. Trabalho e Foco

Mas a criatividade não é, de todo, apenas fruto da serendipidade, e de ondas alfa. Lehrer dá-nos muitos exemplos ao longo do livro que demonstram o quanto a criatividade advém e muito do trabalho duro e persistente.
“The reality of the creative process is that it often requires persistence, the ability to stare at a problem until it makes sense. It’s forcing oneself to pay attention, to write all night and then fix those words in the morning. It’s sticking with a poem until it’s perfect; refusing to quit on a math question; working until the cut of a dress is just right. The answer won’t arrive suddenly, in a flash of insight. Instead, it will be revealed slowly, like a coastline emerging from the clouds.”
Exemplos disto são a quantidade enorme de cientistas, artistas e outros que tomavam drogas para acelerar o seu trabalho, para se manterem acordados, tudo em nome da persistência da busca pelas respostas. E daqui Lehrer vai falar-nos de um caso extremamente interessante que é o de Clay Marzo, um surfista campeão mundial com Síndrome de Asperger. O que o Asperger faz é normalmente levar a pessoa a evitar o contacto social e a concentrar-se intensamente numa actividade. Neste caso Marzo só consegue estar bem consigo próprio estando dentro de água, e a surfar. Pode passar mais de 8 horas diárias a fazê-lo.



E é isto que faz a diferença, alguém que treina, e treina, e treina vai tornar-se cada vez melhor. Não porque é um criativo, com excesso de ondas Alfa, mas por focar-se, treinar, experimentar, testar, tão intensivamente que acabará por conseguir desenvolver qualidades que os outros não conseguem. E a verdade é que se procurarem por doentes com Asperger vão encontrar muitos que se deram muito bem na vida. Apesar de não estarem identificados como tal, muitos acreditam por exemplo que Bill Gates, Steven Spielberg, Mark Zuckerberg entre outros sofrem de Asperger. A razão é a sua declarada inabilidade para lidar com o social, e a sua obsessão com aquilo que fazem. Estes possuem um problema que os leva a focar todas as suas energias apenas naquilo que lhes interessa, e podem por isso conseguir destacar-se.

Isto não quer dizer que o Asperger seja uma bênção. Um doente com asperger pode focar-se em coisas que não são de todo relevantes em termos financeiros na nossa sociedade. Por exemplo saber os nomes todos de listas telefónicas, ou contar folhas de árvores. Ou seja, o que nos diz este ponto, é apenas e só, que a capacidade de nos focar-nos intensamente sobre algo pode ajudar em muito ao desenvolvimento de acções criativas, originais, que inovam.

4. Deixar Fluir

Neste ponto Lehrer trabalha sobre as questões da limitação do nosso córtex pré-frontal, que já tinha discutido em How we Decide, e dando vários exemplos que poderão ler no livro. O que me interessa aqui reter é o facto de o nosso córtex pré-frontal ser limitado em termos de quantidade de informação que consegue processar. Ou seja enquanto estamos totalmente conscientes não conseguimos lidar com mais do que 5 a 7 elementos simultaneamente. Existem drogas que ajudam, os chamados desinibidores, e existem pessoas que conseguem de algum modo suspender esse controlo do córtex pré-frontal, embora isto tenha as suas consequências no resto dos comportamentos.
“The lesson of letting go is that we constrain our own creativity. We are so worried about playing the wrong note or saying the wrong thing that we end up with nothing at all, the silence of the scared imagination. While the best performers learn how to selectively repress their inhibitions, to quiet the DLPFC [Dorsolateral Prefrontal Cortex] on command, it’s also possible to lose one’s inhibitions entirely. The result is always tragic, but it’s a tragedy often limned with art.”
O nosso sistema DLPFC é dos últimos a desenvolver-se integralmente durante a nossa infância. Por isso existem ideias como a de Picasso “Every child is an artist. The problem is how to remain an artist once we grow up”. Ou seja o que se passa é que em crianças os nossos sistemas de censura não estão activos, e à medida que vamos crescendo vamo-nos tornando cada vez mais conscientes impossibilitando o improviso, ficando demasiado preocupados com o dizer a coisa errada no momento errado. Como refere Lehrer "It’s at this point that the infamous “fourth-grade slump” in creativity sets in, as students suddenly stop wanting to make art in the classroom.” 

Ainda assim podemos sonhar com a fluição de ideias mesmo em adultos, temos é de saber como. Por exemplo o passear livremente pela cidade experienciando as suas sensações, aquilo que Baudelaire qualificou de actividade de Flanêur, podem ser momentos que ajudem a exponenciar a criatividade. Porque é nesses momentos de despreendimento, de deixar fluir, que somos capazes de estabelecer mais pensamentos associativos entre ideias que jazem no nosso inconsciente. Aliás alguns estudos feitos sobre a sesta, demonstram o quão positiva esta é em termos criativos, por permitir esses momentos de relaxe e abertura ao inconsciente na troca de ideias.
“Once we fall asleep, the prefrontal cortex shuts itself down; the censor goes eerily quiet. Meanwhile, neurons all across the brain start shooting out squirts of acetylcholine. But this isn’t the usual excitement of reality; this activity is semi-random and unpredictable. It’s as if the mind is entertaining itself with improv, filling nighttime narratives with whatever spare details happen to be lying around.”

5. Social e Small Talk (Pixar)

Num estudo realizado sobre os musicais da Broadway chegou-se a uma conclusão que nos parece perfeito senso comum, mas que devemos recordar constantemente.
“creative collaborations have a sweet spot: “The best Broadway teams, by far, were those with a mix of relationships,” Uzzi says. “These teams had some old friends, but they also had newbies. This mixture meant that the artists could interact efficiently — they had a familiar structure to fall back on — but they also managed to incorporate some new ideas. They were comfortable with each other, but they weren’t too comfortable.”

Ou seja, para que possamos ser mais criativos, não devemos estar apenas rodeados de grandes amigos, nem de grandes desconhecidos, precisamos de uma mistura saudável. Por outro lado não basta juntar as pessoas de qualquer forma e esperar que estas colaborem apenas e só. Para isso Lehrer dá o excelente exemplo da Pixar, e dos seus métodos de trabalho. A Pixar lançou-se na construção de um novo edifício que foi totalmente pensado por Steve Jobs para poder estimular a criatividade dos criadores da Pixar. Nesse sentido em vez de criarem 3 edifícios separados, foi criado apenas um, e foi criado um enorme hall no centro do edifício de modo a permitir que todos se encontrassem. Para Jobs a questão central de uma empresa passava pela estimulação de interação entre os seus empregados.

But Jobs realized that it wasn’t enough simply to create an airy atrium; he needed to force people to go there. Jobs began with the mailboxes, which he shifted to the lobby. Then he moved the meeting rooms to the center of the building, followed by the cafeteria and coffee bar and gift shop. But that still wasn’t enough, which is why Jobs eventually decided to locate the only set of bathrooms in the atrium.
Jobs acreditava que os melhores encontros acontecem por acidente, no hall, no estacionamento, no bar. Jobs sabia que a chamada small talk não era uma perda de tempo, que as conversas aleatórias seriam uma fonte constante de novas ideias. E este tipo de ambiente é o que podemos hoje encontrar em empresas como a Apple, a Google ou a 3M. Como disse Brad Bird o criador de Incredibles e Ratatouille
“The atrium initially might seem like a waste of space . . . But Steve realized that when people run into each other, when they make eye contact, things happen. So he made it impossible for you not to run into the rest of the company.”

6. A Crítica é fundamental na criatividade

Um outro ponto importante no livro de Lehrer e que é ainda trabalhado na questão dos métodos de trabalho da Pixar, tem que ver com uma das maiores falácias de sempre no mundo das técnicas de criatividade, nomeadamente a técnica do Brainstorm. Vários estudos têm mostrado que esta técnica não é particularmente feliz quando comparada com outras, ou mesmo quando comparada com indivíduos a trabalhar isoladamente. Ainda assim, eu acredito particularmente no seu potencial, mais ainda se seguirmos a lógica espacial apresentada no ponto anterior.


Ou seja, o que Alex Osborn nos disse sobre a sua ideia do Brainstorm é que esta devia ser aplicada de forma a evitar a crítica. Ou seja juntar as pessoas e levá-las a regurgitar tudo o que lhes vai na mente, sem o receio de que alguém as criticasse. Isto faz algum sentido quando pensamos no ponto acima discutido sobre o Deixar Fluir. O problema é que os estudos têm demonstrado que as ideias que surgem dos normais processo de brainstorm são em número e qualidade reduzidas.

Na Pixar, todos os dias de manhã existem reuniões de Brainstorm, mas com uma nuance muito distinta de Osborn, é que aqui todos devem contribuir, criticando aquilo que está mal feito. Apontando os defeitos, chamando as coisas pelos nomes. O problema de um brainstorm deste tipo é que tem de ser muito bem gerido e regrado, porque corre o risco de rapidamente resvalar para a agressividade. Nesse sentido a Pixar impõe a seguinte conduta, denominada de Plussing. Uma ideia muito simples, que passa por, sempre que alguém critica alguma coisa, essa crítica deve conter um Plus, ou seja uma nova ideia que ajude a combater o problema encontrado. Segundo Charlan Nemeth, psicólgoca at UC-Berkeley, o que acontece é que,
“the reason criticism leads to more new ideas is that it encourages us to fully engage with the work of others. We think about their concepts because we want to improve them; it’s the imperfection that leads us to really listen.”
Aliás é por causa disto que as provas de doutoramento ou mestrado, ou os processos de revisão de artigos dos nossos pares, são tão importantes, nomeadamente quando trabalhados numa perspectiva crítica. É que para eu apontar uma crítica a um trabalho tenho de me envolver totalmente com ele, tenho de entrar dentro da cabeça do seu autor, e pensar como ele, ver a raiz do problema e procurar a sua solução. Se for apenas para dizer bem, esse processo nunca chega a acontecer. Envolver-me com o trabalho significa que não só o aluno vai ganhar, mas eu próprio ganho.


Charlan Nemeth realizou mais alguns estudos que demonstram a raiz do problema do brainstorming tradicional, e que passa pelo facto de o nosso cérebro não funcionar muito bem em termos de livre associação de ideias. Temos tendência para associar ao comum, fácil e familiar. Se perguntam por cor azul, o nosso cérebro diz Céu, ou Oceano. O interessante é a sugestão descoberta por Nemeth para evitar estes buracos do nosso pensamento associativo, e que passa por estimular as pessoas com ideias contrárias, mesmo que erradas, mas que nos façam tirar do marasmo do cliché.

Num dos seus estudos, colocou sujeitos a dizer as cores dos slides que passavam na tela, e no meio dos sujeitos colocou um colaborador, que de vez em quando gritava umas cores ao lado, ou menos usuais, como em vez de dizer vermelho dizia rosa, ou em vez de azul, Turquesa. Quando a seguir questionou as pessoas que tinham sido expostas à sessão com o colaborador que emitia respostas contrárias ou à margem, as pessoas reagiam com respostas mais invulgares que o grupo que não tinha sido exposto ao colaborador. Ou seja, à pergunta associativa para azul, já não diziam céu ou oceano, mas diziam por exemplo Smurfs ou Tarte de Amora.


7. A fricção humana e não a cidade

Este último ponto que aqui discuto é aquele em que mais discordo do pensamento de Lehrer. Ele monta todo um discurso para justificar o facto de que as Cidades são por natureza mais criativas que os meios pequenos, as aldeias. Lehrer suporta-se em Geoffrey West que nos diz que,

"As cities get bigger, everything starts accelerating. Each individual unit becomes more productive and more innovative. There is no equivalent for this in nature. Cities are a total biological anomaly. But you can’t understand modern life without understanding cities. They are the force behind everything interesting. They are where everything new is coming from."
É verdade que concordo com a necessidade de “fricção urbana”, esta pode ser muito útil e benéfica. Aliás responde àquilo que Jobs professava, de todos encontrarem-se com todos, da small talk, do inesperado. Mas não podemos tão facilmente extrapolar isto de um grupo de pessoas para um grande cidade. E o maior problema é que isso está à vista, se por exemplo Silicon Valley é um dos maiores centros criativos do mundo, por outro lado cidades gigantescas na China, México ou Brasil não se tornam automaticamente criativas apenas através da sua densidade populacional. Lehrer admite que estas discrepâncias entre cidades existem e procura trabalhar o problema realizando uma interessantíssima comparação, mas na qual falha para mim o seu objectivo. Realiza uma comparação entre a Route 128 em Boston e Silicon Valley, segundo Vivek Wadhwa, professor da Duke

 “If you were betting on an area to dominate [the tech sector] in 1975, you’d have been wise to bet on Route 128. It had a giant head start over everywhere else. The region had several elite research universities, such as MIT and Harvard, and a long list of successful technology firms. These companies had big contracts with the Defense Department and controlled the market for microchips and electronic hardware."
A verdade é que a história não deu razão a este pensamento. Aliás este caso de Leher está mal desde o ponto de partida, porque Moutain View em San Jose, era um lugar agrícola em 1956 quando William Shockley o co-criador do transístor aí se instalou para abrir a Shockley Transistor Corporation, que viria a impulsionar a criação da Intel. Vejam o que é hoje Mountain View, o que demonstra que foi possível gerar grande criatividade num meio pequeno. Para além disso, Mountain View tinha nessa altura uma população de 6 mil pessoas, e em 2010 apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, e patentes criadas, está abaixo das 100 mil pessoas, longe, muito longe de ser uma grande cidade.

Mountain View

Depois Lehrer vai tentar demonstrar que o problema da Route 128 ter perdido para Silicon Valley se deveu ao facto de esta ser dominada por empresas gigantes que preservavam segredo de tudo o que faziam e que com isso impediam a criatividade de brotar. Ao contrário de Silicon Valley aonde as pequenas empresas dependiam umas das outras para se fazerem valer, e que por isso partilhavam muitas ideias. O que é em parte verdade, a partilha criativa é um enorme estímulo à criatividade, mas não é o único caminho.  

Steve Wozniak e Steve Jobs com o Apple I

Para fechar o assunto Leher dá o exemplo do aparecimento da Apple baseado no sistema de partilha, que é verdade. Nisso Wozniak era totalmente diferente de Jobs, tinham visões muito diferentes. Mas a verdade é que a marca criativa deixada pela Apple, não é o Apple I e II de Wozniak, mas o Macintosh e o iPhone, que por sinal foram criados em grande segredo por Steve Jobs. A diferença, é que esses produtos foram criados em segredo, mas por uma equipa de pessoas que trabalhava sob um ambiente criativo igual ao que foi discutido acima no caso da Pixar.


Jobs era extremamente indelicado e rude nas críticas que fazia aos seus colaboradores, mas a verdade é que exigia destes que também fossem críticos e exigentes para com ele. Nas suas reuniões, não era anormal existirem grandes discussões e perturbação emocional entre as pessoas, e estas insurgirem-se contra as ideias de Jobs. Claro que se o fizessem teriam de ter argumentos para sustentar a sua crítica. E talvez seja esse um dos maiores segredos da história da Apple. A discussão profundamente crítica e exigente dos mais ínfimos detalhes dos produtos em desenvolvimento.

Para fechar, este não é o derradeiro livro sobre Criativade, talvez porque isso não seja possível, porque esta é em si mesma impossível de definir. Na sua essência, a criativdade é a originalidade, sempre diferente, não padronizável. Aliás como o próprio Jonah Lehrer admite quase no final do livro "Every creative story is different".