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março 10, 2018

Conhecimento: abstraído, individualizado e emocionalizado

A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.


Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.” 
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.” 
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”

Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.


A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”

março 03, 2018

Journal of Digital Media & Interaction

Não faltam revistas científicas no mundo, por isso de todas as vezes que pensei criar uma nova, particularmente ao longo dos últimos cinco anos, questionei-me sempre se valeria a pena, se era mesmo necessária, se não existiriam já espaços suficientes onde publicar toda a investigação que se vai fazendo nas áreas em que tenho trabalhado. Porém, desta vez esse projeto avançou, motivado pelo facto de ter mudado de instituição no final do ano passado, e pelo facto do grupo que vim encontrar, apresentar uma especificidade a nível nacional que mesmo no campo internacional encontra ainda poucos espelhos. Claro que para que um projeto destes avançasse no terreno, dada a sua exigência, seria preciso existirem mais pessoas com a mesma vontade, um centro de investigação interessado no mesmo — Digimedia — mas em particular uma colega, a Lídia Oliveira, que desde a primeira hora se mostrou totalmente disponível para levarmos este projeto por diante. Assim, a nova revista científica internacional que agora torno pública — Journal of Digital Media & Interaction — não acaba aqui, antes começa. Não faltam ideias a mim e à Lídia para o futuro da mesma, veremos até onde nos conduz, ou até onde a conseguiremos nós conduzir.


Falei da especificidade científica e por isso devo aqui explicitar a mesma, ainda que esta se encontre há muito inscrita na matriz científica da Universidade de Aveiro como área de "Ciências e Tecnologias da Comunicação", designação académica daquilo que foi em tempos a Multimédia, depois os Novos Media, seguido dos Media Interativos e que hoje tende para a designação de Media Digitais. O Scope da revista contribui para elucidar essa especificidade, definindo a abordagem como transdisciplinar, dadas as exigências que o campo apresenta. Não se trata apenas de trazer para o seio da discussão diferentes colegas, munidos de diferentes abordagens científicas, mas de cada um de nós laborar a construção de conhecimento baseado em teoria e empiria proveniente de diferentes áreas. No caso, o foco nasce da junção de duas áreas por força da evolução tecnológica: de um lado os Media, enquanto mediadores de comunicação e informação; e do outro o Design, enquanto construtor da interação entre os media e os utilizadores. Para o efeito precisamos assim de convocar para além dos Estudos dos Media e do Design de Interação, a Comunicação, a Interação Humano-Computador, os Estudos Culturais, o Design, a Psicologia, a Sociologia e as Ciências da Informação. Como facilmente se poderá entender, uma abordagem deste tipo abre um território infindável de domínios, que pode ir desde os videojogos às aplicações nos campos da saúde e educação, passando pela televisão interativa, a cibercultura, a computação física, ou o design inclusivo. Neste sentido, as áreas de interesse listadas na revista, representam apenas a ponta do icebergue daquilo que esperamos poder vir a discutir nas páginas desta nova revista.

Como uma revista não existe per se, menos ainda uma revista científica, interessa aqui dar conta do mais importante deste anúncio, e que é a nossa primeira Chamada de Artigos estar aberta até ao dia 30 de Abril de 2018. Quem submeter agora, habilita-se a publicar naquele que servirá de nº1 a esta revista. Para já ainda não temos ISSN, porque este só é atribuído depois de publicado um primeiro número, por se tratar de uma publicação periódica. Relativamente à indexação, todos os que sintam alguma reticência, posso assegurar-vos que o nosso objetivo, tanto meu como da Lídia, é indexar a revista nos principais serviços internacionais no mais curto espaço de tempo, tendo perfeita noção do trabalho que isso implica. Aliás, nesse mesmo sentido elegemos o Inglês como língua principal de trabalho da revista, mantendo no entanto aberta a possibilidade de publicar artigos em português, francês e espanhol.

Peço-vos então que partilhem o CFP e deem a conhecer o Journal of Digital Media & Interaction, e claro, submetam os vossos artigos.

fevereiro 12, 2018

CFP: Storyworld Design

Já está online a Chamada de Artigos para um número especial da revista científica espanhola ICONO14 dedicado ao Storyworld Design. Creative perspectives for an Organic Transmedia, que será editado por mim e pela colega Beatriz Legeren Lago da Universidade de Vigo. A I14 é uma revista da área das Tecnologias da Comunicação, baseada na Universidad Complutense de Madrid, e está indexada na Web of Science.


Como diz o subtítulo — Creative perspectives for an Organic Transmedia — o nosso foco são os aspetos ligados ao desenvolvimento e criação de Transmedia, ou seja, interessa-nos essencialmente discussões sobre os modos como se faz e fez ou ainda prospetivas e especulações sobre como inovar ou avançar os modelos atuais de design no sentido de obter a maior organicidade possível.

Diagrama do design de mundos-história transmedia. Gráfico de Peter von Stackelberg

O deadline para a submissão dos artigos completos é Setembro 2018, sendo a revista depois publicada em Janeiro 2019. Qualquer dúvida, contactem, e por favor partilhem o CFP abaixo, na versão PDF ou a partir da própria revista.

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Call for Papers for a journal special issue on

Storyworld Design. Creative perspectives for an Organic Transmedia

** Journal **
Journal ICONO14
ISSN: 1697-8293 | DOI: 10.795/ri14 | URL: https://icono14.net


** Deadlines **
Opening date for the submission of proposals: 1 July 2018
Deadline for submission of full articles: 15 September 2018


** Guest Editors **
Beatriz Legeren Lago, University of Vigo (Spain) [blegeren@uvigo.es]
Nelson Zagalo, University of Aveiro (Portugal) [nzagalo@ua.pt]


** Publication date **
1 January 2019


** Presentation **
Digitalization affects not only consumption, but also creation. Stories should not be designed only for one medium (screen), they should be created with many screens in mind. Making the most of their different characteristics will enrich the story and provide new ways to approach a fictional universe that can become pervasive through the design of organic transmedia products.

As creators we can no longer focus on only one medium, we need to be aware of how they interrelate in the new media ecosystem. We must also reflect on how to apply our creative potential, either by relying on simple multimedia, intermedia or crossmedia scenarios or by taking active steps to develop transmedia. Independently of the future ecosystem in which our creations will take place, narrative production should nowadays be understood more in terms of a fictional universe rather than in terms of a closed story. In other words, the current mix of technical possibilities, media and media channels allow, and almost demand, the continuation, extension, adaptation, or extrapolation of the story.

Note how, in recent years, we have changed our own discourse, talking about narrative design instead of narrative writing. This is explained by changes in the media ecosystem, the increased demand for narrative products but, especially, by the need to create narratives that work as organic systems capable of linking different stories, multiplying perspectives, and creating universes.

None of this is indifferent to production companies’ needs to create new intellectual property. The need for content to keep all the content networks active has led to increased production, but creating new products is always a risk. Audiences tend to prefer sequels or prequels; in other words, stories that in some way are connected to universes they already know. Spectators are quick to identify and empathise with these universes and want to access them more. This means that, increasingly, each new story can no longer be considered as just a story; it must have conditions to be expanded into new and complete narrative universes.

On the other hand, we cannot forget how the world of communication has abandoned the unidirectional creation paradigm. We can no longer think about creators and receivers, we need to understand that we are communicating with other creators. In other words, we need to be aware that fictional universes don’t end when they are released; that is the moment in which they really begin, as fans appropriate them and give them continuity in their communities. Over time, continuous creation cycles mean that these fan-based manifestations will be incorporated in next creations.

This monograph seeks to collect research contributions that will describe, explain and reflect on the story creation process from the perspective of scriptwriters and designers; producers and directors; and from the audience, readers, spectators or players.

But that won’t be all. It also seeks to understand where these new models are taking us and to present potential new approaches that new creators can implement and develop.


** Proposed topics **
Theoretical perspectives on creating for different screens.
Changes in the narrative construction of audiovisual works.
Video game script development with virtual reality interaction.
Co-creation and transmedia.
Proto narratives embedded in virtual systems.
Design of storyworlds and fictional universes.
Character design for fictional universes.
Designing for user/player participation.
Differences in transmedia models.
Narrative, game and storyworld.
Universes co-created by players.
Open and closed worlds.
The psychology of mental reconstruction of new stories.


** Guidelines for authors **
Papers can be submitted in English or Spanish.

All submissions must be made through the OJS platform of the journal Icono14 https://icono14.net/ojs/index.php/icono14/about

The authors’ guidelines can be found at the following URL: http://www.icono14.net/ojs/index.php/icono14/about/submissions#authorGuidelines


** About the Journal **
The Journal ICONO 14 offers a space to disseminate quality scientific works concerning basic or applied, experimental, epistemological and descriptive research on communication, its corresponding fields, and particularly Information and Communication Technologies from a communicative perspective.


** Indexation **
Web of Science - Emerging Citation Index, Clarivate Analytics, Google Scholar Metrics, Journal Scholar Metrics (Communication), MIAR , SJIF, INDEX Copernicus International, Cosmos Impact Factor

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fevereiro 09, 2018

Boom Digital? Crianças (3-8 anos) e Ecrãs (2018)

Já está disponível o novo livro "Boom Digital? Crianças (3-8 anos) e Ecrãs" (2018) publicado pela ERC. Em 2016 a professora Cristina Ponte lançou um projeto no qual se pretendia conhecer os usos de meios eletrónicos por crianças dos três aos oito anos em Portugal, os resultados surpreenderam e foram publicados no ano passado no ebook "Crescendo entre Ecrãs" (2017). Para este novo livro, a professora convidou vários investigadores para refletir sobre os resultados, aprofundando tópicos como: a educação, a família, a parentalidade, a infância, os media digitais e os jogos digitais.


Agradeço o convite realizado pela Cristina Ponte para participar nesta reflexão, que muito me honra, tendo em conta todo o trabalho que vem realizando nos últimos anos neste domínio da relação entre os media e as crianças. Assim, no meu texto — Jogos digitais na infância — procurei analisar os dados encontrados e contribuir para uma abordagem crítica dos mesmos, nomeadamente desfazer alguns fantasmas e alarmismos que vêm sendo propalados. Interessou-me dar algumas respostas sobre as razões porque geram tanto fascínio os videojogos junto das crianças, e ao mesmo tempo lançar uma abordagem de análise que se desligue da distinção entre género (feminino e masculino), e opere mais a partir da distinção entre jogos competitivos e cooperativos.

Recomendo a leitura do estudo, e dos vários capítulos de reflexão sobre o mesmo, pois servirão para construir uma sociedade mais consciente da realidade, menos receosa e mais capaz de aproveitar o potencial que os media digitais, e os jogos também, possuem na formação das nossas sociedades.

Podem descarregar o livro completo também em PDF.

outubro 29, 2017

O Cérebro Narrativo

Damásio não se cansa de tentar fazer avançar o conhecimento no domínio da consciência, do conhecimento de si, em particular do modo como compreendemos o mundo e a nós mesmos. No estudo “Decoding the Neural Representation of Story Meanings across Languages” (2017), agora publicado na revista Human Brain Mapping, a sua equipa apresenta pela primeira vez, evidências empíricas da existência de estruturas narrativas no nosso cérebro, que se podem encontrar de modo universal nos seres humanos, operando indistintamente em múltiplas línguas, sendo ativadas tanto por meio de histórias orais como escritas, e à partida também audiovisuais.



Não é de agora que se suspeita que existe em nós uma predisposição para estruturar a informação em blocos narrativos, ou seja, criar pedaços de histórias para dar sentido à realidade e mais facilmente memorizar a mesma. Joseph Campbell (1949) apesar de trabalhar em Antropologia e se ter socorrido da Mitologia e da Psicanálise, chegou a afirmar algo como: as histórias estão interligadas com aquilo que somos e desejamos ser. No início dos anos 1980 Walter Fischer defendia a existência de um "paradigma narrativo" que estava na base de toda a comunicação humana, sem o qual não nos entenderíamos uns aos outros. Desde o aparecimento das neurociências que muitos estudos têm sido dedicados a estudar o modo como compreendemos a realidade, e a tentativa por entender o modo como contamos histórias tem sido um dos vetores dessas abordagens.

São múltiplos os estudos que têm sido realizados para compreender o poder do ato de contar histórias e que tem invadido o discurso em quase todas as áreas. [Infografia da OneSpot a partir de dados coligidos por Widrich (2016)].

Ora a estrutura que parece operar as histórias no nosso cérebro é designada como “default mode network” (DMN) tendo sido inicialmente identificada como “"resting state" network that shows high baseline activity when people are asked to rest without engaging in any specific externally-focused task [Raichle and Snyder, 2007; Raichle, 2015].”. Esta estrutura crê-se estar na base de “such cognitive processes as mind-wandering [Smallwood and Schooler, 2015], thinking about one’s self [Qin and Northoff, 2011], remembering the past and imagining the future [Østby et al., 2012], and in general to support stimulus-independent thought [Smallwood et al., 2013].” Por outro lado “the activity in the DMN is consistent when a story is presented in different modalities (spoken vs. written), or in different languages (Russian vs. English to native speakers of these languages), indicating highly abstracted representations of the stimuli in this network [Chen et al., 2017; Honey et al., 2012; Regev et al., 2013; Zadbood et al., 2016].” Num outro estudo realizado por Chen et al. (2017) foi possível encontrar também “evidence that there are shared patterns of activity in the DMN across participants when describing scenes from an audiovisual story”.

Ou seja, os vários trabalhos vêm demonstrando que vamos para além da mera operação sintática — forma das letras e palavras — assim como da mera análise semântica —  sentido das frases, sendo capazes de operar a um nível narrativo, ou “alto-nível semântico”. Isto é, “abstracted beyond the level of independent concepts and language units, the brain seems to systematically encode high-level narrative elements”. Ou seja, trabalhamos por meio do DMN as palavras e os seus sentidos para simular histórias mentais, para assim compreendermos o que nos está a chegar por via dos sentidos. Mas como se diz acima, isto não trabalha apenas com os sentidos, isto trabalha de modo quase-contínuo em nós, alternando com o modo cognitivo de foco (em que exigimos toda a nossa capacidade cognitiva para realizar uma tarefa) operando como uma espécie de máquina de “sonhar acordado”, que nos vai oferecendo pontos de vista sobre o mundo, e sobre nós próprios pela interação com o mundo externo, assim como pela interação entre pedaços de informações provindas de experiências do passado, memorizadas em nós.

Neste sentido quando acedemos a histórias exteriores a nós, pelo facto de usarem a mesma estrutura organizativa que o cérebro utiliza para as simular, recorremos a toda uma “cognitive architecture” que realiza um “stitch together individual words, link events with their causes, and remember what came before to build a holistic understanding”. Isto explica porque é tão fácil conectarmo-nos com o que vai sendo contado, e em certa medida, porque ouvir ou ler uma história, não se diferencia muito de sonhar acordado, o que acaba por dar suporte ao sentimento de “imersão” ou de “perder-se numa história”, o sentimento de esquecimento do mundo real à nossa volta.

No final, a equipa de Damásio veio dar razão a muito daquilo que sempre soubemos: que gostamos de histórias porque o nosso cérebro passa a vida a contar histórias a si próprio; ou ainda que as histórias servem para enquadrar a realidade e compreendê-la, não apenas os seus acontecimentos e os seus mundos, mas mais ainda em particular, as suas personagens, que usamos como modelos para nos colocar no lugar de, para simular e empatizar, para no fim de tudo, aprender.


Nota: Tendo o trabalho sido desenvolvido por uma equipa considerável, é muito interessante ver como no final surge apresentada a divisão de trabalho efetivo realizado por cada um dos membros da equipa. Talvez seja prática em certos domínios, mas julgo que seria algo a implementar em todas as publicações científicas.

Todos os excertos inglês retirados do artigo:
Dehghani, M., Boghrati, R., Man, K., Hoover, J., Gimbel, S. I., Vaswani, A., Zevin, J. D., Immordino-Yang, M. H., Gordon, A. S., Damasio, A. and Kaplan, J. T. (2017), Decoding the neural representation of story meanings across languages. Hum. Brain Mapp.. doi:10.1002/hbm.23814

outubro 28, 2017

A Internet como Máquina de Propaganda

Há duas semanas apresentei uma comunicação na qual dava conta dos problemas de estarmos a criar uma sociedade baseada no digital, baseada na imensidão de dados que pululam na internet, uma sociedade que segundo Harari se está a virar da ciência e da religião para os dados, criando assim um novo movimento, o dataismo. Nessa altura apontei como alguns dos problemas na base do dataismo, as “Notícias Falsas” e os “Factos Alternativos”, mas optei por não desenvolver, crendo ser algo já amplamente reconhecido. Contudo a leitura recente de um texto da Wired sobre a condição da mulher na Rússia mostrou-me algo que me tinha passado um pouco ao lado, a génese das Fake News internacionais.


O Brexit e a eleição de Trump trouxeram para o centro da discussão internacional o impacto das Notícias Falsas nas sociedades, nomeadamente pelo facto da Rússia se ter transformado, de novo como que renascida das cinzas, em arqui-inimigo dos EUA e simultaneamente do bloco UE. Só que desta vez o problema não assenta em força bruta, armas ou nuclear, assenta em algo muito menos visível mas paradoxalmente muito mais próximo, que entra pelas nossas casas e vidas adentro, a internet. Sobre esta rede como um todo, mas com particular destaque para as redes sociais — Facebook e Twitter —, pode dizer-se hoje, sem grande exagero, que se transformou no Cavalo de Tróia perfeito para quem quer que deseje agir na arena geopolítica.

Mas como é que isto aconteceu? E como é que ninguém previu isto?

Existem vários pontos que sustentam o surgimento deste fenómeno. O primeiro é naturalmente a passagem de toda a informação e comunicação dos meios tradicionais para o meio digital. Ou seja, toda a comunicação social, todas as empresas, todas as pessoas a nível pessoal, e claro também todos os governos passaram a comunicar através de uma canal único, a internet. Neste quadro, não só todos têm acesso às mesmas ferramentas de produção de informação, como todos acedem ao mesmo canal para divulgar e promover as suas ideias. Isto forçou o aparecimento de técnicas de comunicação que se assemelham mais a propaganda e menos a comunicação. Se primeiramente vimos as empresas a fazer uso destas, rapidamente os governos começaram a pensar que essa era também a única via.

Recordemos a revolução da década anterior no seio das indústrias criativas, nomeadamente musical e cinematográfica, em que as empresas viram os seus lucros cair a pique porque os seus produtos eram partilhados na rede pelas pessoas, minimizando drasticamente a necessidade de compra de novas cópias. As soluções encontradas foram múltiplas, desde processos em tribunal e consequente capacidade para eliminar sites que partilham, às atuais plataformas de streaming, mas pelo meio e de forma muito menos visível e menos discutida, as empresas utilizaram tácticas, e continuam a utilizar, de contrainformação. Ou seja, se tentarem procurar hoje na rede algum filme, música ou livro para fazer download vão encontrar dezenas e dezenas de links e sites dedicados, mas falsos. Os sites possuem descrições das obras, possuem vários botões que apontam para o potencial local em que se pode descarregar a mesma, mas nunca se chega a aceder verdadeiramente a obra. Faz-se circular por labirintos de informação falsa, sem retorno, cansando assim o potencial “pirata” levando-o a desistir das suas intenções.

Ora foram exatamente estas mesmas tácticas que a empresa conhecida como Internet Research Agency baseada em St. Petersburg, mas às ordens do Kremlin, começou a utilizar para manipular a política interna. Putin está no comando da Rússia há quase duas décadas e isso num país com as assimetrias e dimensão que se conhecem não se consegue sem um controlo muito grande das populações. Não podemos esquecer que Putin foi agente do KGB, e depois diretor do mesmo, é alguém profundamente treinado no secretismo, nomeadamente na arte da manipulação humana. Deste modo quando Putin percebeu que apesar de controlar toda a Comunicação Social no seu país, a informação imparcial continuava a jorrar e entrava diretamente em casa da população por via da internet, foi obrigado a agir. Primeiramente tentando controlar a informação que circulava na rede, o acesso a meios internacionais, mas rapidamente percebeu, ao contrário da China (não que a China não esteja a acordar para o fenómeno e talvez de forma ainda mais brutal), que não podia controlar a internet e por isso subiu a parada. O passo seguinte foi inundar a internet com toneladas de informação falsa, impedindo os cidadãos russos de conhecer a verdade, ou pelo menos criarem uma base sólida sobre a realidade.


Falamos de uma técnica antiga de guerrilha, a contrainformação, utilizada em toda e qualquer disputa pela verdade, e já amplamente utilizada pela URSS no passado. Mas no passado o governo da URSS limitava-se a deter os meios de comunicação social para debitar a informação que lhe interessava, criando assim uma sensação, imensamente descrita pelos povos que viveram sob esse regime, de choque permanente entre realidade e ficção. Hoje numa Rússia aparentemente mais livre, dotada de internet, é mais difícil controlar a informação que se produz, desse modo a alternativa que sobrou foi a de produzir informação falsa e contrária misturando-a com a demais. Se antes o povo sentia que aquilo que os órgãos de comunicação social da URSS diziam não se ligava muito com a vida real que levavam, hoje o povo ao aceder à informação e contrainformação, acaba por ficar de tal forma baralhado, sendo conduzido ao mesmo ponto do “pirata” de música, o de desistência.

Esta questão torna muito mais claro e óbvio o que viria a acontecer no ano passado com o Brexit e Trump. Depois de criada a “Fábrica de trolls” na Rússia, e controlada a sua própria população, era preciso continuar a dar trabalho a todo um exército digital, e nada poderia ser mais apetecível do que a destruição dos seus rivais, no fundo os responsáveis pela entrada da tal “informação imparcial” no seu país por via da internet. O bloco europeu, mesmo ao lado, tem sido uma das maiores ameaças ao seu poder, muito provavelmente um dos maiores responsáveis pela queda da URSS, pelo exemplo democrático, de modo que tudo o que puder afundar esse bloco servirá a causa de Putin. Já no caso dos EUA não seria preciso grande motivação para além de todo o historial entre os dois países, mas é claro que a supremacia económica e cultural ainda detida pelos EUA continua a ser um alvo apetecível.

É claro que se o problema tivesse partido de Putin e tivesse ficado contido na sua figura, como o “elo do mal”, nada disto seria muito preocupante para os povos não governados pelo mesmo. Ou seja, se os restantes governantes e políticos tivessem recusado estas tácticas e se tivessem desviado das mesmas, o seu impacto teria sido muito atenuado. O problema é que tivemos políticos em todo o lado, dos EUA ao Reino Unido, passando pelos casos mais recentes da Alemanha e Áustria que resolveram enveredar pelo mesmo caminho. Alguns assumindo uma fachada de inocência, limitando-se a surfar a onda proporcionada pela contrainformação das fábricas russas, outros indo mais longe, iniciando as suas próprias estratégias, se não produzindo especificamente contrainformação, fazendo uso das mesmas tácticas de apelo emocional. Ou seja, fazendo política com base no nacionalismo como forma de luta contra a crise económica internacional, como pudemos ver na Hungria, em Inglaterra, na Holanda, em França, na Alemanha, na Áustria e agora mesmo iniciando-se a nível regional em Barcelona e no Norte de Itália.

Fica só a faltar o último “player” de toda esta equação, as redes sociais, porque se a internet é o canal que tudo proporciona, as redes sociais são as plataformas que verdadeiramente interligam todas as pessoas, predispondo-as a abrir-se à informação, mas acima de tudo à comunicação. Neste sentido as redes sociais tornaram-se muito mais poderosas que os órgãos de comunicação social, pois acreditamos mais num ato de comunicação do que num de mera informação. Ou seja, em conversas que possamos ter com outros, que vão reforçando as nossas crenças, porque são nossos amigos próximos, e nos habituámos a respeitar. E por isso se uma informação começa a circular sem fundamento, mas alguém próximo de mim a partilha, abre-se desde logo um precedente para que eu próprio inicie a crença nessa informação. E uma vez instalada, torna-se difícil de apagar, mesmo quando a informação surge desmontada, porque mais uma vez, acreditamos mais nas pessoas iguais a nós do que em órgãos de informação abstratos. Veja-se o caso decorrido esta semana em Portugal, que ficou conhecido por "Chemtrails".

Não admira então que dentro de poucos dias, a 1 de Novembro, o Twitter, o Facebook e a Google vão ser ouvidos nos EUA pelo Senate Select Committee on Intelligence, uma audição imensamente aguardada não apenas para tentar compreender melhor o que aconteceu com a eleição de Trump, mas para tentar compreender o papel que estas três empresas estão verdadeiramente a desempenhar na formação e manipulação da opinião pública. A quantidade de dados que existem já oferecem poucas dúvidas à intromissão da Rússia nas eleições americanas de 2016, seja pela produção de contrainformação, seja pela recente descoberta de compra de anúncios por esta. O cenário para um completo embuste foi montado, agora falta descobrir o quão efetivo verdadeiramente foi. E a verdade é que a imagem de Silicon Valley não sairá disto incólume.
“I think the time has come that we are going to see an end to Internet exceptionalism where platforms can continue to claim some sort of immunity because of their nature.
It's going to be an interesting moment of seeing where the rubber hits the road in terms of…their kind of market positions as bastions of liberal ideals, and their distaste and disdain for being regulated by anyone but themselves”.

Sarah T Roberts, professora de Estudos de Informação na UCLA
Posto tudo isto, encontramo-nos numa encruzilhada. Criámos as melhores tecnologias de informação e comunicação algumas vez existentes, mas em vez de servirem para nos unir, parecem estar a produzir o oposto. Pode parecer surpreendente, mas não é. Na verdade as tecnologias não mudam o ser-humano, apenas ampliam as suas qualidades, e claro os seus defeitos. Neste caso a internet e as redes sociais estão a fazer exatamente isso, a ampliar a nossa sede de comunidade, a nossa sede de grupo, e essa precisa de ser alimentada, precisa de "um outro". A criação de uma comunidade global completa não deixa de ser uma utopia, tal como a Torre de Babel o foi. Precisamos de cola para unir o grupo e a comunidade, e essa só pode ser fornecida pela existência de perigos a partir dos outros, iguais a nós mas em quem sempre encontraremos a diferença. Porque no fundo, aquilo que verdadeiramente nos une enquanto comunidades, não é a fraternidade, mas o medo.

junho 22, 2017

O Nome da Rosa (1980)

Vi o filme no cinema quando saiu por cá, na segunda metade da década 1980, e ao longo da década de 1990 vi-o em VHS mais de uma dezena de vezes, até que o arrumei na prateleira e na minha cabeça como objeto definido e fechado. Não tendo nesse tempo chegado a ler o livro e tendo depois ‘arrumado’ o filme, só agora, passados vinte anos, resolvi revisitar a biblioteca-labirinto na abadia medieval, mas resolvi fazê-lo através do livro. As primeiras páginas fizeram ressurgir todo o universo do filme, não sendo nunca capaz de superar as memórias que em mim existiam, mas ao chegar à última página vi-me obrigado a aceitar que as duas obras se distanciam, já que o filme se fica pela análise histórica envolvida por uma teia de crimes, enquanto o livro vai para além disto, apresentando toda uma camada reflexiva para o leitor que a ela se queira dedicar. Contudo, tenho perfeita noção que nada de novo tenho para dizer, e se escrevo as linhas que se seguem é apenas por necessidade pessoal de reflexão e verbalização sobre a obra.


A Abadia de São Miguel em Piemonte, Itália que serviu de inspiração a Umberto Eco

Eco teve imensa sorte com o sucesso conseguido com o seu primeiro livro de romance. Não é fácil para um académico passar da escrita densa e seca das reflexões escolares para uma escrita escorreita e envolvente como o romance obriga. O modo como realizou essa transição foi inteligente, já que optou por um caminho intermédio, ou seja criando uma obra de edutainment (entretenimento educativo), socorrendo-se de um género que se viria a tornar nos anos mais recentes altamente popular, o Romance Histórico. Mas não se ficaria por aí, aquilo que distinguiria este trabalho de Eco dos demais foi no fundo aquilo que lhe permitiu aliviar a transição entre géneros, ou seja, o modo como ele liga a sua área de especialidade académica (a semiótica, o estudo da criação de sentido) com a aventura romanesca (a procura de pistas). Guilherme de Baskerville não anda apenas à procura do assassino, anda também à procura do sentidos, fazendo-o de uma forma pouco ortodoxa para a época em que se encontra.

Assim Eco conseguiu de forma simples criar um romance em camadas, permitindo a um grande público seguir atrás da tradicional história de crime e mistério, enquanto uma outra parte do público se dedicaria a tentar compreender as restantes camadas "escondidas" pelo autor. Enquanto na camada mais visível temos Sherlock Holmes a ligar provas entre si, nas restante camadas temos Eco à procura de sentidos em palavras, gestos, textos e contextos, apresentando Guilherme como o homem renascentista que renuncia a Inquisição e ao obscurantismo, em busca da verdade suportada em evidência empírica. Este novo homem, espécie de Eco investigador e semiótico que regressa ao passado, dá conta de uma viragem crucial na história europeia, do momento em que se abrem as portas renascentistas ao mundo da Ciência. O conhecimento científico que viria a servir para retirar o ser humano do caminho das trevas religiosas, trocando-o pela auto-estrada do auto-conhecimento e consequente progresso humano.

O próprio centro da obra, a Biblioteca, é mais importante que os assassinatos. Repare-se como aqueles agarrados ao fanatismo religioso e ao status-quo tudo faziam para manter as trevas, impedindo o acesso ao conhecimento, escondendo-o dentro de labirintos inacessíveis e mortais. Uma biblioteca que não servia para dar a conhecer mas para esconder. Ou seja, Eco consegue unir o melhor do romance, o crime-aventura, com o melhor da busca de sentido, a ciência.

A obra final que serve de móbil aos crimes, o livro perdido da Poética de Aristóteles, o segundo tomo que se supõe versar sobre a Comédia, é um passo magistral. Tendo sido devidamente preservado no filme, durante muito tempo me questionei porquê um livro sobre o riso, apesar de ser evidente a intolerância da maioria das religiões ao riso não é muito claro a razão de tal. Sim, a religião exige a seriedade e o riso não se coaduna, mas não é só isso, não seria apenas por isso que Eco faria deste o objeto central da sua obra. Na verdade o riso acaba sendo fundamental, porque nos permite colocar a realidade em perspetiva, rindo da mesma, libertando-nos do medo.
“- O riso liberta o vilão do medo do diabo (..) Ao vilão que ri, naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? ”
“- O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. ”
O riso faz de nós criaturas capazes de duvidar, suportando a vontade de conhecer e descobrir quem somos, impedindo que nos limitemos a aceitar a verdade imposta na forma de dogmas.

março 12, 2017

Switch, mais uma revolução Nintendo

2017 viu nascer não apenas uma nova consola, mas o renascer da esperança nas consolas de videojogos. Com a evolução tecnológica — aumento de processamento, sistemas cloud e novas plataformas (telemóveis, tábletes, Steam, etc.) — as consolas pareciam estar condenadas ao definhamento. Muito se escreveu sobre o seu fim, sobre a sua irrelevância. Contudo o lançamento da Nintendo Switch pôs um ponto nesta discussão, ainda que possa ser temporário, ao tornar-se na consola que mais rapidamente vendeu em mais de 30 anos. Como é que as previsões falharam tanto?



Interessa-me menos explicar o que falhou nas previsões, já que as previsões apenas existem para gáudio mediático e financeiro. As previsões tecnológicas ou outras, como nos demonstrou a astrologia, estão condenadas às regras do acaso e coincidência. Daí que conduzir as nossas expetativas na certeza de previsões seja pouco saudável e nada recomendável. Interessa-me mais perceber o que desencadeou todo este interesse nesta consola especificamente, e acima de tudo, tentar compreender o que ela representa para o meio expressivo dos videojogos. Faço-o enquanto investigador que estuda o meio, mas faço-o também enquanto mero consumidor, já que em 30 anos de historial nunca tinha comprado uma consola em pré-venda.

Começando pelo lado do consumidor. Comprei a Nintendo Switch influenciado por apenas um elemento comercial, o primeiro trailer “First Look at Nintendo Switch”. Assim que o vi, em Outubro 2016, fiquei apaixonado, e tomei a decisão de a adquirir. Pouco mais li sobre a mesma até a adquirir. Contribuíram para essa decisão vários fatores: 1) não tinha adquirido a Wii U, e com isso tinha perdido a oportunidade de jogar alguns jogos da Nintendo, vi assim na Switch a oportunidade de recuperar alguns desses jogos; 2) a saída de um novo Zelda, e o desejo de voltar ao fantástico universo de "Skyward Sword" (2011), agora num mundo completamente aberto; 3) e por último o potencial de jogabilidade demonstrado pelo trailer. Este último ponto foi decisivo porque se ligava ao meu trabalho de forma mais concreta, acabando por ser o gatilho fundamental para a compra.

A Nintendo Switch revelou-se distinta do que vi no trailer. Primeiro porque ainda falta um claro investimento em jogos que rentabilizem todo o seu potencial, muito daquele que surge no trailer, falo em concreto da jogabilidade social, assimétrica e física. Temos uma clara evolução face à Wii, porque é claramente mais social. Os dois comandos pedem de imediato dois jogadores, e com isso a construção de toda uma relação social muito mais intensa (que consegui observar diretamente cá em casa). A Wii apesar de ter esta mesma capacidade, continuava ainda muito agarrada à ideia do jogador individual, com o ecrã a marcar o centro de toda a experiência. O videojogo “1-2-Switch” abre todo um leque de experiências de jogo até aqui deixadas por explorar pelas consolas, nomeadamente todas as que secundarizam o ecrã e colocam os jogadores fisicamente no centro da ação.



Insisto no campo social, por contrapeso à Realidade Virtual, que tomou conta do mundo dos videojogos nos últimos dois anos. Os jogos, antes de serem digitais, foram sempre sociais. Os jogos só se tornaram individualizantes com a presença das máquinas, porque estas passaram a simular a existência de um outro, permitindo a gratificação de jogo a solo. O ato de jogar não é relevante sem a componente social. Podemos até jogar sozinhos algumas bolas ao cesto, mas a gratificação é efémera se não pudermos competir, ou pelo menos demonstrar as nossas competências a quem nos dê feedback. Neste sentido, a Nintendo Switch poderia chamar-se Nintendo Social, porque é um dos seus maiores atributos, porque recolocou a essência do jogo no centro da atividade, e  finalmente porque o fez remando contra toda a maré individualizante da Realidade Virtual.

Mas talvez não tivesse escrito estas linhas, se não tivesse encontrado outro fator que me marcou ainda mais na experiência desta consola, por ter superado completamente aquilo que o trailer apresentava, falo da portabilidade. Muito honestamente, do trailer não tinha compreendido que a consola era essencialmente portátil, e que a componente de sala era apenas um modo de carregamento e ligação à televisão, por isso a surpresa foi ainda maior. Ou seja, a consola no seu modo portátil está completa, na presença de todo o seu poder de processamento, apenas com um ecrã menor. Por outro lado, o processo de conexão e desconexão da televisão é imediato, automático e completo. Passar de um jogo na televisão da sala para o sofá do escritório, demora apenas o tempo de levantar de um sofá e sentar no outro. Isto não é impressionante, isto muda tudo.


Podemos dizer que a Nintendo Switch superou todas as previsões sobre o futuro das consolas porque pegou nelas e simplesmente revolucionou o conceito de consola de sala. Percebe-se também a partir do design da Switch o porquê da Nintendo ter começado a investir em jogos móveis para telemóveis e tábletes. Porque a essência do design da Switch diz-nos que as consolas como caixas grandes, fixas e inamovíveis no centro da sala terminaram mesmo. Afinal os futurólogos acertaram em parte nas suas previsões. A evolução tecnológica permitiu miniaturizar de tal modo as capacidades de processamento, que tudo aquilo que precisamos para jogar os nossos videojogos pode estar contido num simples táblete, e em breve num simples telemóvel. Mas! Se assim é, porque é que ainda precisamos de uma consola, porque precisamos de uma Switch quando temos tantos modelos de tábletes?


A Nintendo podia ter lançado apenas um táblete, mas isso nunca seria uma consola. Uma consola é um sistema de jogo dedicado. Pode até fazer tudo o que faz um táblete, mas tem de oferecer mais, e a Switch oferece. Da portabilidade entre televisão e táblete, à essência do ato de jogar que assenta numa dupla de comandos como interface entre o mundo digital e o mundo físico. Tudo isto pode tornar-se rapidamente num standard copiado por várias empresas para uso com diferentes sistemas móveis. E mesmo o leque de jogos pode rapidamente ser ultrapassado pelos milhares de criadores independentes que desenvolvem para Android ou iOS. Mas no final do dia, o que conta é quem chegou primeiro, ou melhor, quem teve a visão, quem deu liberdade à criatividade e arriscou, e isso é aquilo que a Nintendo ainda nunca parou de fazer, por isso se mantém no mercado, e enquanto assim for continuaremos a ter sempre consolas.


Declaração de interesses: A consola e os videojogos aqui discutidos foram adquiridos pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com as marcas envolvidas.

fevereiro 25, 2017

Dúvida ou Negação

Choque. É o que sentimos quando pela primeira vez nos vemos confrontados com negacionistas. Porque se passámos toda uma vida a acreditar em algo, não é fácil convencermo-nos que esse algo poderá ter sempre sido uma falácia. Kahneman fala de viés cognitivo, algo que nos faz tender para acreditar naquilo em que sempre acreditámos, mas fala também de um problema de autoridade. Se todas as autoridades dizem algo da mesma forma, como é que podemos acreditar em algo distinto? E então como devemos proceder? Juntar-nos à turba e manter a ideia que todos defendem, ou fazer o quê? O filme “Denial” (2016) mostra um possível caminho.



O negacionismo do Holocausto tem algumas décadas começou por volta dos anos 1970 e foi-se afirmando com o tempo, e nomeadamente com o esquecimento. Em 1985, Claude Lanzmann estreou um dos filmes mais relevantes da história do cinema, “Shoah” com um objetivo único, responder aos negacionistas. Não deixou pedra sobre pedra, ouviu todas as vozes, em todos lados, e respondeu cabalmente (ao longo de mais de 9 horas de filme) a quem quer que pretendesse continuar a negar. Contudo, como fica também demonstrado no final de “Denial”, um negacionista nunca se verga, uma rápida pesquisa no Google retorna vários textos de análise de "Shoah" denegando as suas demonstrações.

Em 1994 um desses negacionistas do Holocausto, o inglês David Irving, resolveu processar a professora americana de História, Deborah Lipstadt, pelo que tinha dito no seu livro, "Denying the Holocaust" (1993), a propósito das suas negações. A Penguin e a autora, não aceitaram retirar as declarações do livro, e foram para tribunal defender o livro. Para o efeito, foram confrontados com a obrigatoriedade de demonstrar que os trabalhos de negação do holocausto apresentados por Irving mais não eram que mentiras.

Precisamos de treinar a sociedade para questionar a informação que lhe chega, venha por que fonte venha. Precisamos de educar as crianças para questionarem as imagens que lhes entram em casa pela televisão ou internet. Uma sociedade que questiona é uma sociedade mais preparada para o desconhecido, é uma sociedade mais consciente. Do nosso lado, enquanto investigadores, somos treinados para questionar até às últimas consequências; para desde o início assumir que a verdade simplesmente não existe; que tudo o que hoje parece ser, amanhã pode já não o ser. Mas, quando em nada se acredita, como é que construímos a realidade que nos rodeia?

É preciso estabelecer diferenças, duvidar não é o mesmo que negar. Duvidar é o que todos devemos fazer, cientistas, crianças ou simples cidadãos. Duvidar é manter a mente aberta para a possibilidade de rebate daquilo que nos foi apresentado, mas implica aceitar enquanto não existir prova em contrário. Negar é distinto, porque não aceita a dúvida, defende a certeza. Por isso a negação vai contra si própria, já que ao apresentar-se sob a capa de dúvida da verdade da maioria, afirmando-se como alternativa factual, exige a crença.

Os cientistas têm sido atacados por defenderem esta postura de questionamento inequívoco. Porque ao fazê-lo instigam a sociedade a duvidar de tudo, principalmente dos especialistas, da imprensa e da ciência. Mas adotar uma posição de questionamento não pode de forma alguma ser comparado a uma postura de negação. O que falta é literacia. É verdade que não ajuda termos académicos nas televisões a quebrar estas linhas, como ainda recentemente pudemos ver na televisão portuguesa, uma académica nacional arrogar-se, a partir do preceito de dúvida, na negação das alterações climáticas em curso. Menos ajuda ainda quando no momento atual, temos um dos países mais influentes na cultura ocidental, a ser governado por pessoas que defendem a existência de “factos alternativos” e vivem num mundo de negação de tudo o que não lhes interessa.

fevereiro 19, 2017

Memorizar requer esforço e não é intuitivo

"Make it Stick" (2014) é um livro de divulgação científica que procura dar a corpo a um conjunto de teorias desenvolvidas por dois professores de psicologia (Henry L. Roediger e Mark A McDaniel) que ao longo de várias décadas estudaram o modo como criamos memórias. O terceiro autor (Peter C. Brown) é especialista em storytelling, e contribuiu aqui especificamente para o desenho da apresentação dos resultados desse estudo. A ideia central de toda a teorização que percorre todo o discurso apresentado no livro é o da Recuperação de Memórias (“Memory Retrieval”), de que já aqui tinha falado a propósito da leitura dos Cânones. Uma técnica suportada por dezenas de estudos empíricos que demonstram a sua relevância e pervasividade no largo espectro da aprendizagem. O conceito assenta na lógica biológica que regula a construção de memórias a nível neuronal.


Assim, precisamos de primeiro compreender que as memórias que possuímos são conjuntos de associações de nós neuronais, de ligações entre neurónios. Quando experienciamos algo — ao vivo, lendo, vendo, ouvindo — o nosso cérebro produz novas ligações entre neurónios que dão conta de imagens mentais que nós chamamos quando queremos recordar alguma coisa. Ou seja, quando jogamos xadrez e pegamos no cavalo, o nosso cérebro recupera a ideia de que este apenas se pode movimentar em L, e deste modo ajuda-nos a realizar a ação de movimentação da peça no tabuleiro. Nós podemos recordar a imagem mental do movimento em L, porque anteriormente a isso nos foi ensinado — explicado em palavras, ou visto em ação. A questão que se coloca, é, como é que nos lembramos que o cavalo se deve mover em L? E é a esta questão que o livro responde.


Não basta alguém explicar-nos em palavras ou atos, como se move o cavalo em L. Para que no fim-de-semana seguinte a ter aprendido a jogar, eu possa saber, ou seja aceder à memória do movimento do cavalo de xadrez, eu preciso de “exercitar” essa mesma memória, preciso de a recuperar várias vezes durante a semana. É importante que dentro da minha cabeça eu continue a “chamar” a memória, para manter vivas as relações de nós neuronais que edificam a imagem mental do movimento do cavalo. Se ao longo da semana não o fizer, as ligações neuronais criadas aquando da explicação de como se joga acabam por se desfazer, ou seja, acabarei por simplesmente esquecer.

Se o chamar da memória é importante, existe algo ainda mais importante, o modo como é chamada, ou dito de forma mais literal, recuperada. “Make It Stick” dedica-se fundamentalmente a explicar esse processo de recuperação, explicando os modos como podemos tornar as memórias mais fortes e sustentáveis no tempo. E esses modos, os melhores, não são aquilo que muitos de nós esperávamos, não são aquilo que nos ensinaram durante décadas de escola, não são nem atrativos nem intuitivos. O melhor resumo surge na explicação de uma professora, quase no final do livro:
"Eu não consigo dizer-lhe quantas vezes os alunos vêm ter comigo, e me mostram os seus livros com sublinhados e destacados em quatro cores diferentes. Então eu digo-lhes: "eu posso dizer que vocês têm trabalhado imenso e que realmente querem ser bem sucedidos nesta cadeira porque vocês tem azul e amarelo e laranja e verde marcados nos vossos livros”. Mas é também quando tenho de lhes dizer: “que todo o tempo gasto com o livro depois da primeira leitura foi um desperdício.” E eles dizem: "Como é isso possível?" Ao que respondo: "O que vocês tem que fazer é: vocês leem um pouco, e depois têm que se testar a vós mesmos”, mas eles não sabem como fazer isso.
Então eu modelo as aulas para que possam fazer isso mesmo. A cada cinco minutos, ou assim, eu jogo uma pergunta sobre o material que acabámos de falar, e eu posso vê-los a começar a olhar para as suas notas. Mas eu digo: "Parem. Não olhem para as vossas anotações. Basta um minuto para pensarem sobre isso vocês mesmos.” Eu digo-lhes que os nossos cérebros são como uma floresta, e que a memória está lá nalgum lugar. Vocês estão aqui, e a memória está ali. Quanto mais vezes vocês fizerem o caminho até essa memória, mais evidenciado ficará esse caminho, de modo que na próxima vez que vocês precisarem dessa memória, vai ser muito mais fácil encontrá-lo. Mas, assim que vocês olharem para as vossas notas, vocês vão curto-circuitar esse caminho. Vocês deixam de explorar o caminho, porque esse já vos foi dito. "
Mary Pat Wenderoth, Professora de Biologia, Universidade de Washington
Criar memórias é criar caminhos e exige esforço, repetição e dedicação. Ler um livro, ver um filme, assistir a uma aula são apenas pontas de icebergues, existe toda uma quantidade de trabalho de construção da memória que cada um precisa de fazer, que mais ninguém pode fazer por nós. E o que estes estudos nos vêm dizer é ainda mais dramático, já que não basta deixarmo-nos expor repetidamente à informação. Ou seja, reler e reler um texto, ou rever e rever um filme, ou assistir a todas as aulas. Se não existir um trabalho de chamar a memória que ilumine o “caminho” até ela, o simples facto da informação nos ser apresentada não ajuda a solidificar a memória em si, ainda que contribua para durar até ao dia seguinte, podendo contribuir para a falsa ideia de que já memorizámos.

Deste modo o que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel nos dizem é que as as práticas denominadas de “marranço” que continuam a ser professadas desde sempre e até aos nossos dias, não funcionam. Os vários estudos realizados demonstram que os alunos que realizaram pequenos testes várias vezes depois de uma leitura única, face aos que releram várias vezes o mesmo material, são imensamente mais efetivos a recordar a informação.

Esta abordagem vem assim uma vez mais apoiar as práticas sustentadas em técnicas interativas, ou de jogos, de entre os mais famosos, os conhecidos Quizzes, mas quase todos os outros modelos. Aliás, é exatamente este o modelo proposto pela Escola Virtual em Portugal, que pega nas matérias escolares, e cria cenários hipotéticos que questionam os alunos sobre as matérias. Não querendo fazer aqui defesa promocional da plataforma, tenho de dizer que é excelente, porque um dos maiores problemas que um aluno enfrenta no seu estudo é a falta de uma base de perguntas sobre a matéria. Podendo ter uma plataforma na qual essas perguntas estão disponíveis e com claro feedback, algo essencial a uma efetiva aprendizagem, fica apenas a faltar o investimento do esforço do aluno.

Mas não queria quedar-me pelos testes e quizzes, mais ainda tendo sido eu desde há muitos anos um acérrimo crítico de exames e testes escritos. Aceito que eles servem a comparação, nacional e internacional, necessárias, mas não gosto particularmente do método de avaliar alguém por perguntas escritas, prefiro claramente abordagens projetuais, ou reflexivas e elaborativas como a escrita de ensaios. As razões porque não gosto começam desde logo pela pressão exercida, já que o teste só pode acontecer num momento concreto, e é de possibilidade única, ora o ser humano aprende essencialmente por imitação e tentativa e erro, que são formas de aprender no tempo, iterativas e interativas. Por outro lado, os testes condicionam a aprendizagem para a matéria em modo afunilado. Ou seja, aquilo que os alunos fazem enquanto estudam, releiam ou façam quizzes, é memorizar factos para poder debitar, quando aquilo que nós queremos é que a pessoa memorize esses factos para os articular com outros, para que construa e não apenas recite. Não é por acaso que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel começam por enfatizar fortemente os testes, e os elevam a ferramenta de eleição para o estudo e aperfeiçoamento do ato de memorização, mas quando mais na parte final do livro começam a tentar aplicar este modelo à educação, acabam por citar a Taxonomia de Bloom (ver imagem).

Taxonomia de Bloom, revisão de 2001

Contudo, não podemos deixar de reconhecer que o objetivo deste livro, ao contrário do trabalho de Bloom, não são as práticas educativas mas o dar a conhecer de ferramentas e processo que nos permitem memorizar. O que na verdade, e olhando à pirâmide de Bloom, temos de aceitar como vital para tudo o resto. Não é possível criar sem deter conhecimento sobre o que se pretende criar. Assim como todas as restantes categorias que delineiam a nossa inteligência, todas precisam da base, da presença de memórias de factos, que possam ser recordadas no momento certo para agir.


Assim tenho de dizer que o livro vai mais longe do que a simples defesa do quizzing. Os autores apresentam múltiplas técnicas no livro, que se podem encontrar resumidas no último capítulo. Dessas, as três primeiras dirigem-se claramente ao quizzing, mas são passíveis de ser adaptadas a qualquer outro modelo, sendo que são as mais efetivas no processo de memorização: Recuperação, Espaçamento e Intercalação.

1. Recuperação 
Práticas de recuperação de informação por meio de testes de perguntas (quizzing). Em vez de reler a informação, ler uma vez, e depois realizar testes sucessivos sobre a matéria. Em vários estudos realizados, os grupos que relerem esqueceram 50% do que aprenderam, enquanto que os que realizaram apenas uma leitura, seguida de testes, investindo o mesmo tempo, esqueceram apenas 13%.

2. Espaçamento 
Espaçar as sessões de recuperação, deixando espaço entre estas para esquecer. Os autores não referem, mas isto está baseado nas questões cognitivas da Atenção. O facto de espaçarmos a aprendizagem permite que o foco da atenção sobre a informação se exerça mais vezes, uma vez que o foco da atenção não se sustenta muito tempo sobre o mesmo tipo de estímulos.

3. Intercalação
Alternar os temas em que se está a trabalhar. Contra-intuitivo, porque torna a aprendizagem mais difícil, mas é exatamente por a tornar mais difícil que se torna mais eficaz em termos de memorização. Os autores apresentam vários estudos que demonstram claramente a eficácia da intercalação, que se pode fazer entre disciplinas, ou entre matérias de uma mesma disciplina.


Indo para além dos testes de perguntas, a dupla de psicólogos segue Bloom e apresenta práticas muito menos coladas à voragem métrica dos testes, mais adaptadas aos domínios que falava acima de projeto e ensaio, para o que propõem então outras três técnicas: Elaboração, Geração e Reflexão

4. Elaboração
Tentar encontrar níveis adicionais de significado no material novo. No fundo, estamos a construir novas memórias com base em antigas, o que faz com que os caminhos das antigas ganhem novas ramificações, e se fortaleçam.

5. Geração
Tentar responder a questões ou resolver problemas antes de olhar para as respostas. Aqui fala-se de aprendizagem experimental, em que seguimos o processo de tentativa e erro, procurando o modo correto de ação a partir das memórias detidas.

6. Reflexão
Uma combinação das práticas de recuperação e de elaboração que adicionem camadas ao material de aprendizagem. Tentar questionar-nos a nós mesmos.

São apresentadas mais duas técnicas, a sétima denominada de "calibração" dos viés cognitivios, mas que talvez os autores devessem ter chamado de simples Feedback. Não é possível construir aprendizagem sem feedback, sem o efetivo retorno tanto aos quizzes, como a um projeto ou ensaio, o aluno não consegue crescer. Já a última técnica, diz respeito às abordagens mais esotéricas das "mnemónicas", muito interessantes, mas claramente menos relevante, por conduzirem o foco demasiado para a memória como mero fim, em vez de meio para aprendizagem.

Para fechar, aquilo que o livro tem a oferecer pode ser lido num artigo de dez páginas. Aliás, tudo está resumido no último capítulo, ou quase aqui no meu texto. Apesar disso, o livro não é grande e lê-se bem, está bem escrito e permite criar um enquadramento muito interessante para a aprendizagem dos conceitos, sem se tornar fastidioso.


Textos potencialmente relacionados:
O Código do Talento, 2014
Cognição e biologia na base do sucesso, 2013
Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais, 2016

fevereiro 18, 2017

O filme perdido de Godard

"Une femme coquette" (1955), de Jean Luc Godard, representa a primeira criação ficcional do autor. Foi filmada em Genebra, quando tinha 24 anos, com uma câmara 16mm emprestada, sem equipa além de si próprio, e uns dinheiros conseguidos com a venda da sua primeira obra, o documentário "Opération Béton" (1955) sobre a construção da barragem Grande Dixence Dam, Suiça. Julgado  perdido, chegou esta semana ao Youtube.



"Une femme coquette" é baseada no conto "Le Signe" (1886) de Guy de Maupassant, e apresenta como premissa, uma mulher que decide seguir e imitar os gestos de flirting e sedução de uma prostituta, acabando por seduzir um homem que depois a persegue. Sendo simples, não deixa de se tornar hilário, ainda que graças à misoginia de Maupassant, o que talvez explique a razão do filme ter estado tanto tempo inacessível.

É um claro primeiro experimento narrativo, com Godard a servir-se da narração em off para dar conta do que tem para dizer. Temos um conjunto de sequências unidas por uma música clássica que atravessa os 9 minutos, sem diálogo nem qualquer outro efeito sonoro. É um filme de muito baixo orçamento, e essencialmente um filme de aprendizagem. Não podemos dizer que seja a primeira obra de um génio, porque na verdade tais obras não existem, nem no cinema, nem em qualquer outra arte. Ninguém nasce artista, menos ainda génio. Aliás, sobre isto mesmo falava Andrew Saladino no video-ensaio "There Are No Film Prodigies" (2017).

É uma primeira obra que acaba funcionando bem, ainda que por graça narrativa de Maupassant, pelo trabalho psicológico em redor do hesitar pulsante da personagem principal, que aqui fica a cargo de Maria Lysandre. Como curiosidade final, Godard realiza um cameo, já na posse da sua imagem de marca, os óculos escuros.

"Une Femme Coquette" (1955) de Jean-Luc Godard, 
completo, com legendas em inglês

fevereiro 04, 2017

Filosofia do Design de Miyamoto

A revista Vox entrevistou Shigeru Miyamoto e questionou-o sobre os fundamentos do design que estão na base dos seus maiores sucessos na indústria de videojogos. A entrevista é curta e a interpretação do que Miyamoto diz é muito fraca, razão pelo qual não sigo os conceitos como explanados pelo vídeo, mas antes como os interpreto das palavras de Miyamoto. Não sendo uma entrevista de grande aprofundamento, os três componentes apresentados conseguem ser relevantes para quem se quiser focar sobre a essência do design de videojogos.




1 - Realização (accomplishment)
Apesar da Vox definir este primeiro componente como história, não sigo, porque não é isso que Miyamoto diz, e nem sequer faz sentido aplicado aos jogos em questão — Donkey Kong e Mario. Nas suas palavras a realização corresponde a: “You have to have a sense that you have done something, so that you get that sense of satisfaction of completing something.”

2 - Visualização (Show, Don’t Tell)
O segundo componente é mais uma vez erradamente interpretado pelos senhores da revista, que traduzem o que Miyamoto quer dizer por simplicidade. Apesar de o poder ser, em essência Miyamoto está a falar do conhecido processo de criação —  show, don’t tell. Nas suas palavras, a preocupação centra-se sobre: “How I’m showing a situation to a player, conveying to them what they’re supposed to do.” A discussão em redor do nível de tutorial é ótima, porque é o ponto em que a visualização do que se deve fazer é maximizada.

3 - Imersão (Immersiveness)
Por fim, a imersão, aqui seguindo Miyamoto, embora acabando por na explicação por misturar o conceito com o de feedback. Para Miyamoto a imersão corresponde simplesmente a: "Being able to feel like it’s a world you’re immersed in, that you’ve become a hero.” Ou seja, criar uma situação que garanta a participação do jogador ao ponto deste esquecer o seu mundo, e sentir-se imerso.

Shigeru Miyamoto's design philosophy (2017)

janeiro 21, 2017

"Pre-Suasion: A Revolutionary Way to Influence and Persuade" (2016)

Nos anos 1980, Cialdini, um académico das áreas da Psicologia e do Marketing, lançou um dos livros mais relevantes sobre persuasão — "Influence" (1984). Nesse, apontava seis grandes princípios determinantes da persuasão — 1. Reciprocidade, 2. Prova Social, 3. Cometimento e Consistência, 4. Simpatia, 5. Autoridade e 6. Escassez. Foram entretanto precisos mais de 30 anos para Cialdini se dispôr a escrever um novo livro, porque segundo ele, não tinha encontrado nada de novo para dizer para além do que já tinha dito. O novo livro, "Pre-Suasion", apresenta-se como um pequeno trocadilho da palavra persuasão, e define em si mesmo o novo conceito que tem para nos apresentar.


Na realidade, o novo conceito que Cialdini nos traz neste livro tem pouco de revolucionário, já que se baseia em dois grandes princípios do Viés Cognitivo, apresentados por Kahneman no seu opus “Pensar, Depressa e Devagar” (2011): “ancoragem” e “priming”. A ancoragem dá conta do viés que possuímos e que tende a conduzir as nossas decisões em função da informação que nos é oferecida (ex. após pensar em números grandes cria-se uma tendência para aceitar valores maiores para produtos). Por sua vez o priming consiste num processo de associação de distintas memórias que partilham semelhanças (ex. pensar em pessoas idosas pode conduzir as pessoas a reduzir a velocidade; pensar em atletas que se esforçam muito pode conduzir à criação de maior a resiliência).

O que Cialdini faz então é potenciar estes vieses na comunicação, apresentando neste novo livro uma nova abordagem comunicativa baseada na manipulação do tempo imediatamente anterior à comunicação da mensagem. Nesse tempo, defende então a introdução de variáveis de ancoragem ou priming, que conduzam à criação de uma predisposição na audiência para aceitarem o que se vai dizer a seguir. Trata-se assim de uma preparação, ou modelação, para a mensagem. Podemos pensar em algo parecido como os genéricos cinematográficos, em que se modela o estado emocional dos espectadores para o filme que se vai seguir.
“If you want people to buy a box of expensive chocolates, first arrange for them to write down a number that’s much larger than the price of the chocolates.
If you want people to choose a bottle of French wine, first expose them to French background music before they decide.
If you want people to agree to try an untested product, first inquire whether they consider themselves adventurous.
If you want to convince people to select a highly popular item, we can begin by showing them a scary movie.
If you want people to choose a more expensive but more comfy option, first show them fluffy clouds
If you want people to feel warmly toward you, hand them a hot drink.
If you want people to be more helpful to you, first have them look at photos of individuals standing close together.
If you want people to be more achievement oriented, first provide them with an image of a runner winning a race.
If you want people to make careful assessments, first show them a picture of Auguste Rodin’s The Thinker.”
 in "Pre-suasion" (2016:Loc. 2338)

O desafio desta abordagem 
A pre-suasão de Cialdini assenta na arte de capturar e conduzir a atenção dos recetores, mas para que funcione é necessário conseguir atingir a atenção dos recetores. Ou seja, se aquilo que definirmos como estímulos de ancoragem e priming não falar aos recetores, o efeito será nulo. Por isso conhecer este processo, em si, pode ser interessante, mas nas mãos de alguém que não trabalhe devidamente a mensagem e o público, de muito pouco valerá. Para ajudar no trilhar do caminho, Cialdini propõe um conjunto de estratégias baseadas em conceitos, de teor mais universal, que podem contribuir para o desenhar de estratégias de pre-suasão.

6 Comandos de Atenção
* O Sexual *
Um dos elementos mais relevantes de toda a sociedade no que toca à captação de atenção, já que está subjacente a toda a origem das artes de persuasão, sendo utilizado por todos aqueles que produzem arte, entretenimento ou marketing. Contudo o sexo não funciona de forma igual para tudo. Se assim fosse não teríamos apenas 8% dos produtos a recorrerem ao mesmo, como nos diz Cialdini. A título de exemplo o apelo sexual funciona muito bem com a moda ou os perfumes, mas funciona mal com refrigerantes ou detergentes. Ou seja, “In any situation, people are dramatically more likely to pay attention to and be influenced by stimuli that fit the goal they have for that situation.” (Loc. 1141)

* A Ameaça *
Nada funciona melhor quando se quer fazer alguém pensar como nós do que definir uma ameaça à forma de pensar dessa outra pessoa. A necessidade de segurança é essencial ao ser humano. Basta ver a transformação da sociedade, tudo o que passou a aceitar em face da ameaça terrorista pós 11 Setembro. A título de exemplo, a maior parte das campanhas sociais trabalham sob este prisma, desde as campanhas anti-tabaco, com as fotografias devastadoras nos maços de tabaco, aos anúncios publicitários que mostram a violência doméstica, de guerra, ou outras. A ameaça tem ainda a capacidade de unir os seres humanos, de os levar a sentir necessidade de se aproximar do seu grupo, o problema é que isso também produz o efeito de rejeição do outro.

* A Diferença *
Talvez o maior marcador de atenção que possamos desenvolver, não é por acaso que a palavra de ordem é o Novo, e que a nossa sociedade se dirigiu na última década desenfreadamente para o mundo da Inovação e da Criatividade. A diferença marca o interesse de todos nós. A base desta relevância está no facto de que a ausência de diferença conduz à estagnação e redução de velocidade de processamento, logo redução da atenção. Evolucionariamente estamos treinados para ignorar o normal, relaxar, até que algo diferente surja, e isso nos volte a por em modo ativo. Contudo, é também obviamente um dos comandos mais difíceis de trabalhar.

* A Auto-Relevância *
Mais um marcador poderoso. O ser humano é por razões de sobrevivência auto-centrado — “primeiro Eu, depois Eu, e depois talvez o Outro”. Daí o surgimento nas últimas décadas dos discursos sobre as preferências pessoais, do “você merece mais”. Contudo, tal como o comando anterior, é difícil de construir, muito baseado nas particularidades de cada indivíduo.

* O Não-acabado *
Um princípio roubado à Gestalt, que esta começou por apresentar no domínio visual, pelo facto de necessitarmos de completar tudo o que se encontra incompleto. Este princípio levaria à criação de um outro que ficou conhecido como Efeito de Zeigarnik, e que defende que as pessoas têm tendência a recordar melhor aquilo que se queda incompleto. Cialdini fala neste ponto de uma técnica do processo de escrita muito interessante, e que consiste em parar a escrita a meio de uma ideia, em vez de a completar e fechar. Deste modo, ficamos a pensar na ideia e acabamos por ter um estímulo adicional para voltar ao processo de escrita.

* O Misterioso *
Este princípio não se diferencia propriamente do anterior, já que não é mais do que a particularização narrativa do anterior. Ou seja, Cialdini fala da criação de mistério em redor de um assunto para manter uma audiência (ex. alunos numa aula) ao longo de toda a duração do discurso. Ora, este género de contar histórias, mistério e thriller, define-se por um truque simples que assenta na criação de uma necessidade de conhecer uma resposta, algo que funciona como cenoura para a audiência. Mas esta resposta não é mais do que a chave que fecha uma ideia não-acabada apresentada no início de um livro, filme ou da tal aula.


No final do livro Cialdini apresenta uma espécie de defesa de um potencial novo princípio de Influência, a juntar aos 6 definidos no seu anterior livro, que seria o de “Unidade”. Apesar de considerar interessante, julgo que o princípio não acrescenta muito ao princípio de “Simpatia”. Ou seja, Cialdini defende que a “Unidade” providenciada pelo sangue, família, região, ou qualquer tipo de relação que una os indivíduos conduz as pessoas a favorecer essas mesmas pessoas. Ora isto é exatamente o mesmo que acontece no princípio de Simpatia (“likeness”), que nos diz que tendemos a favorecer mais aqueles de quem mais gostamos. Embora possamos aqui falar, por exemplo, do ato de defender pessoas da nossa família — irmãos, filhos, pais — mesmo que não gostemos assim tanto deles. Contudo esta definição de não gostar, e do sangue se sobrepôr à amizade, não pode ser vista de modo simplista, o gostar ou não gostar não se define como mero preto e branco.

Para fechar, é um livro interessante, mas que para ser totalmente compreendido, e poder assacar o todo do que ele entrega, exige o conhecimento do livro anterior. Os princípios de pre-suasão não devem, não apenas por questões éticas, ser utilizados de modo indiscriminado, sem um conhecimento mais aprofundado da comunicação persuasiva e dos viés cognitivos que nos definem enquanto seres humanos.