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julho 21, 2018

Primeiro Eça, depois os Maias

Vejo tanta discussão em redor da importância de "Os Maias" na escola portuguesa porque o Ministério decidiu terminar a sua obrigatoriedade, presenteando os docentes com a missão de serem eles agora a selecionar a obra de Eça de Queiroz que se estuda em cada ano, mas muita desta discussão vem bastante enviesada. Não vejo uma real preocupação com o que está em questão na leitura desta obra, mas mais uma discussão sob os velhos rótulos de alta e baixa cultura. Temos o típico coro de críticas de ataque ao que se muda, como se a mudança fosse sempre para pior. Mas temos também justificações para a mudança baseadas em preceitos de modernidade que não têm qualquer sustentação. Quando é, ou deveria ser, simples aquilo que motiva a escolha de obras de leitura geral e obrigatória nas escolas: a criação de um cânone que una todos os cidadãos num discurso comum, que não pode ser dissociado da idade dos alunos, e do seu desenvolvimento cognitivo.

Eça de Queiroz

Quero deixar algumas linhas sobre assunto, não apenas baseadas em leituras científicas, mas também na minha experiência pessoal de leitura, já que li "Os Maias" quando andava no liceu, com 16 anos, e voltei a lê-lo recentemente, com 42 anos (notas desta última leitura). Posso dizer desde já que foram experiências completamente diferentes, ao ponto de não conseguir ligar qualquer memória afetiva da primeira leitura com a mais recente. Pergunto-me porquê, e a razão não é muito difícil de descortinar, não terá havido ligação afetiva na primeira leitura. A leitura por obrigatoriedade tem destes problemas. Não acontece só com os livros, acontece com tudo, com o cinema, com os jogos, com a maioria dos prazeres da nossa vida. Não é por acaso que passámos os últimos 44 anos a prezar a Liberdade, porque a liberdade é a base da criação da experiência humana individual. Se, experienciamos porque alguém nos obriga a tal, a emoção troca de lugar com a razão, e a experiência que nos deveria tocar o coração passa a tocar a racionalização. Queremos compreender porque somos obrigados a experienciar, e no meio disso perdemos a oportunidade de chegar a sentir.

É claro que este discurso nos coloca face a um dilema insustentável. Se a escola deve ter como missão, além da promoção do conhecimento, a criação de sociedade, para o que dota os indivíduos de conhecimento comum que permite a emergência da comunidade, como é que tal pode acontecer se aquilo que se estuda é feito por obrigação, perdendo-se a fruição. Na verdade, isto não deve ser dilema porque quando estudamos Biologia ou Matemática, também não o fazemos para fruir, fazem-lo por necessidade de elevar o conhecimento dessa sociedade, para sermos capazes de operar a outros níveis de abstração da realidade. Então porque não pensar a literatura da mesma forma? E se em vez de obrigar à leitura de obras completas, livros com mais de meio milhar de páginas, a literatura não é apenas feita de romances, e não existe autor que não tenha escrito contos, porque não optar por trabalhar com contos?

Se pensarmos em concreto no que estamos a exigir cognitivamente a um miúdo de 16 anos para que leia "Os Maias", perceberemos o quão desprovido de senso é. E não estou a falar de sociedade digital, de internet ou videojogos e o famigerado discurso do défice de atenção das novas gerações. Podemos pensar em 1980, com um canal de televisão único, televisão a preto e branco, sem consolas, nem telemóveis. Estamos a falar de entreter a mente ao longo de centenas e centenas de páginas com uma escrita elaborada e detalhada, altamente estilizada com base em técnicas descritivas herdadas ainda do romantismo. Eça foi o nosso primeiro grande realista, mas foi-o mais no conteúdo do que na forma. Ler Eça não é propriamente simples, não porque use palavras caras, mas porque usa toda uma lógica descritiva da realidade que se enreda. O discurso está longe do modo direto que o realismo desenvolveu nos anos que sucederam a Eça, temos um discurso que se cobre de insinuações sobre aquilo que quer dizer, em vez de simplesmente o dizer. Nada disto é problemático quando estamos preparados para tal, quando já lemos muitas outras obras e aceitamos o contrato daquele tipo de escrita porque desejamos entrar na obra. Quando somos obrigados a ler e temos de realizar um esforço enorme para compreender o que estamos a ler, e na nossa frente esperam-nos ainda 800 páginas, é fácil entrar em desespero, chamar raios e coriscos à escola, aos professores, e desistir.

Mas o problema não é só estético. O problema agrava-se quando começamos a desconstruir o que Eça nos quer dizer com a sua obra. Temos de pensar que somos um leitor com 16 anos, que no século XIX poderíamos ser já um adulto casado com filhos, mas hoje somos quase uma criança ainda. Este leitor não compreende o que significa lidar com filhos, menos ainda adultos, perdê-los, seja por que motivo for. Está longe de compreender as nuances das relações adultas. Podemos até dizer, 'mas é bom que sejam confrontados com tal', sim, talvez se fosse apenas este o problema, mas como vimos assim não é, e adensa-se. A realidade de Eça é de um Portugal do século XIX, o que acaba distanciando ainda mais todos os problemas que aqueles personagens sofrem. Se os miúdos não têm muito contexto sobre as mensagens subtis entre adultos, menos ainda têm sobre o contexto político desse tempo. Não podemos esquecer que Eça escreve para os seus pares, do alto de uma vida carregada de experiência diplomática, o livro está pejado de detalhes que nos adoçam a leitura mas é preciso contexto para chegar a eles. E não se iludam, muito desse contexto não se dá nas aulas, constrói-se ao longo da vida, com experiências, com o cruzamento de leituras com experiências reais, que nos permitem ir criando associações de ideias a experiências, e fazer de nós pessoas mais adultas e sensíveis.

E continua, porque a componente mais intrincada de romance, de desenvolvimento e progressão de ação só surge na terceira parte do livro. Durante mais de metade do livro, somos arrastados por entre contextualizações e descrições, ou seja, muita exposição e pouco drama, o que vem complicar a manutenção do interesse dos leitores menos preparados para a leitura. Ser exposto a algo pode ser interessante, mas é um processo por natureza desprovido de emoção, e por isso dificilmente sustenta o interesse se o leitor não conseguir ligar essa exposição a contexto próprio, edificando-o com as suas próprias emoções. Mas o drama não é só emoção, é acima de tudo transformação. Daí que a progressão seja o maior garante de interesse dos leitores, porque estes focam-se no que muda, querendo saber porque muda e como muda. Os leitores menos preparados conseguem facilmente ler Dan Brown ou J.K. Rowling exatamente por causa disto, porque a mudança desperta a curiosidade para saber o que vai acontecer a seguir, fazendo com que a atenção se mantenha alerta e o interesse estável. "Os Maias" são uma grande obra, elogiada pela crítica internacional, exatamente por não se deixar levar por esse facilitador narrativo, por delinear uma estilística própria que obriga o leitor a trabalhar para mais tarde ser recompensado. Mas um aluno de 16 anos não é um crítico literário.

Podemos simplesmente obrigar, assim como obrigamos a decorar os rios de Portugal ou a tabela periódica, ou podemos pensar de forma diferente. Podemos pensar que aquilo que queremos criar é o conhecimento comum sobre Eça de Queiroz, prolongar o seu legado, criar um esteiro em que a sua obra sirva o cânone de que devemos, enquanto país, partir. (Aproveito para questionar aqui a nossa sociedade, se é verdadeiramente isto que queremos, porque não está Eça no nosso Panteão?). E para isso podemos usar obras mais curtas, contos, que darão muito mais espaço ao professor para nas aulas falar do autor, do tempo em que viveu, do país que conheceu e da sua relação com o país de hoje. A partir desses contos pode-se aprender sobre o estilo e estética de Eça, pode-se iniciar o conhecimento, e aos poucos aprender a amar Eça, a amar a língua portuguesa, e pode ser que no verão seguinte o aluno, por sua própria iniciativa, passe as férias junto de "Os Maias".

julho 16, 2018

A diferença, sempre a diferença

Foi há mais de uma semana que terminei esta primeira obra de Morrison — “The Bluest Eye” (1970)— mas ainda não tinha encontrado o mote para escrever sobre a mesma. Hoje, ao reler algumas passagens, confrontei-as com o espetáculo “Nanette” (2018) de Hannah Gadsby, sobre o que aqui tinha ontem dado conta, e senti um arrepio. O livro é de 1970, mas está tudo ali, não que não hajam obras anteriores, mas com esta força literária, capaz de colocar o dedo na ferida da discriminação, não existem muitas. As razões não são apontadas por Morrison, mas por Gadsby, porque quanto mais vamos interiorizando e compreendendo a sociedade que criámos, mais nos vamos dando conta dos papéis dominantes do homem, do hetero, e do branco. As maiorias dotadas de força, física ou política, nunca se coibiram de a usar, e esse é o mal que nos assola, o da incapacidade empática.


O cerne da história de Morrison assenta numa menina negra, de um bairro americano pobre, que tinha um desejo: ter olhos azuis. Morrison diz-nos no prefácio que este desejo lhe foi relatado por uma amiga de infância, e que foi algo que a perseguiu durante anos. Assim aquilo que é colocado a jogo não é mais do que a vergonha do ser. A vergonha da cor dos olhos, da cor da pele, de Pecola que se junta à vergonha da homossexualidade de Hannah Gadsby. Porque quando crianças, cresceram ambas envolvidas num ambiente de ódio e raiva contra aquilo que eram, e como diz Gadsby isso deixa marcas, podemos reconstruir-nos mas não podemos apagar-nos. Como é possível tanta violência, nem falando de adultos, contra crianças, apenas porque são diferentes?

De Morrison conhecia “Beloved” (1987) que entrou diretamente para as minhas melhores dez leituras de sempre. Não posso dizer que “The Bluest Eye” vá para além, é uma primeira obra e o tema repete-se, a pobreza e a sexualidade das mulheres negras, mas e porque haveria de mudar? Quantos escritores temos a falar da realidade destas mulheres negras? Para não falar da realidade das mulheres. O tempo vai passando, fala-se muito, surgem movimentos feministas, mas continuamos a viver num mundo completamente feito de produção cultural masculina, branca e hetero. Precisamos de muitas mais Morrison e mais Gadsby, porque precisamos de compreender que o mundo não é feito de uma massa única, somos todos tão diferentes sendo tão iguais. De que adianta proclamar o humanismo se ele parece condicionado à partida por um modelo único de humano?

Sobre a escrita de Morrison, tenho pena de não vos poder oferecer uma análise mais sentida. Li “Beloved” em português e aí pude experienciar a beleza da sua poética, dos seus ritmos e fluxos sintáticos que envolvem o significado daquilo que se vai dizendo. “The Bluest Eye”, incompreensivelmente não está traduzido para português, como não estão outras obras desta autora, que ganhou um Nobel em 1993. E eu questiono-me, como é possível que uma autora ganhadora de um Nobel não tenha toda a sua obra, ou pelo menos as suas grandes obras traduzidas para português? Só isto devia ser suficiente para acender os nossos alertas para tudo o que disse nos parágrafos anteriores.

No entanto, como diz Gadsby, também não quero terminar numa nota negativa, nem fazer de tudo no mundo uma inevitabilidade da nossa irracionalidade. Não creio em mandamentos que nos vendem alguns arautos de que tudo é mesmo assim, pegando por exemplo em Jordan Peterson que para nos convencer do status quo usa a armadilha da vida como um caminho de sofrimento, tão cara às religiões seculares. Prefiro evocar Fred Rogers, e o seu discurso em defesa do seu programa educativo na televisão pública americana, em que disse:
"Isto é o que eu faço. Eu ofereço uma expressão de atenção todos os dias a cada criança, para a ajudar a perceber que ela é única. Eu termino o programa dizendo: 'Tu fizeste deste dia um dia especial, apenas por seres quem és. Não há ninguém em todo o mundo como tu e eu gosto de ti tal como és.' E eu sinto que se nós, na televisão pública, pudermos deixar claro que os sentimentos são mencionáveis e geríveis, que teremos contribuído para uma melhor saúde mental.” Testemunho de Fred Rogers perante o Senado dos EUA, 1 de maio 1969 [vídeo].

maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.

fevereiro 24, 2018

Sobre o ensino da Arte

Elkins, muito provavelmente, sofria do chamado "síndrome do impostor" quando escreveu o livro "Why Art Cannot Be Taught" (2001), diagnóstico meu. Ou seja, sentia-se incapaz de interiorizar os seus feitos enquanto professor, incapaz de dar conta dos resultados do seu trabalho com os seus alunos, daí que a frustração tenha resultado neste livro. E digo isto no passado, porque passando pelo seu site, percebemos que, em parte, mudou depois de opinião. Talvez o facto de o livro não ter sido muito bem recebido na altura, por exemplo a sua própria Universidade (a School of the Art Institute of Chicago) recusou-se a publicar o manuscrito, o tenha levado a refletir sobre o que queria realmente dizer quando o escreveu, já que o livro espremido, não diz nada.


Não posso dizer que o livro não vale sequer o seu custo, vale, os dois primeiros capítulos em que Elkins discorre sobre a história das escolas de artes ao longo dos últimos séculos, e discute as questões em redor dos currículos nucleares, são muito interessantes, ocupando quase toda a primeira metade do livro. O problema surge, na segunda parte, quando Elkins olha para o presente daquilo em que se tornou a escola superior de artes, tecendo considerações sobre a sua atual inconsequência, manifestando-se totalmente incapaz de propor qualquer alteração. Estando tudo mal, segundo Elkins, não há nada que possamos fazer, resta-nos continuar a fazer de conta que estamos a ensinar!
“The idea of teaching art is irreparably irrational. We do not teach because we do not know when or how we teach.” (p.189)
Ora existem aqui vários problemas de base: a confusão, propositada ou não, entre processos técnicos e criatividade; a ausência de conhecimento sobre os processos cognitivos; e a ausência de conhecimento sobre os processos sociais criativos.

O primeiro ponto é talvez o mais relevante já que está na base desde logo do próprio título. Se olharmos a arte do ponto de vista do resultado, enquanto produtora de artefactos expressivos e originais, então claramente não é possível ensinar arte a ninguém, desde logo porque estes resultados, enquanto tais, não dependem apenas dos criadores, mas também da interpretação dos recetores dos mesmos. Por exemplo, o mercado da arte que todos conhecemos, e que vende obras por valores incalculáveis não se regula pela avaliação dos objetos em si, mas antes pela avaliação de um conjunto de críticos/colecionadores que atribuem valor ou não a uma obra. Quando muito, poderíamos ensinar os artistas a comunicar ideias de modo a garantir o interesse desses colecionadores, seguindo as mesmas lógicas que utilizamos no ensino da criação de entretenimento ou de publicidade. Mas se queremos ensiná-los a ser diferentes, a quebrar convenções, a subverter o status quo, aí entramos num território bastante mais complexo, para o qual podemos, de modo metafórico, abrir janelas, mas não podemos apresentar o caminho, já que ele é individual e construído no tempo conjuntamente com a sociedade.

Mas o ensino de arte não tem de ser isto, apesar de ter sido neste sentido que convergiu ao longo do último século, nomeadamente depois da revolução modernista, como fica evidenciado na apresentação das várias escolas de ensino de artes. Compreendendo quem ainda defende esta visão da, e consequente ensino da arte, tenho dúvidas em aceitá-la, exatamente por aquilo que fica demonstrado neste livro de Elkins, já que conduz o ensino a um beco sem saída, como ilustra Clowes abaixo:

"If you must go to art school" (1991), in Eightball 7, de Daniel Clowe. (Elkins, 2001:87)

Neste sentido, a criação artística é um processo, como qualquer outro processo aplicado, que carece de conhecimento especializado, e é esse conhecimento, as técnicas, que o ensino pode ensinar. Com isto não se defende aqui um ensino profissionalizante a um nível superior, mas defende-se que apenas com muito conhecimento e domínio técnico se pode chegar à superação e consequente subversão. Como diz Saramago:
“A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe-lhe ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer. (…) Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escrita será clara. (…) A escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.” 
José Saramago (2003)
As regras são a técnica que se pode ensinar, mas também o ouvir e o pensar, o crescer enquanto indivíduo consciente do mundo que o rodeia. E é no mínimo caricato, para não dizer algo pior, que Elkins tente comparações entre a Arte e a Física, e venha falar de testes que dão conta do que efetivamente o aluno aprendeu, e não olhe para as outras artes mesmo ao lado das Visuais, tais como a Música ou a Dança. Sendo a avaliação nesses ramos tão subjetiva como é em qualquer outra arte, não deixa de conter um enorme espaço para a objetividade, que é assegurada pelo corpo de praticantes da mesma. A distinção entre um performer medíocre e um bom é discernível com critérios objetivos, claro que já não poderemos dizer o mesmo, entre um muito bom e um excelente. Mas aqui eu questiono, e onde no mundo em que vivemos, é que isso é possível de ser distinguido? Mesmo no campo da ciência, quando submeto uma proposta de investigação para financiamento, a avaliação que é realizada sobre a mesma, desde que ela atinja os tais parâmetros mínimos objetivos de qualidade, é profundamente subjectiva.

Mas isto é confundir a realidade com o ensino. A educação não foi inventada para criar seres profissionais, prontos a debitar aquilo que as sociedades necessitam. A educação existe para acelerar o processo de adaptação às realidades, e acima de tudo para garantir as mesmas hipóteses, em termos cognitivos a todos, mas é apenas isso. Depois cabe a cada indivíduo encontrar-se, definir-se, e destacar-se. Por isso não cabe a um curso superior criar um artista, tanto como não cabe criar um médico ou um advogado, que só podem afirmar sê-los, depois de cumprirem uma série de requisitos no mundo real, exterior à rede de segurança proporcionada pela escola.

Daí que afirmar, “It does not make sense to try to understand how art is taught.” (p.190) é não só ridículo, mas acima de tudo uma acomodação àquilo que se tem, mesmo não concordando com o que se tem. Desde logo não podia ser dado exemplo pior a um aluno, de artes ou qualquer outra área, do que dizer-lhe que “não vale a pena”. Por outro lado, é a demonstração de que Elkins nunca parou um minuto para estudar matérias fora do seu próprio domínio. Porque não faltam trabalhos no domínio da Educação, mas mesmo que não quisesse entrar por aí, se tivesse pelo menos tentado compreender os seres-humanos com quem tem de lidar todos os dias, ou seja a psicologia dos seus alunos, teria estudado um pouco sobre ciência cognitiva, procurando perceber de que é feita a motivação humana, assim como as diferenças entre talento, inspiração e trabalho, e teria conseguido ver um mundo completamente diferente. No fundo, em vez de ter passado todo o tempo a questionar a arte pela arte, devia ter parado para ouvir, ler e questionar a realidade que o rodeia.

fevereiro 11, 2018

A cultura de imitação chinesa

É um dos pilares da civilização, base da educação e sobrevivência, o ato de imitar. Começa na figura dos pais, segue para os irmãos e familiares, continua com os amigos, depois colegas de trabalho, e nunca termina. No entanto existe uma distintiva atitude perante este ato, intrinsecamente humano, entre as culturas ocidental e oriental. No ocidente, esquecemos a importância da imitação, aceitamos o remix com dificuldade, já no oriente, a imitação é vista como o objetivo último. Se já não nos surpreende ver todo o tipo de cópias de roupas ou eletrodomésticos de marcas europeias criadas na China, ver cidades ocidentais completamente replicadas do outro lado do planeta ainda nos espanta.

Tianducheng, China

O boom económico, movido por um capitalismo assente numa escala gigantesca, tem permitido à China desenvolver-se nas mais diversas direções, mesmo naquelas em que nenhum ocidental algum dia pensaria. Já sabíamos que existiam cidades fantasma gigantescas por lá, com os números a mostrar que a China se tornou também numa fábrica de cimento, mas ter cidades réplica, como Tianducheng de Paris, ou Suzhou com a sua própria Tower Bridge, ou uma Thames Town é algo que nos provoca e questiona. Os jornais referem-se a este fenómeno, como "falso", "bizarro" ou até mesmo como "roubo".

Tianducheng, China

Tower Bridge, Suzhou, China

No ocidente somos movidos por uma "necessidade" de nos singularizarmos, de nos tornarmos diferentes, não queremos ser bons, queremos ser melhores, a imitação é vista como ato menor e de incapacidade. Já no oriente, base da cultura assente na colaboração em vez da competição, a imitação indica respeito, o conhecimento e aceitação do outro, o "ser igual" é o objetivo, não o "ser melhor". Isto explica muitas das diferenças entre a China e os EUA, nomeadamente das leituras que fazem dos valores do copyright, da inovação, da criatividade e arte, e da vida.

Apenas para nos provocar e desafiar, deixo algumas constatações:
Criámos a ideia de que se não nos destacarmos não sobreviveremos por habitarmos um mundo com excesso de população, no entanto vivemos num continente que nem metade da população da China possui. 
A Europa viveu durante muito tempo entre estes dois pólos, gerindo a relevância entre a competição e a colaboração, no entanto nas últimas duas décadas, em contra-ciclo com os valores de união que conduziram ao alargamento dos países da União Europeia, passou a adotar mais e mais lógicas societais diretamente importadas dos EUA. 
Não existe original porque não existe criação no vazio, a base da criação é a imitação, no entanto desprezamos por completo aquele que imita.

janeiro 29, 2018

Projetual sim, mas não em modo exclusivo

"Lifelong Kindergarten" (2017) é o mais recente livro de Mitchel Resnick, professor do MIT Media Lab e criador do Scratch, sobre o qual devo começar por dizer que não é um livro de ciência, é um livro de divulgação de ciência. Neste sentido, e apesar de ter o selo da MIT Press, vem juntar-se ao livro “Whiplash” (2016) de Joi Ito (diretor do MIT Media Lab), que também se foca mais no dar a conhecer e menos nos fundamentos. Seguem ambos um mesmo padrão: escrita leve, escorreita, sintética, que podemos ler muito rapidamente para conhecer contornos gerais. Contudo, se tive críticas a apontar a Joi Ito, Resnick não passa incólume, não por seguir a mesma abordagem de divulgação, mas antes pela filosofia de base que suporta o que dizem, e que apresentam ambos, como se fossem caminhos únicos, sem alternativa, que todos deveríamos seguir. Também não será aqui, num texto de blog, que poderei desmontar e contra-argumentar, estou a escrever artigos mais longos ligados ao assunto, que mais tarde aqui darei conta, mas para já deixo algumas das linhas gerais suscitadas por esta leitura.


Começando pelo melhor, temos um sumário do trabalho de Resnick, daquilo que veio a dar-nos o Scratch, não apenas a ferramenta, mas a Comunidade Scratch, que é o culminar de um esforço iniciado por Papert há quase 40 anos, que Resnick soube muito bem continuar. Deste modo, talvez o mais importante do livro seja a apresentação e discussão, que perpassa todo o livro, sobre a criação e gestão das Computer Clubhouses, ou seja os clubes em que as crianças aprendem a programar, entre outras atividades ligadas às tecnologias. A filosofia de base é o melhor do livro, professa a visão de Resnick, que não sendo nova, pode e deve servir àqueles que desejem enveredar por este tipo de associações ou grupos de aprendizagem. Tenho sido um seguidor de Papert e Resnick desde sempre, e muito do meu fascínio com o seu trabalho está ligado à filosofia que suporta estas comunidades de crianças e que assenta no brincar, no aprender fazendo, no colaborativo e na partilha.

As "computer clubhouses" de que Resnick fala surgiram com as primeiras comunidades de hackers de informática, mas nunca desapareceram, antes se diversificaram, existindo hoje não apenas os clubes, mas também os eventos de congregação como as Hackathons, Codefests ou Game Jams.

Indo agora ao pior, ou o problema que tanto me incomodou: a monodirecionalidade da abordagem, que acaba parecendo-se mais com uma religião, com as suas crenças de que é possível fazer tudo com o mesmo “martelo”, mesmo quando se reconhece que as crianças são todas diferentes. Resnick reconhece as diferenças entre crianças mas não reconhece a diferença entre métodos de ensino, e isso é um problema grave. Não porque não os conheça, mas simplesmente opta por ignorar os mesmos, e defender o seu modelo como caminho único. O elefante no meio da sala de Resnick, é a defesa intransigente do construcionismo quando sabemos que nem todos os conteúdos são adaptáveis a essa abordagem de ensino. Quando sabemos que a forma e a estrutura é apenas uma parte de um todo, que tem de ter um conteúdo e um significado. Pensar que se pode ensinar tudo por meio de estratégias projetuais é no mínimo ingénuo.

Só que o problema agrava-se, e bastante, quando Resnick chega ao seu 4º e último “P”, o do “Play”. Para suportar a sua preferência pelo conceito de “playfulness” em vez de “play”, Resnick vai suportar-se nas vivências de Anne Frank durante o tempo em que esteve presa. Considero este momento marcante em toda a leitura, porque dá conta do paradoxo apresentado ao longo de todo o livro. Resnick diz-nos que aprendeu mais sobre o conceito de Play a partir da visita que fez à casa de Anne Frank, em Amesterdão, do que a partir da conferência sobre tecnologias de videojogos em que estava a participar nessa cidade. Pode parecer uma banalidade, e até pode parecer suportar a ideia que o autor quer defender, mas contém a essência da limitação da abordagem construcionista.

Ou seja, Resnick não chega à compreensão do conceito abstrato de Play por meio da construção de projetos, mas por meio da leitura que fez do livro de Anne Frank, por meio da exposição aos sentires, preocupações, enfados, e essencialmente pela descrições que ela realiza nesse livro e nos permitem ficar a conhecer a sua personalidade. Mas é ainda mais grave, porque Resnick foge à essência da base educativa fornecida pelos pais de Anne Frank. Resnick foca-se no modo como Anne passava o tempo encetando projetos para entreter o tempo, a sua atitude brincalhona, e em nenhum momento faz referência às centenas de livros que Anne Frank, a irmã e os pais liam. Sim, porque Anne Frank só escreveu o livro que escreveu, porque lia muito, muito mesmo. E se tinha uma imaginação fértil, era porque esta era alimentada com o mundo que lhe entrava pelas janelas dessas páginas. Se Anne Frank tivesse sido educada na base do método aqui apresentado por Resnick, exclusivamente assente na realização de projetos, nunca se teria tornado na escritora que ainda conseguiu ser antes de desaparecer prematuramente.

Eu faço referência a isto porque já tinha acontecido alguns capítulos antes, quando se compara o Scratch com uma caneta que permite expressar ideias (a comparação é boa, o problema é a base). Resnick fala na necessidade de treinar a escrita, de treinar a comunicação, mas nunca refere a necessidade de ler, ler para conhecer factos, conhecer mundo, para poder expressar algo significativo. Porque essa é a essência dos problemas de muito daquilo que se pretende rotular de criativo. Criar não é apenas estrutura, dar forma, “pôr a funcionar” ou “pôr bonito”, criar é dar sentido à realidade. Basta olhar para os primórdios do Cinema e ver os filmes feitos por engenheiros, ou uma boa parte dos jogos digitais ainda hoje criados por equipas constituídas exclusivamente por informáticos, para compreender que não chega ser capaz de fazer, nem fazer bem. Até mesmo na literatura, basta ver o que fazem autores como Pedro Chagas Freitas, que escrevem centenas de livros e ainda dão workshops de escrita criativa. Se não existe conteúdo para colocar dentro, não existe comunicação. Quem não é exposto e confrontado com os sentires do mundo, quem não consome, analisa, discute e critica, não cria verdadeiramente.

Dito tudo isto, deixei o texto parado para refletir sobre o que tinha escrito, o que me obrigou a repensar o que tinha escrito, dado o enquadramento geral da área da Educação. Na realidade, a discussão em redor da aprendizagem é um território terrível no qual as trincheiras estão muito bem definidas, e não existe muito espaço para o meio-termo. Se Resnick discursa desta maneira não é por acaso, ele tem razão na maior parte do que diz, e não diz nada de errado, apenas omite o outro lado. E omite porque nesse outro lado, existe um conjunto de ideólogos prontos a disparar a todo o momento. Em Portugal isto é bem conhecido, apresentam-se como demonizadores daquilo que eles definem como “Eduquês”, o seu maior expoente, Nuno Crato, chegou mesmo a Ministro da Educação, e vimos no que deu. No entanto, depois de quase escorraçado, e ter passado por um pequeno período de silêncio, ainda por estes dias voltou a dar um ar da sua graça, lançando fel no texto: “Eles hoje aprendem de maneira diferente… Ah é?!”.

Para fechar. Sou grande defensor da abordagem projetual, e continuarei a ser, só não quero é que esse caminho seja visto como exclusivo. Esta abordagem para funcionar plenamente, e permitir a criatividade brotar com sentido, precisa de ser suportada por muita exposição e confrontação de ideias. No fundo é aquilo que já hoje usamos nas nossas universidades, que distingue aulas teóricas de teórico-praticas e laboratoriais. O trabalho projetual é essencial para que o aluno cresça, ganhe autonomia, colabore com os pares e desenvolva competências, mas antes disso acontecer tem de ser exposto aos múltiplos conceitos teórico-abstractos do domínio.

janeiro 11, 2018

Cowboys Youtubers

O Nuno Markl já tinha colocado o dedo na ferida, agora foi a vez da Ana Galvão falar do incómodo sentido com os chamados YouTubers. Não todos, não são os que falam de livros, viagens, cinema, moda, maquilhagem, e muito mais, são uma pequena minoria, que não falam de nada, que apenas gritam, disparam asneiras em modo automático, insultando tudo e todos. Mas porquê falar disto quando a rede de internet é um espaço aberto, e vivemos num país que preza a liberdade de expressão? Porque temos um problema.


1 - Existe um excesso de policiamento do politicamente correto em tudo o que é media, cultura e política. Contudo no mundo do YouTube é o vale tudo, verdadeiro “faroeste”, ninguém controla, nem ninguém quer saber. Ou talvez não seja bem assim…

2 - Porque sendo mau, podíamos viver com esses cowboys na rede da Google. O problema só se agrava porque este faroeste não está ali contido, passou para a realidade do nosso quotidiano, desde logo porque existem marcas a patrocinar estes “cowboys”. Ou seja, as marcas consideram aceitável o que eles fazem, e pagam. Marcas de todos os níveis, desde produtos a espaços, como revistas dedicadas, e até “livros”, mas também Comic Cons e Centros Comerciais que promovem todo o tipo de contacto no mundo exterior ao YouTube. São estes que ao oferecer palco mediático lhes limpam a imagem, e os tornam iguais a qualquer outra celebridade.

3 - Agrava-se porque o público dos "cowboys youtubers", está bem definido, e não é um nicho, é a massa de crianças dos 8 aos 13 anos, que mesmo que não tenha conhecimento ao navegar na rede, é levada a conhecer, pelo fator de pressão social a que estão expostos nas nossas escolas. Não podemos esquecer que são um público em idades de formação, logo com um sentido crítico muito residual. Daí que o rótulo de celebridade oferecido pela sociedade só pode levar a que as crianças que seguem estes cowboys percam as balizas do que é e não é aceitável.

3 - Porque, além das marcas, temos os pais que acarinham estes Youtubers, muito provavelmente sem o saberem, porque não se levantam e não reagem, mas pior do que isso, fazem fila com os filhos para ir buscar um autógrafo, porque pelos filhos tudo vale a pena, e um "cowboy" de olhos azuis e ar lavado, bonitinho, não pode ser uma má influência.

4 - E quarto e último, os restantes media. Sendo altamente críticos de todos aqueles que ousam passar a linha noutros meios, têm ignorado totalmente o problema, não se discute, não se fala, faz-se de conta que não existe um elefante enorme na casa dos portugueses. Sim, porque não se pode só esperar que sejam os pais a alertar para o problema, é preciso criar conhecimento e sentimento na comunidade sobre o que se passa ali. Afinal para que servem os Órgãos de Comunicação, são ou não garante da Democracia?


Ou seja, a culpa não é dos Youtubers, é da sociedade que não se levanta para tecer qualquer crítica. Sei bem que muito por receio do novo, do desconhecido, com medo de meter o pé na argola. O próprio Markl quando falou disto pela primeira vez, foi imensamente atacado. Mas a verdade é que os nossos filhos estão muitas vezes sentados no sofá, ao nosso lado, de fones nos ouvidos, olhos vidrados no pequeno monitor do telemóvel, a ver algo que nunca permitiríamos que vissem no grande ecrã da sala.

Vi entretanto que o Markl escreveu, por estes dias, um novo post de revolta contra estes Youtubers, e acabou com a possibilidade do seu filho continuar a seguir os Youtubers. Se inicialmente tinha lançado o alerta, agora fechou de vez a porta. Parece ser um primeiro passo para uma mudança da perceção na sociedade.

dezembro 29, 2017

It's Complicated (2014)

O livro de Danah Boyd, "It's Complicated: The Social Lives of Networked Teens", teve grande impacto quando saiu. Na altura marquei-o para ler, mas fui adiando porque do que fui lendo, dizia pouco que me surpreende-se. Agora que o li, e continuando a dizer que não traz nada novo, se visto como livro de divulgação de ciência, acho que traz algo novo, mas mais importante que isso, algo imensamente relevante para a sociedade geral. O discurso sobre as tecnologias e os adolescentes nos media e numa grande parte da cultura que se vai produzindo está completamente desfasado da realidade. 


Aliás esse desfasamento é tão grande que se alguém parasse para tentar lê-lo com sentido, veria a sua esquizofrenia, já que por um lado diz que os adolescente são muito precoces com as tecnologias, mas por outro lado são muito ingénuos com a sua privacidade e com os perigos que correm. E é exatamente este discurso feito de mitos que Dana Boyd desmonta ao longo de todo o livro. Boyd não é apenas uma professora universitária, fechada na redoma da academia, o facto de trabalhar numa das mais relevantes empresas de tecnologia, a Microsoft, como investigadora social principal, dá-lhe uma experiência ímpar ao juntar os dois lados: a academia e suas metodologias; e a indústria e suas tecnologias. Boyd conhece os adolescentes, porque os estudou de modo metódico ao longo de anos, mas conhece também todas as tecnologias que esses adolescentes usam, por dentro.

A metodologia seguida por Boyd:
“To get at teens’ practices, I crisscrossed the United States from 2005 to 2012, talking with and observing teens from eighteen states and a wide array of socioeconomic and ethnic communities. I spent countless hours observing teens through the traces they left online via social network sites, blogs, and other genres of social media. I hung out with teens in physical spaces like schools, public parks, malls, churches, and fast food restaurants.
To dive deeper into particular issues, I conducted 166 formal, semistructured interviews with teens during the period 2007–2010.2 I interviewed teens in their homes, at school, and in various public settings. In addition, I talked with parents, teachers, librarians, youth ministers, and others who worked directly with youth. I became an expert on youth culture. In addition, my technical background and experience working with and for technology companies building social media tools gave me firsthand knowledge about how social media was designed, implemented, and introduced to the public. ”
O que nos diz Boyd sobre os Nativos Digitais
“As sociologist Eszter Hargittai has quipped, many “teens are more likely to be digital naives than digital natives.” Eszter Hargittai 
“Media narratives often suggest that kids today — those who have grown up with digital technology — are equipped with marvelous new superpowers. Their multitasking skills supposedly astound adults almost as much as their three thousand text messages per month. Meanwhile, the same breathless media reports also warn the public that these kids are vulnerable to unprecedented new dangers: sexual predators, cyberbullying, and myriad forms of intellectual and moral decline, including internet addiction, shrinking attentions spans, decreased literacy, reckless over-sharing, and so on. As with most fears, these anxieties are not without precedent even if they are often overblown and misconstrued. The key to understanding how youth navigate social media is to step away from the headlines—both good and bad—and dive into the more nuanced realities of young people.”
E sobre a Identidade e os “contextos colapsados”
“Mark Zuckerberg, the founder of Facebook, is quoted as having said, “Having two identities for yourself is an example of a lack of integrity.” 
“Even when teens have a coherent sense of what they deem to be appropriate in a particular setting, their friends and peers do not necessarily share their sense of decorum and norms.” 
“What makes this especially tricky for teens is that people who hold power over them often believe that they have the right to look, judge, and share, even when their interpretations may be constructed wholly out of context.” 
“A context collapse occurs when people are forced to grapple simultaneously with otherwise unrelated social contexts that are rooted in different norms and seemingly demand different social responses. For example, some people might find it quite awkward to run into their former high school teacher while drinking with their friends at a bar. These context collapses happen much more frequently in networked publics.”
“In Iowa, I ended up casually chatting with a teen girl who was working through her sexuality. She had found a community of other queer girls in a chatroom, and even though she believed that some of them weren’t who they said they were, she found their anonymous advice to be helpful. They gave her pointers to useful websites about coming out, offered stories from their own experiences, and gave her the number of an LGBT-oriented hotline if she ran into any difficulty coming out to her conservative parents. Although she relished the support and validation these strangers gave her, she wasn’t ready to come out yet, and she was petrified that her parents might come across her online chats. She was also concerned that some of her friends from school might find out and tell her parents. She had learned that her computer recorded her browser history in middle school when her parents had used her digital traces to punish her for visiting inappropriate sites. Thus, she carefully erased her history after each visit to the chatroom. She didn’t understand how Facebook seemed to follow her around the web, but she was afraid that somehow the company would find out and post the sites she visited to her Facebook page. In an attempt to deal with this, she used Internet Explorer to visit the chatroom or anything that was LGBT-related while turning to the Chrome browser for maintaining her straight, school-friendly persona. But still, she was afraid that she’d mess up and collapse her different social contexts, accidentally coming out before she was ready. She wanted to maintain discrete contexts but found it extraordinarily difficult to do so. This tension comes up over and over again, particularly with youth who are struggling to make sense of who they are and how they fit into the broader world.” 
E ainda sobre privacidade:
“Just because teenagers use internet sites to connect to other people doesn’t mean they don’t care about their privacy. We don’t tell everybody every single thing about our lives.... So to go ahead and say that teenagers don’t like privacy is pretty ignorant and inconsiderate honestly, I believe, on the adults’ part.”
Deixo também algumas conclusões gerais que me parecem sintetizar muito bem todo o espírito do livro:
“It is easy to make technology the target of our hopes and anxieties. Newness makes it the perfect punching bag. But one of the hardest—and yet most important—things we as a society must think about in the face of technological change is what has really changed, and what has not (..) “It is much harder to examine broad systemic changes with a critical lens and to place them in historical context than to focus on what is new and disruptive.” 
“teens are as they have always been, resilient and creative in repurposing technology to fulfill their desires and goals. When they embrace technology, they are imagining new possibilities, asserting control over their lives, and finding ways to be a part of public life. This can be terrifying for those who are intimidated by youth or nervous for them, but it also reveals that, far from being a distraction, social media is providing a vehicle for teens to take ownership over their lives.”

O livro está editado em Portugal pela Relógio d’Agua sob o título “É Complicado. As Vidas Sociais dos Adolescentes em Rede” (2015).

dezembro 23, 2017

Motivação mais relevante que QI

Quem me conhece sabe que defendo o ensino profissional, ou técnico-profissional, ou vocacional, ou como desejarem chamar-lhe, há décadas. Não por razões económicas, não por trazer benefícios ao país, não para nos equiparar ao sistema alemão, mas simplesmente porque que a principal função da Escola é ajudar cada sujeito a encontrar-se. E é sobre isto que o texto da professora Rebecca Haggerty, da Annenberg School for Communication — "Highly motivated kids have a greater advantage in life than kids with a high IQ" — nos fala.


Continuamos a ser iludidos com medições e rankings, adoramos números, aparente garantia de sucesso, por isso desenvolvemos todo o tipo de medidas e quantificadores, sendo o do QI (Quoeficiente de Inteligência) um dos mais louvados pela sociedade contemporânea. Contudo, como vem sendo desmontado nos últimos anos o QI serve de pouco. Primeiro tivemos toda uma enorme discussão à volta do QE (Quoficiente Emocional), que nada resolveu por se querer limitar a fazer o mesmo que o QI, testando e medindo para o sucesso. Só mais recentemente começámos então a falar de Perseverância (ver: Grit & Character), Curiosidade (ver: Curiosity) e Motivação (ver: Drive & Motivation).

Haggerty cita agora o trabalho dos professores Adele e Allen Gottfried que assenta num estudo longitudinal — Fullerton Longitudinal Study — que seguiu 130 bebés ao longo de 4 décadas, recolhendo informação sobre os pais, professores, testes de QI e de motivação, visitas às casas, estudo de ambiente e hábitos, acesso a transcrições de muito daquilo que rodeou as vidas destes sujeitos, tendo recolhido milhares de evidências em redor dos 107 participantes sobreviventes até à data. A principal descoberta não me surpreendeu, vindo totalmente de encontro ao que referencio acima:
"As crianças que obtiveram maior pontuação em medidas de motivação intrínseca académica numa idade jovem - o que significa que eles gostaram de aprender por si próprios - obtiveram melhores resultados na escola, aceitaram cursos mais desafiadores, e obtiveram graus mais avançados do que os seus pares. Foram mais propensos a tornarem-se líderes e tinham mais autoconfiança sobre o trabalho escolar. Os professores viam-nos a aprender mais e a trabalhar mais. Como adultos jovens, continuaram a procurar desafios e oportunidades de liderança ".
Mas estes miúdos que conseguiram o sucesso nas suas vidas não eram os mais dotados intelectualmente. Só raras excepções dos 20% de miúdos do estudo com IQ acima dos 130, conseguiram surgir no grupo dos mais bem sucedidos, apontando a relevância dos factores motivacionais. A grande questão passa então por tentar compreender como podemos ajudar as nossas crianças a tornarem-se pessoas mais motivadas? E não pessoas mais "inteligentes" (redutor e usado aqui apenas no sentido de conseguir ter boas notas nos testes das escolas). Ora o que os estudos destes colegas apontam, também não é nada de novo:
"Em geral, os pais que incentivaram a inquisição, a independência e o esforço, e que valorizaram a aprendizagem por si mesmos, tiveram filhos com níveis mais altos de motivação e realização intrínseca. Além disso, os efeitos dessas práticas prolongaram-se à medida que as crianças cresciam. "Aquilo que vocês fizerem aos nove anos não só terá um impacto imediato, mas também um impacto de acompanhamento ao longo do tempo" disse Adele (..) recompensas externas como dinheiro ou estatuto tendem a diminuir o gozo de uma atividade por parte das pessoas, mesmo que antes gostassem de a fazer. As crianças para terem sucesso precisam de ser intrinsecamente motivadas - isto é, ver o aprender e o assumir de novos desafios como a própria recompensa. "Ensinar o desejo de aprender", escreveu o Gottfrieds em 2008, "pode ser tão importante quanto o ensino de habilidades académicas"."
Daqui pode passar a ideia de que então em vez de treinarmos com matemática ou português devemos treinar para a motivação, mas isso é o erro que tem impedido o sistema de educativo de se transformar, porque não se pode treinar para motivação, pelo menos em grande parte não é possível formatar essa motivação, já que ela está intimamente conectada com o ser individual de cada criança.

Deste modo, o que é preciso, tanto do lado da escola, e acima de tudo dos pais, é garantir as experiências, é abrir o leque de oportunidades, é mostrar o mundo, e dar pequenos empurrões mantendo iluminada a rede de segurança. É oferecer a oportunidade ao ser humano em potência de se encontrar a si mesmo. Sheri Werner, diretora de uma das escolas Charter americanas, diz então:
"'Há muito o medo de que se permitirmos às crianças aprenderem o que desejam aprender, elas não entrarão na faculdade.' Werner viu a ansiedade dos pais crescer ao longo dos anos, à medida que a concorrência foi subindo nas universidades e no mercado de trabalho. Mas ela acredita que as escolas não fazem favor nenhum quando dissuadem as crianças de explorar os assuntos que naturalmente lhes interessam, obrigando-os à força a estudar Cálculo. 'Que mensagem estamos a passar as crianças? Não é preciso sofrer no trabalho para chegar até ao fim-de-semana. É possível desfrutar do que se faz na vida'."
E é por isso que eu acredito tanto nas escolas profissionais/vocacionais, porque são elas as que podem garantir às crianças encontrar algo que as possa conduzir à sua própria realização, que lhes possa garantir retorno efetivo em termos emotivos para garantir a manutenção da motivação intrínseca. Acreditar que se pode motivar uma criança oferencendo-lhe no final pontuações (de 1 a 5, ou 1 a 20), ou a colocação em tabelas de líderes de turma (pautas de notas) ou crachás de líderes destacados de ano (quadros de honra) não passa de um conjunto de tiros no pé, aos quais muitos pais ainda acrescentam oferendas de fim de ano como consolas, viagens ou carros.

A motivação anda de mão dada com a criatividade. Permitir que a segunda se revele é aumentar o poder motivacional intrínseco de cada um. O problema é que nem todos se vão rever no Lego, porque também nem todos se reveem na matemática, assim como também nem todos se reveem na criação de histórias. O primeiro factor para se encontrar surge pelo brincar, e esse precisa de continuar a ser estimulado pela ação criativa individual.

A questão central é que o ser humano precisa de ser movido a partir de dentro, precisa de um centro interior de energia auto-renovável, e esse só se cria por meio da progressão no caminho para a realização pessoal, que não passa pela conquista externa de marcadores, sejam eles cursos superiores, dinheiro ou outra coisa qualquer.


Ler mais:
Porque fazemos o que fazemos?, 2015 no VI
Cognição e biologia na base do sucesso, 2013, no VI
Drive (2010) de Daniel Pink, 2011, no VI
Mais artigos sobre Motivação no VI
Mais artigos sobre Criatividade no VI

outubro 09, 2017

O fim da Escola?

Este fim-de-semana estive num congresso de professores de informática do ensino não-superior, para o qual tinha sido convidado para falar das competências na área da multimédia no final dos 12 anos de estudo. Durante o debate voltou a surgir a velha questão dos MOOC* e do fim das escolas, tudo por divinas ordens da internet, robôs e inteligência artificial. Contra-argumentei, porque quanto mais me envolvo com tecnologia menos acredito em tal, mas não havendo muito tempo, várias coisas ficaram no ar e em dúvida, e é sobre elas que passo a falar.


Eu acredito nos MOOC e Ensino à Distância como ferramentas que oferecem uma enorme mais valia à sociedade, nomeadamente a todos aqueles que têm sede e necessidade de conhecimento, não tendo a ele acesso por razões geográficas ou de gestão de tempo. Acredito que o trabalho que pode e deve desenvolver uma instituição como a Universidade Aberta é fundamental. Acredito que muitos dos cursos que funcionam online a partir dos mais diversos centros de conhecimento — Khan Academy, Coursera, etc. —, são uma enorme valência para toda a sociedade de informação.

Agora isto é distinto de dizer que os sistemas de ensino à distância, ou os MOOC, vão acabar com as Escolas. Antes de explicar porquê, quero deixar claro que aquilo que me move não é a preservação dos empregos dos professores, já que o foco da minha preocupação está no aluno, em especial, na comunidade de alunos. Ou seja, a maioria dos estudos sobre resultados dos MOOC têm identificado como problema central a falta de motivação dos alunos, ou seja resiliência para manter uma aprendizagem autónoma, prosseguindo os cursos até ao final.

Daqui podemos começar desde já a identificar um dos principais entraves à substituição das escolas por sistemas online, a motivação humana. Se fosse o único problema, poderíamos continuar a aprofundar o enorme investimento que os grandes centros de MOOC têm feito em sistemas de gamificação, e aos poucos conseguiríamos sistemas suficientemente afinados para garantir atratividade, o que ainda assim seria distinto de garantir engajamento. A acrescentar a este, temos mais uns quantos problemas no domínio da Comunicação Humana, que não são passíveis de digitalizar ou traduzir para sistemas à distância, sobre o que já falei amplamente aqui antes. Mas os problemas não terminam aqui, e é essa foi a razão porque quis fazer este texto.

A razão principal porque me vou irritando com as conversas sobre o fim da escola, ou das conversas sobre as salas de aulas transformadas em cursos MOOC desenvolvidos a partir das universidades de elite para todo o mundo, etc., é porque demonstram não apenas um total desconhecimento da Experiência Humana, mas porque demonstram um desrespeito completo pela sociedade, nomeadamente pelos nossos filhos. Eu sei que as escolas que temos não são perfeitas, mas acreditar que teríamos uma escola melhor se realizada à distância é ridículo, porque põe em causa todo o fundamento do lugar da escola na sociedade. É verdade que tornaria os orçamentos do Ministério da Educação muito mais leves, assim como daria a ganhar dinheiro a muitos dos lobbies internacionais no domínio das tecnologias educativas. Ou seja, existe muito quem esteja mais interessado no resultado financeiro do que o humano.

Porque a escola não é um lugar onde apenas se exerce a transmissão e receção de informação, se fosse apenas isso, há muito que teríamos desistido desta instituição. A escola é o lugar em que os nosso filhos se confrontam com os seus pares, em que se medem e espelham todos os dias, questionando quem são e porque são. Isto não é um processo realizável à distância, nem em meia-dúzia de sessões, é um processo continuado no tempo, de aprendizagem do Eu e do Outro.  Da construção de estruturas de resposta social que vão garantir mais tarde a inserção desta criança na vida ativa. É claro que o conhecimento que os professores passam são relevantes, mas mais relevante é todo o ecossistema humano ali presente, não apenas porque está presente, mas porque está presente com um motivo, aprender.

Para dar conta do que estou a tentar dizer, introduzo aqui um evento da semana passada, a desistência da Mattel de lançar o seu mais recente "brinquedo", Aristotle, depois de vários anos em desenvolvimento. A Mattel cedeu às várias associações de pais que pediam que o brinquedo não fosse colocado à venda. Aristotle pretendia ser uma espécie de Siri para o quarto das crianças, teria acesso a tudo aquilo que a criança seria, e acompanharia a mesma no tempo, crescendo com ela através de “machine learning”, ajudando a criança. Ora se a privacidade foi a primeira questão para muitos, logo a seguir os pais começaram a sentir que poderiam ser colocados em causa, mas as questões centrais, englobando estas, vão ainda mais fundo e tratam do desenvolvimento da Empatia Humana, como disse Sherry Turkle, entrevistada pelo NYT:
“This is not at all an anti-technology position. This is about a particular kind of technology, one that pretends empathy. We can’t put children in this position of pretend empathy and then expect that children will know what empathy is. Or give them pretend as-if relationships, and then think that we’ll have children who know what relationships are. It really says a lot about how far we have gone down the path of forgetting what those things are.”
O tutor "Aristotle" da Mattel, entretanto cancelado por pressão social e política

Para compreender melhor a questão da empatia, e não querendo entrar em muito detalhe, até porque é um tema que tenho aqui discutido imenso (#empatia) antes prefiro repescar um outro estudo recente a propósito do modo como nós seres humanos funcionamos numa sociedade.
"The more we study engagement, we see time and again that just being next to certain people actually aligns your brain with them," based on their mannerisms, the smell of the room, the noise level, and many other factors, Cerf said. "This means the people you hang out with actually have an impact on your engagement with reality beyond what you can explain. And one of the effects is you become alike." (fonte)
Ou seja, apesar de permitirmos à nossas consciências criar ilusões à volta da nossa individualidade, da nossa unicidade, estar acima de todos os outros, sermos os primeiros e os melhores, a nossa biologia não está muito afim de tal. A nossa biologia puxa-nos para o outro, obriga-nos a viver com o outro, porque sem o outro, não somos nada. Basta compreender que só somos aquilo que os outros refletem de nós, sem a relação com os outros não nos compreendemos a nós mesmos, e não conseguimos estruturar-nos enquanto pessoas.

A falta de estruturas de empatia nas pessoas tem vários resultados, um dos mais conhecidos é a sociopatia, pela incapacidade de atribuir valor moral, ou por exemplo sentir as emoções negativas que fazemos sentir aos outros e assim refreiam a nossa capacidade para lhes fazer mal. Mas podem ser menores que isso, redundar no simples isolamento social, no fechamento sobre si mesmo, fuga do mundo. Este segundo caso é um problema que afecta fortemente o Japão, exatamente por ter um tipo de educação e vivência em sociedade que obriga a regras tão rígidas de relacionamento social, que impossibilitam o normal crescimento empático das pessoas. Se este problema já estava enraizado na cultura japonesa, não fez mais do que agravar-se com a introdução de mais e mais tecnologias sem a devida compensação social, e é por isso que o governo japonês começou recentemente a desenvolver várias políticas para combater o fenómeno.

Assim, pensar que daqui a 10, 20 ou 50 anos não vamos mais ter escolas, que as crianças vão estar em casa ligadas a um computador, ou metidas dentro de uma caixa de realidade virtual, a partir da qual interagirão por meio de canais limitados de comunicação com um suposto professor, ou um qualquer tutor virtual, e amigos que estarão noutras caixas, não é apenas tonto, é preocupante, e profundamente distópico. E é por isso que não podemos simplesmente pensar que isso será normal, que porque a tecnologia precisa de evoluir vale tudo. Não devemos esquecer que a evolução daquilo que nos define depende primeiro de nós, das políticas que viermos a implementar enquanto sociedade, não das tecnologias que vamos inventando.


* MOOC: Massive Open Online Course, trad. Curso Online Aberto e Massivo.

Saber mais:
Comunicação e as falácias da Sociedade de Informação (Copyright, MOOC, Democracia Directa, Open Access, Rankings), in VI, 2013, 
Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento, in VI, 2014, 
O fim da Universidade, ou a simples arrogância tecnológica, in VI, 2012

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017