Começando pelo melhor, temos um sumário do trabalho de Resnick, daquilo que veio a dar-nos o Scratch, não apenas a ferramenta, mas a Comunidade Scratch, que é o culminar de um esforço iniciado por Papert há quase 40 anos, que Resnick soube muito bem continuar. Deste modo, talvez o mais importante do livro seja a apresentação e discussão, que perpassa todo o livro, sobre a criação e gestão das Computer Clubhouses, ou seja os clubes em que as crianças aprendem a programar, entre outras atividades ligadas às tecnologias. A filosofia de base é o melhor do livro, professa a visão de Resnick, que não sendo nova, pode e deve servir àqueles que desejem enveredar por este tipo de associações ou grupos de aprendizagem. Tenho sido um seguidor de Papert e Resnick desde sempre, e muito do meu fascínio com o seu trabalho está ligado à filosofia que suporta estas comunidades de crianças e que assenta no brincar, no aprender fazendo, no colaborativo e na partilha.
As "computer clubhouses" de que Resnick fala surgiram com as primeiras comunidades de hackers de informática, mas nunca desapareceram, antes se diversificaram, existindo hoje não apenas os clubes, mas também os eventos de congregação como as Hackathons, Codefests ou Game Jams.
Indo agora ao pior, ou o problema que tanto me incomodou: a monodirecionalidade da abordagem, que acaba parecendo-se mais com uma religião, com as suas crenças de que é possível fazer tudo com o mesmo “martelo”, mesmo quando se reconhece que as crianças são todas diferentes. Resnick reconhece as diferenças entre crianças mas não reconhece a diferença entre métodos de ensino, e isso é um problema grave. Não porque não os conheça, mas simplesmente opta por ignorar os mesmos, e defender o seu modelo como caminho único. O elefante no meio da sala de Resnick, é a defesa intransigente do construcionismo quando sabemos que nem todos os conteúdos são adaptáveis a essa abordagem de ensino. Quando sabemos que a forma e a estrutura é apenas uma parte de um todo, que tem de ter um conteúdo e um significado. Pensar que se pode ensinar tudo por meio de estratégias projetuais é no mínimo ingénuo.
Só que o problema agrava-se, e bastante, quando Resnick chega ao seu 4º e último “P”, o do “Play”. Para suportar a sua preferência pelo conceito de “playfulness” em vez de “play”, Resnick vai suportar-se nas vivências de Anne Frank durante o tempo em que esteve presa. Considero este momento marcante em toda a leitura, porque dá conta do paradoxo apresentado ao longo de todo o livro. Resnick diz-nos que aprendeu mais sobre o conceito de Play a partir da visita que fez à casa de Anne Frank, em Amesterdão, do que a partir da conferência sobre tecnologias de videojogos em que estava a participar nessa cidade. Pode parecer uma banalidade, e até pode parecer suportar a ideia que o autor quer defender, mas contém a essência da limitação da abordagem construcionista.
Ou seja, Resnick não chega à compreensão do conceito abstrato de Play por meio da construção de projetos, mas por meio da leitura que fez do livro de Anne Frank, por meio da exposição aos sentires, preocupações, enfados, e essencialmente pela descrições que ela realiza nesse livro e nos permitem ficar a conhecer a sua personalidade. Mas é ainda mais grave, porque Resnick foge à essência da base educativa fornecida pelos pais de Anne Frank. Resnick foca-se no modo como Anne passava o tempo encetando projetos para entreter o tempo, a sua atitude brincalhona, e em nenhum momento faz referência às centenas de livros que Anne Frank, a irmã e os pais liam. Sim, porque Anne Frank só escreveu o livro que escreveu, porque lia muito, muito mesmo. E se tinha uma imaginação fértil, era porque esta era alimentada com o mundo que lhe entrava pelas janelas dessas páginas. Se Anne Frank tivesse sido educada na base do método aqui apresentado por Resnick, exclusivamente assente na realização de projetos, nunca se teria tornado na escritora que ainda conseguiu ser antes de desaparecer prematuramente.
Eu faço referência a isto porque já tinha acontecido alguns capítulos antes, quando se compara o Scratch com uma caneta que permite expressar ideias (a comparação é boa, o problema é a base). Resnick fala na necessidade de treinar a escrita, de treinar a comunicação, mas nunca refere a necessidade de ler, ler para conhecer factos, conhecer mundo, para poder expressar algo significativo. Porque essa é a essência dos problemas de muito daquilo que se pretende rotular de criativo. Criar não é apenas estrutura, dar forma, “pôr a funcionar” ou “pôr bonito”, criar é dar sentido à realidade. Basta olhar para os primórdios do Cinema e ver os filmes feitos por engenheiros, ou uma boa parte dos jogos digitais ainda hoje criados por equipas constituídas exclusivamente por informáticos, para compreender que não chega ser capaz de fazer, nem fazer bem. Até mesmo na literatura, basta ver o que fazem autores como Pedro Chagas Freitas, que escrevem centenas de livros e ainda dão workshops de escrita criativa. Se não existe conteúdo para colocar dentro, não existe comunicação. Quem não é exposto e confrontado com os sentires do mundo, quem não consome, analisa, discute e critica, não cria verdadeiramente.
Dito tudo isto, deixei o texto parado para refletir sobre o que tinha escrito, o que me obrigou a repensar o que tinha escrito, dado o enquadramento geral da área da Educação. Na realidade, a discussão em redor da aprendizagem é um território terrível no qual as trincheiras estão muito bem definidas, e não existe muito espaço para o meio-termo. Se Resnick discursa desta maneira não é por acaso, ele tem razão na maior parte do que diz, e não diz nada de errado, apenas omite o outro lado. E omite porque nesse outro lado, existe um conjunto de ideólogos prontos a disparar a todo o momento. Em Portugal isto é bem conhecido, apresentam-se como demonizadores daquilo que eles definem como “Eduquês”, o seu maior expoente, Nuno Crato, chegou mesmo a Ministro da Educação, e vimos no que deu. No entanto, depois de quase escorraçado, e ter passado por um pequeno período de silêncio, ainda por estes dias voltou a dar um ar da sua graça, lançando fel no texto: “Eles hoje aprendem de maneira diferente… Ah é?!”.
Para fechar. Sou grande defensor da abordagem projetual, e continuarei a ser, só não quero é que esse caminho seja visto como exclusivo. Esta abordagem para funcionar plenamente, e permitir a criatividade brotar com sentido, precisa de ser suportada por muita exposição e confrontação de ideias. No fundo é aquilo que já hoje usamos nas nossas universidades, que distingue aulas teóricas de teórico-praticas e laboratoriais. O trabalho projetual é essencial para que o aluno cresça, ganhe autonomia, colabore com os pares e desenvolva competências, mas antes disso acontecer tem de ser exposto aos múltiplos conceitos teórico-abstractos do domínio.
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