fevereiro 10, 2021

Clássicos: O Livro de Jó

“O Livro de Jó” faz parte dos “Livros poéticos e sapienciais” do Antigo Testamento, e terá sido escrito entre o VII e o IV séculos a.C., sendo um dos livros da Bíblia cristã mais amplamente citados dentro e fora do contexto religioso. Santo Agostinho cita-o, Tomás Aquino declara a história verdadeira, Martinho Lutero usa-o para definir a santidade. Na literatura, cita-se como a primeira grande obra existencial servindo depois, ao longo de séculos, a múltiplos autores na evocação do significado do humano — de John Milton (“Paraíso Perdido”) a Carl Jung (“A Resposta a Jó”), passando por Dostoiévski (“Os Irmãos Karamazov”) ou Kafka (“O Processo”) ou mais recentemente Terrence Malick (“A Árvore da Vida”). O núcleo do texto assenta no questionar da justiça ou moral divinas, ou como a teologia prefere definir: “o problema do mal” que se equaciona segundo a questão: “Por que sofrem os justos?"

"Filhos e Filhas de Jó desiludidos por Satanás" (1826) gravura de William Blake 

O livro é curto e começa muito bem. Temos Jó que vive uma boa vida com riqueza, família e respeito, enquanto no céu Deus e o Diabo discutem sobre a sua bondade. O Diabo lança o ardil de convencer Deus a por Jó à prova, para testar o que seria preciso para o conduzir a renegar a Deus. É esta a essência da trama que passa por dois testes, sendo o segundo prolongado e em sofrimento, permitindo a construção de todo um discurso existencial a partir da visão de Jó: 
“Meu corpo está tomado pelos vermes e de crostas de ferida, observo minha pele se rachando e vertendo pus.
Meus dias passam mais depressa que a lançadeira do tecelão, e chegam ao fim do mesmo jeito que começaram: sem esperança.
Lembra-te, ó Deus, de que a minha vida não representa mais que um sopro; meus olhos jamais tornarão a contemplar a felicidade.
Os que agora me observam, nunca mais me verão; depositaste teu olhar sobre a minha pessoa, e já deixei de existir.
Da mesma maneira que a nuvem se esvai e desaparece, aquele que desce ao Sheol, à sepultura, jamais voltará a subir.
Nunca mais retornará à sua casa; a sua antiga habitação não mais tornará a vê-lo.
Por este motivo não calarei a boca e falarei da angústia do meu espírito; eu me queixarei da amargura da minha alma.”
(...)
“Declararei a Deus: Não me condenes assim; revela-me, rogo-te, que acusações tens contra a minha pessoa!
Tens alguma satisfação em oprimir-me; afinal tu mesmo me criaste, como podes rejeitar a obra de tuas mãos, enquanto sorris com aprovação para o plano dos ímpios?
Porventura tens olhos de carne? Enxergas como os mortais?” 
 “Bíblia Sagrada”, versão do Rei James

"Jó e os seus amigos" (1869) de Ilya Repin 


Se a trama e o desenvolvimento são interessantes, o modo como se chega ao clímax e se desfecha é uma deceção digna dos mais atuais escritos que procuram lançar questões e enredos aos quais não conseguem dar respostas. Após todo o questionamento de Jó, Deus surge para terminar as suas provações, mas sem nunca se dirigir a ele, apresenta-se como uma das personagens mais autoritárias e arrogantes de sempre, evidenciando não só a irracionalidade da prova realizada, mas evidenciando que o Rei vai nu. Diz então Deus:
“Então, eis que Deus respondeu a Jó do meio de um tufão e indaga:”
Quem é este que busca turvar os meus desígnios com palavras sem conhecimento?
(...)
Onde estavas tu, quando Eu lançava os alicerces da terra? Conta-me, se é que tens verdadeiro entendimento!
(...)
Quem determinou os limites das dimensões da terra? Talvez tenhas essa resposta!”
(...)
“E tu Jó, já deste ordens à manhã ou determinaste à alvorada o seu lugar,
a fim de que ela apanhasse a terra pelas pontas e sacudisse dela os perversos?”
(...)
“Atenta, pois, para o Behemoth, esse hipopótamo estranho, que Eu criei, da mesma maneira que criei a ti. Ele se alimenta da relva como o boi.”
(...)
"Acreditas que ele fará aliança contigo, de modo que o tomes como teu fiel escravo pelo resto da vida?”
(...)
“Da sua boca saem tochas; saltam dela fagulhas de fogo que estalam.
Do seu nariz sai um vapor como de uma panela a ferver ou dos juncos que ardem em chamas.
Seu sopro acende o carvão, e da sua boca saem chamas.” 
“Bíblia Sagrada”, versão do Rei James

"Jó" (1880) de Léon Bonnat

Aquilo que Deus tem para oferecer a Jó é: a censura por via da diminuição; e a punição por via do medo do desconhecido. Se Jó nada fez, nem nada sabe, como ousa questionar Deus? Mas que se cuide, pois se decidir juntar-se ao Diabo nem imaginar conseguirá o que de muito pior lhe poderá acontecer. 

"Behemoth e Leviatã" (1826) gravura de William Blake 


O "Livro de Jó" faz parte das 100 Obras do Instituto Norueguês do Nobel.

6 comentários:

  1. Bela reflexão. O Livro do Ecclesiastes também proporciona bonitas reflexões :)

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    1. Obrigado Raquel. Tenho andado mais inclinado para ler agora o Genesis para ver se depois consigo entrar o José e os Seus Irmãos do Mann.

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  2. A Bíblia é um livro grandioso. Eu adoro o antigo testamento, e depois há todo o mundo do estudo dos textos judaicos profundamente, da cabala, etc. Essa saga do Mann é espetacular. Não consegui acabar a Montanha Mágica mas adorei José e os Seus Irmãos. Força ;)

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    1. Eu adoro a Montanha, está no topo das minhas leituras, mas a saga do José e seus irmãos ainda tenho de a subir :) Obrigado Raquel.

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  3. Muito obrigado por mais esta magnifica reflexão crítica a um livro riquíssimo! A leitura e estudo da Bíblia é algo de fascinante para mim, foi uma das razões que me levou a tirar uma licencitura em Teologia :)

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    1. Obrigado Fernando. Sem dúvida, é um mundo, e mais importante ainda é o facto de estar subjacente a toda a matriz cultural de que somos feitos. Um abraço.

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