"Raça [os homossexuais] sobre a qual pesa uma maldição e que tem de viver o seu desejo na mentira e no perjúrio, visto que o sabe ser considerado punível e vergonhoso, inconfessável; (...) excluídos até, salvo nos dias de grande infortúnio em que a grande maioria se une em torno da vítima, como os Judeus em torno de Dreyfus, da simpatia - e às vezes do convívio - dos seus semelhantes, aos quais causam repugnância de verem o que são pintado num espelho..."Mas para mim o melhor continua sendo os momentos de introspeção, de análise profunda dos estados internos do narrador, quando se interroga de si para si. Como já tinha dito antes a 'epopeia' de "Em Busca do Tempo Perdido" vai-se alternando entre estes momentos e os diálogos e apontamentos de crítica da alta-sociedade, e é interessante verificar nas várias análises online, como as pessoas se dividem entre os dois registos, existindo os que se apaixonam pelo lado da comicidade e outros, em que me incluo, que seguem Proust mais pelas suas escalpelizações do Eu. Deixo dois dos melhores registos deste livro:
“Mas mal consegui adormecer, naquela hora, mais verídica, em que os meus olhos se fecharam para as coisas do exterior, o mundo do sono (em cujo o limiar a inteligência e a vontade momentaneamente paralisadas já não me podiam disputar à crueldade das minhas impressões verdadeiras), reflectiu, refractou a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada na profundidade orgânica e agora translúcida das vísceras misteriosamente iluminadas. Mundo de sono em que a consciência interna, colocada sob a dependência das perturbações dos nossos órgãos, acelera o ritmo do coração ou da respiração, porque uma mesma dose de pavor, de tristeza, de remorso, actua, com um poder centuplicado se for assim injectada nas nossas veias; mal, para percorrer as artérias da cidade subterrânea, embarcámos nas ondas negras do nosso próprio sangue como um Letes interior de sêxtuplos meandros, logo nos aparecem grandes figuras solenes, que nos abordam e nos abandonam, deixando-nos desfeitos em lágrimas.” p.168
“Mas o que é uma recordação de que não nos lembramos? Ou então vamos mais longe. Não nos lembramos das nossas recordações dos últimos trinta anos; mas estamos mergulhados inteiramente nelas; porquê então ficar pelos trintas anos, porque não prolongar para além do nascimento essa vida anterior? Uma vez que não conheço toda uma parte das recordações que estão atrás de mim, uma vez que elas me são invisíveis, que não tenho a faculdade de as chamar a mim, quem me diz que nessa massa para mim desconhecida não haverá umas que remontem a muito para além da minha vida humana? Se posso ter em mim e em torno de mim tantas recordações de que não me lembro, esse olvido (pelo menos, olvido de facto, visto que não tenho a faculdade de ver o que quer que seja) pode conduzir a uma vida que vivi no corpo de outro homem, e até noutro planeta. Um mesmo olvido apaga tudo (..) O ser que eu serei depois da morte não tem mais razões para se recordar do homem que sou desde que nasci do que este para se recordar do que fui antes de nascer.” p. 388[Marcel Proust, (1922), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume IV -Sodoma e Gomorra”, Relógio D'Água, ISBN 9727087566, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 544]
Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII
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