Não fossem a história e a realização tão boas, diria que o filme é Adèle Exarchopoulos, porque o filme vive totalmente à flor da sua pele, a câmara que a segue por todo o lado, da cama à escola, colada ao seu respirar, ao seu sentir, às suas lágrimas... O filme não é só Adèle, mas ”Blue…” não seria ”Blue…” sem Adèle. Adèle dá-se totalmente à obra, nada mais lhe podia ser aqui pedido, ela encarna o personagem com um brilhantismo raro, seguimos sempre no seu encalce, não conseguimos desligar de si, que transporta todo o sentir, toda a expressividade. Adèle cria uma verdadeira personagem de carne e osso, alguém que poderia ter sido nossa colega de escola, e ao mesmo tempo alguém que tem dúvidas sobre o mundo, sobre a sua existência e essência (Sartre é discutido a meio do filme). Alguém que recria na nossa frente as dúvidas sobre a essência do Amor, sobre a essência do Ser, com quem não conseguimos deixar de empatizar. Adéle é o nosso filme, é absolutamente brilhante.
Claro que para que toda esta transcendência de Adèle pudesse chegar até nós, foi preciso alguém que dirigisse a sua performance e a canalizasse por meio de um enquadramento audiovisual. Esse alguém foi Abdellatif Kechiche reconhecido por trabalhar com um método, pouco ortodoxo para uma arte cara como é o cinema, que assenta numa lógica de improviso, de privilegiar constantemente o momento, buscando captar a autenticidade no seu estado bruto e puro. E é exactamente isso que vemos em toda a obra, Adéle não é apenas Adéle, o que vemos no filme é aquilo que Kechiche capta, preserva e enfatiza. Impressiona como Adéle chora e ruboriza, impressiona como Adéle Exarchopoulos e Léa Seydoux se dão sem reservas à câmara expondo tudo a todo o momento. Se por momentos cheguei a sentir um ultrapassar do risco, em termos de grafismo sexual, não posso deixar de conceder que esses momentos contribuíram para a marca de autenticidade, de emocionalidade captada em estado bruto pela lente de Kechiche.
Por fim, a história sustentada no livro de banda-desenhada homónimo de Julie Maroh é o que abre espaço à discussão do “Ser e o Nada”, alicerçada sobre uma história de amor adolescente homosexual. A mensagem passa com uma força impressionante, dando bem conta de que vivemos no século XXI, e de que a homosexualidade entrou finalmente na paisagem da sociedade europeia. Maroh leva-nos pela mão, fazendo-nos experienciar os sentimentos de Adéle, que são totalmente independentes do género da figura amada, já que o que conta é aquilo que esta sente, e aquilo que sente é simplesmente Amor. “Blue Is the Warmest Colour” é um tratado sobre o Amor, esse sentimento indefinível que faz os seres humanos correrem toda uma vida...
“Blue Is the Warmest Colour” (2010) de Julie Maroh
Para fechar, e voltando ao início deste texto, li o livro de Julie Maroh depois de ver o filme, e apesar de me ter tocado, são experiências completamente diferentes, essencialmente pelo que já disse acima. Enquanto o livro nos transporta através da alma de Maroh, o filme cria um universo mais amplo e rico, nomeadamente porque além de Maroh, temos ainda Adèle Exarchopoulos e Abdellatif Kechiche. A viagem é mais profunda, mais emocionante, gerando uma experiência com um grau de autenticidade quase chocante, muito para além daquilo que o livro nos consegue dar.
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