março 13, 2014

Narrativa e Motivação, "Bioshock Infinite" (Parte II)

Depois de ter analisado o tema e arte de Bioshock Infinite trago agora uma análise sobre o design de jogo e de narrativa. Bioshock Infinite soube trabalhar muito bem a gratificação narrativa com um final de jogo intensamente compensador. A impressão muito positiva criada no final conseguiu optimizar toda a experiência do jogo, isto porque as memórias de uma experiência estão mais ligadas aos momentos intensos e essencialmente ao modo como terminam.



Em termos de história partimos da ideia básica de “salvar a princesa”, mas à medida que avançamos percebemos que a premissa não passou disso mesmo, de um motivador. Bioshock Infinite apresenta uma das narrativas mais elaboradas que podemos encontrar nos videojogos, não sendo fácil de seguir, já que se socorre de uma não-linearidade à lá "Inception" (2010) permitida por uns portais de tempo, as “lágrimas” os "rasgões". Apesar da complexidade, o jogador acaba sendo conduzido pela mão, e apesar de nunca chegar a compreender plenamente tudo, tal como em Inception, aos pouco vai percebendo que foi enganado e instrumentalizado. Toda esta confusão narrativa bem balanceada contribui para que no último quarto do jogo a história atinja um clímax raramente visto em videojogos, permitindo uma total imersão no imaginário narrativo, ganhando-se apenas aí a compreensão do que representou aquela viagem. Se o jogo nos envolveu e conduziu por meio da visceralidade visual, a última hora é inteiramente liderada pela narrativa, que toma o controlo total da acção e gratifica intensamente o jogador por ter persistido e ter levado a aventura até ao final.

Para tudo isto contribui a IA de Bioshock Infinite, nomeadamente de Elizabeth da qual falei aqui antes. Embora tenha a dizer que Elizabeth desenhada quase 10 anos depois de Alyx (Half-Life II , 2004) ou 12 depois de Yorda (Ico, 2001) não conseguiu tocar-me tão profundamente como estas. Sinto Elizabeth demasiado distante, o facto do jogo ser em primeira-pessoa não ajuda, mas por isso mesmo no seu desenho deveriam ter sido incluídos olhares directos para nós, mais incisivos, como acontecem com Alyx. Sem corpo, resta-nos o olhar para criar a sensação de conexão humana, a empatia, algo que não se cria apenas com a forma e o diálogo. Depois julgo que o desenho do seu comportamento, nomeadamente em momentos de luta poderia ter sido desenhado de forma a criar maior proximidade, as ajudas dela são interessantes, mas no final do jogo sente-se a mecânica e perde-se a química. 

E é esta constatação de mecanicismo e repetição que me leva ao cerne deste texto para discutir as questões sobre o design de jogo, as opções sintácticas dos criadores para cruzar a narrativa e jogo. Porque mais uma vez tive de sofrer a angústia de me forçar a terminar o jogo, quando já nada em mim o queria fazer. As intermináveis batalhas, tiros e mais tiros, explosões e destruições a roçar o mecânico, repetitivo, vazio de significado ou propósito. Por isso mais uma vez me questionei sobre a dualidade expressiva dos jogos de Acção e Aventura. Daqui lanço várias questões: 

Porque temos de passar todo o tempo a matar? Porque apenas podemos sorver história quando entramos num momento de pausa? Porque não podemos interagir com a história? O que quer dizer interagir com a história? O que diferencia a interacção com a história da interacção com os tiros, as lutas, as mortes? E os tiros e as lutas não fazem parte da história?

No meu livro sobre Emoções Interactivas (2009), apresento um estudo no qual detectamos que a maioria dos jogos prima por explorar emoções negativas ativas - Raiva, Medo, Tensão, Nojo, Stress. Por outro lado no livro “Contagious” (2013) de Jonah Berger, os seus estudos demonstram que estas mesmas emoções são as mais capazes no que toca a conduzir as pessoas a partilharem mensagens online. Daqui podemos entender que uma parte do problema desta discussão assenta numa questão que já tinha levantado antes a propósito da tristeza nos jogos, e que lida com o Paradoxo da Emoção Interativa (Zagalo, 2009:299). Ou seja, para eu agir sobre o mundo, interagir, preciso de ser estimulado a isso, e o que verificamos é que as emoções negativas ativas são as mais eficazes. Já se estimularmos emoções negativas inactivas - Tristeza, Melancolia, Aborrecimento - as pessoas tenderão a não querer interagir.

Isto explica em certa medida porque os jogos tendem a propor-nos o acto de matar, ou  talvez melhor seja dizer, o acto de “não ser morto”. O que nos leva a querer interagir é a tensão criada pela avalanche de inimigos (obstáculos que temos de transpor) atirados sobre nós com o objectivo de nos eliminar. O que nos motiva é não morrer, não perder, para poder continuar dentro da história. O medo de morrer (ex. Medal of Honor) pode ser ainda explorado e potenciado pela raiva do que nos fizeram antes (ex. Max Payne), ou o nojo (ex. Silent Hill).

No fundo os videojogos usam e abusam de todas as formas capazes de nos colocar sobre o fio da navalha do “Game Over” - inimigos, armas, plataformas, etc - sendo o medo de perder que nos mantém ativos, que nos mantém capazes de continuar a apertar botões, a empurrar sticks e a resolver puzzles. Aliás a motivação para a interacção nos videojogos de acção acaba sendo quase sempre feita com base em situações de morte eminente. Ou seja a situação de perda mais grave, no caso de existência de personagens envolvidos numa história.

Mecanicamente esta forma de desenhar um videojogo de acção difere muito pouco da forma como se desenha um qualquer jogo competitivo - futebol, corrida de carros, luta - porque no fundo falamos de mecânicas que motivam os humanos a agir. Se numa corrida tudo fazemos para manter o carro dentro da pista, é porque queremos ter hipótese de chegar ao final. Em Bioshock Infinite tudo fazemos para nos manter vivos, e assim chegar ao final da história. Se no futebol tudo fazemos para defender e marcar golo, é para não perder o jogo, assim como em Bioshock Infinite tudo fazemos para matar todos, para que não nos matem a nós, e não nos façam perder espaço ou itens já conquistados, para ganharmos e podermos continuar a avançar.

Mas aqui estamos apenas a falar das lutas, das batalhas, dos tiros, matar ou morrer, que acabam configurando um dos “modos de jogo” de um videojogo de acção. Porque quando as lutas acabam, iniciam-se diálogos, encontramos notas de leitura, vídeos explicativos que contam o que aconteceu ali, ou seja entramos no chamado “modo história”. E aí desaparece a guilhotina do game over, desaparecendo assim a tensão, consequentemente fazendo-nos entrar no modo relaxe, no modo passivo. Aliás se reflectirem o que acontece quando entramos nas cutscenes (interactivas ou não), é que relaxamos, são momentos desenhados no jogo exactamente para nos permitir respirar da tensão passada nos confrontos de Jogo.

Mas isto quer dizer que as histórias não podem gerar tensão? A questão que se deve colocar, é se as histórias conseguem gerar suficiente tensão para nos fazer agir fisicamente? Mentalmente sabemos que é suficiente, adoramos cinema e séries, sendo que o género mais popular é o Drama e não a Acção ou Horror. As histórias motivam-nos a agir mentalmente, apenas lançando problemas e questões que procuramos resolver mentalmente. Mas serão então, simples questões, suficientes para nos fazer agir fisicamente?

Talvez. O género específico de Aventura Gráfica viveu disso apenas. Myst (1993) não tinha mortes, nem tiros, não tinha sequer game over! O que nos motivava a agir era o mesmo que nos motiva a agir num livro ou filme, a busca de respostas às interrogações que o jogo nos colocava. Mas sabemos bem como as Aventuras Gráficas são menos dinâmicas que a Acção/Aventura. Mas será que tem de ser mesmo assim? Será que não conseguimos criar condições de perda como os inimigos ou o cair de plataformas, para avançar uma história de forma dinâmica?

Não julgo que nos falte descobrir um graal como continuamos a advogar sobre a relação jogo/história nos videojogos, julgo que o que é necessário são criadores com capacidade de usar as ferramentas à sua disposição para de modo equilibrado obter o melhor dos dois mundos. Conseguir obter a intensidade das emoções activas do jogo, e fundi-las com as emoções inactivas da narrativa. Temos bons exemplos disto mesmo, e sempre que os re-analiso - The Last of Us - verifico que dependem não de inovação técnica ou tecnológica, mas de Equilíbrio e Balanceamento. Apesar de geralmente encontrarmos o desequilíbrio a tender para o jogo, ou seja a competição com luta, tiros e morte, podemos encontrar o desequilíbrio contrário, em jogos como Heavy Rain (2010) ou Beyond Two Souls (2013), a tender para a história em detrimento do jogo.

Ou seja, respondendo às questões que me lancei quando acabei BioShock Infinite, podemos interagir com a história sim, e os tiros e as lutas podem fazer parte dessa história também, isso só requer equilíbrio por parte dos criativos. Essencialmente evitar prolongar áreas artificialmente apenas porque é possível tecnicamente, as áreas devem durar apenas a duração que a narrativa permitir. Se a narrativa não aguenta mais, e precisam de fazer durar mais o jogo, reescrevam a história, as histórias são tão elásticas como os jogos, basta olhar para o que é feito nas séries de televisão. Elas só precisam que lhe seja garantindo o timing, para que o seu significado tenha valor e compense o jogador. De certo modo talvez esteja a colocar o jogo ao serviço da narrativa, mas a narrativa organiza sentidos, compreensão, o jogo está mais focado em estimular a emoção. Não é por acaso que depois da montanha russa de batalhas Ken Levine necessite de quase uma hora de jogo em modo narrativo para dar sentido a tudo o que vimos, e recompensar os jogadores.


Parte 1 da análise a Bioshock Infinite

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