abril 02, 2013

"Shadow of the Colossus", a perfeição do balanceamento de emoções

Tive uma noite inesquecível no Domingo, acabei pela primeira vez Shadow of the Colossus (2005). Tenho o jogo desde que saiu na PS2 em 2006 na Europa, mas nunca tinha chegado ao final. Tinha passado vários colossos na PS2, mas a falta de tempo nessa altura (fecho do doutoramento) não me deixou com cabeça para chegar ao final. Lembro-me bem da premissa, do mundo e dos personagens. Lembrava-me bem daquela entrada majestosa com a amada em braços e do altar. Mas confesso que os colossus não eram nada fáceis, e o facto de serem 16 assustou-me. Ao contrário de Ico (2001) aqui sabíamos exactamente quantos níveis faltavam para o final e isso de certo modo desmotivou-me, cada vez que acabava um, só pensava em todos os que ainda faltavam. Depois várias coisas aconteceram, pouco depois de comprar a PS3 fiquei sem a PS2, a falta de retrocompatibilidade colocou a possibilidade de chegar ao fim de Shadow ainda mais longe. Quando vi que ia sair a versão HD para a PS3 pensei de imediato que tinha de adquirir para poder pôr um ponto final no jogo. Todas as minhas recordações daquele universo eram de excelência, mas confesso que nada me tinha preparado para o que vivi no domingo às três da manhã.


O "meu" jogo continua a ser Ico mas descobri que Shadow of the Colossus está carregado da mesma fantasia, ao ponto de estarmos perante uma prequela. Lembro-de de quando saiu se ter falado vagamente nisso mas é algo que só se percebe claramente quando se chega ao final do jogo. Nesse sentido Ico e Shadow tornaram-se, na minha cabeça, em dois jogos inseparáveis. São gameplays muito distintos, mas o tema, o universo, os personagens e a arte provêm claramente da mesma mente brilhante, do criador Fumito Ueda.

Em Ico temos de encontrar o caminho que nos conduz ao exterior de um gigantesco castelo, temos algumas lutas mas muito poucas, é um jogo orientado aos puzzles espaciais, tem apenas um boss no final de todo o jogo. A emocionalidade é trabalhada na base da relação com Yorda, a companheira. Já em Shadow, Ueda foi à procura de outro tipo de emoções. Lembro-de de ler uma entrevista em que Ueda dizia que o impressionava toda a emoção que os jogadores desenvolviam dentro de si, sempre que chegava o momento de enfrentar um boss, a partir daí decidiu criar um jogo que fosse feito apenas de bosses. Um jogo em que passamos todo o tempo a lutar contra bosses, e a sentir essa mesma emocionalidade. Sabendo disto, sempre preferi Ico, nunca fui jogador de grandes lutas e confesso até que me decepcionou um pouco quando li a entrevista, pois se não gostava muito das emoções fortes dos bosses dos jogos, quando percebi que Shadow ia ser feito só disso, assustei-me. Agora, passados os 16 bosses, terminado o jogo, só posso dizer que Ueda tinha razão, os bosses que ele desenhou são capazes de despoletar autênticas explosões de emoção em nós. O medo de falhar, e ter de voltar a fazer tudo de novo, apodera-se de nós, constrói toda uma tensão que se liberta apenas após o espetar pela última vez da nossa espada nos sinais vitais do monstro. No final de cada luta, dá-se a libertação de toda a tensão acumulada, e uma enorme sensação de alívio apodera-se de nós. Foi para isto que Ueda desenhou os 16 bosses, para transportar o jogador através de uma gigantesca montanha russa de emoções. Gigantescas doses de tensão são contra-balançadas pela tranquilidade e beleza da imensidão do espaço por onde deambulamos no intervalo de cada luta. Em termos de design emocional, é simplesmente perfeito. O balanceamento é completo, e é isso que permite gerar uma experiência emocional como nenhum filme ou livro pode imaginar conseguir.





Não me interessa a discussão sobre os jogos como arte, mas Shadow é muito mais arte do que muito cinema e muita literatura. Passamos 12 horas de volta de um artefacto que constrói uma experiência que ficará marcada nas nossas mentes para sempre. Passado todo o sofrimento da luta contra os 16 gigantes, passadas todas as emoções estéticas sentidas pela magnificência do ambiente, chegamos ao fim e somos compensados com um final grandioso de 20 minutos que nos deixa estarrecidos. Compreendemos que aquele final é não só o que nos fez mover ao longo de todo o jogo, mas sabemos claramente que ver aquelas imagens está apenas ao alcance de quem tiver realizado todo aquele caminho, como nós realizámos. É uma sensação apenas comparável com o terminar de um livro de 500 páginas, quando chegamos ao final sentimos a compensação do investimento e esforço em devorar todas aquelas páginas, atingimos algo que apenas quem dedicar tanto esforço como nós, pode conseguir. O filme qualquer um pode ver, e chegar ao fim, no parque de diversões qualquer um pode pagar e entrar na montanha russa. Mas aqui, aqui não é possível sentar e esperar, ou pagar para ver, aqui é preciso atuar, é preciso uma dose de investimento e esforço pessoal que ninguém pode fazer por nós. Somos postos à prova, passada a prova, atingimos um novo estádio na nossa vida. Existe um antes e um depois de chegar ao final de Shadow of the Colossus.

A narrativa de Shadow funciona de um modo bastante literário, no sentido em que ela acaba por se estender tremendamente, apesar do enredo aparentemente simples. Tal como na literatura, o videojogo investe aqui bastante na descrição dos seus ambientes e dos seus personagens. Shadow demonstra que o videojogo enquanto arte narrativa está entre o cinema e a literatura, porque dá a ver como o cinema faz, mas descreve detalhadamente como só a literatura sabe fazer. Literalmente precisaríamos de 500 páginas para transmitir todo o detalhe sobre o universo e personagens de Shadow. A progressão narrativa é feita através da experiência do espaço, do encontro com cada colosso que vai desenvolvendo em nós um cada vez maior conhecimento sobre aqueles personagens e confiança no modo como lidar com eles. Nós crescemos como jogadores e atores do jogo, embora o nosso personagem, Wander, não evolua exteriormente com cada conflito com os colossos. A única vez que vemos os efeitos da luta sobre o corpo do nosso personagem é após a luta com o último colosso, as roupas rasgadas e o corpo ensanguentado, sentimos o efeito, como que projecta o nosso sofrimento depois de termos derrotado também todos aqueles gigantes. Por outro lado Shadow desenha uma progressão em crescendo do personagem no sua resistência e energia que acontece através da colecta de frutos e lagartos encontrados no espaço ao longo do jogo.

O design de interacção realizado em Shadow é absolutamente impressionante, mesmo para quem joga em 2013. Ao reler agora a crítica da Edge de 2005 fico espantado com a forma como atacam a complexidade do que foi aqui criado, rotulando-o de problema. Aliás a vantagem de ter terminado Shadow apenas em 2013 é que me permite analisar em perspectiva o que foi feito nos últimos anos, e compreender o quão importante é o trabalho de design aqui desenvolvido. Shadow evidenciava já o inicio da irrelevância da tecnologia no design de videojogos. Foi feito para a PS2, mas vai muito além do que foi feito entretanto para a PS3. Pegando em dois dos meus jogos preferidos na PS3, Uncharted 2 (2009) e Journey (2012), posso dizer que Shadow junta esses dois, e vai para além dos mesmos.
"the platforming control scheme that simply isn't always capable of attaching a moving person to a moving monolith; the camera that fails to match up to the prodigious challenge of keeping both wanderer and colossus in sight at the same time" [Edge, 2005]
Estes dois pontos destacados na crítica da Edge, podem até conter alguma razão, mas só o pode afirmar quem não tiver consciência do que está em causa. Falamos aqui de desenhar sequências de interactividade entre dois elementos tridimensionais em movimento, o que é apenas das situações mais complexas que temos de enfrentar em termos de design e programação. Aliás numa entrevista dada depois em 2006, o produtor Kenji Kaido dá detalhes sobre três modelos do design da interactividade entre Wander, os colossos e o cavalo.
  1. "Organic Collision Deformation" - O modo como o jogo detecta que Wander está a tocar no colosso, independentemente do seu tamanho, posição ou movimento. Ou seja, se o personagem está agarrado à perna ele terá de mover-se junto com esta. Se a perna se mover na horizontal, o personagem terá de poder correr sobre esta. 
  2. "Player Dynamics and Reactions" - Este modelo geria o modo como física do personagem deveria reagir sempre que está em movimento em cima do colosso também em movimento.
  3. "Motion blending and Posture control" - Este último tem a ver com o modo como as animações de movimento eram trabalhadas do ponto de vista da sincronia, e acção-reacção, de modo a tornar mais credível, toda a relação entre dois objectos em movimento em simultâneo.
No campo da câmara, já em Ico se tinha percebido que esta equipa não estava disposta a limitar a sua criação ao espaço como cenário, mas queria trabalhá-lo também na forma como era apresentado ao espectador, ou seja definir o ponto de vista. Nesse sentido tanto Ico como Shadow são dos jogos esteticamente mais conseguidos em termos de enquadramento. Claro que desenvolver modelos de controlo da câmara que garantam essa componente estética e ao mesmo tempo garantam sempre um posicionamento correcto face à acção que o jogador tem de executar, é extremamente complexo. Sim, por vezes torna-se complicado gerir a nossa acção, do ponto de vista sugerido pelo jogo, mas as vezes em que tive problemas, foram largamente suplantadas por todos os momentos em que se produziam à minha frente enquadramentos sublimes.

Ou seja, em termos de experienciação estética, Shadow vai muito além de Journey, por várias vezes senti que Journey se limitava a uma pequena porção de tudo aquilo que se me apresentava aqui. Os riachos, as montanhas verdes, as árvores e os esquilos; o sol brilhante e por vezes ofuscante, capaz de queimar pradarias inteiras e de fazer sentir o calor tórrido do deserto; a chuva e as nuvens que pairam sobre nós por entre vales e montanhas que nos atiram para estados melancólicos; Argo o nosso companheiro e as pontes que temos de saltar com ele. Em certa medida Journey quase só tem a componente calma de Shadow, e nesse sentido não pode de forma alguma competir em termos de experiência emocional gerada. Porque para além de toda a fantasia dos universos de ambos os jogos, Shadow apresenta uma componente que o distingue de qualquer jogo que alguém tenha jogado até agora, um fortíssimo contraste de tamanho, entre os colossos e o nosso personagem. Este contraste não é meramente visual, é por si só gerador de enorme ativação emocional no jogador. E a forma como a câmara se vai posicionando insinua mais ainda este contraste, intimidando o jogador. Os colossos são absolutamente titânicos, e isso causa um deslumbramento estético impressionante.

Finalmente a arquitectura. O espaço arquitectónico em Ico já funcionava como personagem, o castelo gigantesco, de espaços infindáveis e fantasiosos, em Shadow reparte-se entre um ambiente aberto que mistura natureza e edifícios antigos que demonstram destruição e abandono. À medida que o jogo vai evoluindo vamos acedendo a áreas em que a arquitectura se vai assemelhando cada vez mais ao castelo de Ico, desde os tijolos ao desenho das áreas, das plataformas, dos acessos, portas e janelas. Houve alguns momentos que pareceu mesmo que tinha voltado ao castelo em que Ico estava preso, e na verdade a resposta a essa semelhança apareceria respondida no final, quando somos levados a compreender que Shadow é afinal uma prequela de Ico.

Claramente que Shadow tem outros atributos importantes, o final é tão poderoso, não apenas porque acabámos de atravessar 16 colossos, mas porque traz para cena, tudo aquilo que vivemos em Ico também. De repente, ao longo de 20 minutos, atravessamos experiências de jogo que estavam marcadas somaticamente em nós há muito tempo, e aqueles trechos cinemáticos funcionam como quem puxa cordelinhos de emoções, que nos agitam por dentro, e nos deixam ali, à mercê dos criadores. Inesquecível.


PS.1: Deixo imagens do storyboard e de algumas mecânicas retiradas do livro Shadow of the Colossus Official Artbook.




PS.2: Uma última nota, Shadow of the Colossus foi um dos poucos jogos a ser utilizado no cinema de forma brilhante como metáfora emocional. Podem ver a minha discussão sobre este assunto na análise ao filme Reign over Me (2007).

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

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