abril 18, 2016

"A Invenção de Hugo Cabret" (2007)

É uma história primorosa capaz de misturar tão bem realidade e ficção como mistura texto e ilustração. Diga-se que o texto não é muito elaborado mas porque é dirigido a crianças, por isso aquilo que mais ressalta em termos estéticos acaba sendo a capacidade de fazer valer os diferentes meios (texto + imagem) para assim contar uma história tão engenhosa como mágica.



O cerne do livro tal como o nome indica parece ser Hugo mas é-o apenas para nos servir de veículo, de acesso empático, a um novo mundo prestes a desvelar-se na nossa frente. O foco verdadeiro é a Arte, no caso concreto a cinematográfica, encarnada na pessoa de Georges Méliès. Assim "A Invenção de Hugo Cabret" funciona mais como uma homenagem ao poder da imaginação e ao uso de um meio para dar forma a essa imaginação, com tudo o que isso envolve e implica na vida de uma pessoa. Não posso dizer muito mais sem estragar o efeito, que é intenso, a que se deve chegar lendo o livro (ou vendo o filme).

Dada a intensidade da história e tema o livro acabou sendo transformado em filme, não como mero exercício de adaptação mas por alguém que ama tanto a arte cinematográfica como o retratado no livro, Martin Scorsese. Daí que o filme não sofra qualquer recuo em intensidade, sendo fiel e emulando muito bem texto e ilustração. O filme vai pouco além do livro, como disse quando vi o filme, mas porque o tema trata a imagem em movimento nada poderia ser mais apropriado para lhe dar expressão que a própria arte cinematográfica.



Podemos dizer que é uma aventura, um sonho de criança, com lugares e portas secretas, com fugas, perdas, tristezas e alegrias, com descobertas, ternura e muito carinho, com mecanismos simples que acabam em explicações complexas capazes de alargar intensamente a visão do mundo que as crianças detêm.

abril 10, 2016

Uma fronteira de desigualdade erguida aos Refugiados

Chocado, é como me sinto depois de ver o documentário animação “Do outro lado da linha” de Lukas Schrank. Descobrir que tal “coisa” existe no nosso planeta em pleno século XXI, criada e mantida por um país pertencente ao G20, que se diz democrata e defensor da liberdade, foi uma lambada. Por outro lado, se isto é possível, imagine-se tudo aquilo que se estará a passar por essa Europa fora na receção aos refugiados sírios, aliás pense-se no recente acordo Europa-Turquia, e pouco se diferenciará do que aqui podemos ver.





As vozes “Do outro lado da linha” vêm da Ilha de Manus, um ponto remoto no Pacífico Sul, para onde a Austrália atira os refugiados que interceta no mar, impedindo-os de chegar ao país. A estes nenhuma alternativa é dada, seja voltar ao seu país de origem, entrar na Austrália, ou mesmo entrar em Papua Nova Guiné. Estão ali, tal como estiveram os judeus em campos europeus, sem propósito, sem esperança, à espera da morte. “Do outro lado da linha” relata a partir do interior do Centro de Detenção Manus Island, em discurso direto pelas vozes de dois homens que aí se encontram detidos.

Mas se me sinto chocado, surpreso, é talvez por pura ingenuidade. Que podemos esperar de governos que produzem massivamente armas para vender a outros países, promovendo assim abertamente as guerras intermináveis? Que devemos esperar de governos que promovem os offshores e países fiscais, nada fazendo ao longo de décadas e décadas de destruição das suas próprias sociedades?

Basta olhar o exemplo de Portugal e ver quem paga IRS por cá, para se poder compreender o mundo em que vivemos. Bernie Sanders dizia numa entrevista recente, “we are all in this together”, mas parece que são muito poucos os que assim pensam. Podemos continuar a assobiar para o lado, dizer que não é fruto do neoliberalismo que é apenas o mundo em que sempre vivemos, mas quando resolvermos acordar talvez seja já demasiado tarde...

"Do Outro Lado da Linha" (2015) de Lukas Schrank

Quanto ao trabalho de Schrank, é absolutamente delicioso, tendo-me feito recordar bastante o não menos brilhante “Waltz with Bashir” (2008) de Ari Folman. O trabalho de mescla entre 2d e 3d contribui para a enfatização dramática do filme, conseguindo dar corpo a dois relatos simples, que se erguem e nos transportam para toda uma outra dimensão. A escolha da animação e tom gráfico, diz-nos Schrank, provém da sua reação ao facto da Austrália ter produzido uma banda desenhada com esta abordagem gráfica e distribuído a mesma no Afeganistão para dissuadir os potenciais requerentes de asilo!

abril 08, 2016

"Anna Karénina" (1877)

Confesso que vinha à procura de mais, nomeadamente porque é um livro que surge no topo de várias listas, e que raramente se encontra ausente de qualquer lista. O livro é bom, é até muito bom, mas depois de ler "Guerra e Paz" pouco daquilo que Tolstói aqui faz nos surpreende. Por outro lado a personagem principal, a sua estrutura em termos de conteúdo, apesar de bastante rica fica atrás de outras personagens do universo da literatura clássica.


Com Anna Karénina (1877) chego ao final da leitura das grandes heroínas clássicas, depois de Elizabeth Bennet (Orgulho e Preconceito, 1813), de Catherine Earnshaw (O Monte dos Vendavais, 1847), de Jane Eyre (Jane Eyre, 1847) e Emma Bovary (Madame Bovary, 1857). Europeias, representando a Rússia, Inglaterra e França, todas do século XIX, todas imensamente relevantes e ao mesmo tempo tão diferentes. Talvez o maior paralelo se possa aqui traçar seja entre Karénina e Bovary, mas de todas continuo a elevar a um patamar completamente distinto Jane Eyre.

Anna Karénina é uma personagem que vamos adorando e odiando ao longo do romance dada a sua organicidade, incerteza, e inconstância, caraterísticas próprias de verdadeiros seres-humanos mas que em termos de histórias e romances acabam contribuindo para alguma desfocagem do nosso processo de empatia. Talvez por isso existam críticos que prefiram como personagem principal da obra, em vez de Anna, Levin, espécie de alter-ego do próprio Tolstói, mas na verdade Anna é o reverso de Levin, e de certo modo passa a ideia de que esta poderá representar o grito interior do próprio Tolstói, nomeadamente em tudo o que tem que ver com todos os seus problemas com o amor e o desejo.

Tolstói acaba por na aproximação ao final evocar a fé como espécie de amor último, mas mais ainda como forma comparativa, para poder dizer da impossibilidade de compreender completamente o que é o amor. Era desnecessário, e não me parece sequer que funcione, mas é a forma de Tolstói trabalhar, sempre à procura de compreender os porquês, sempre questionando para além do questionável, e quando não encontra o que procura prossegue atrás dos comparativos. Levin não precisava de chegar àquele ponto, apesar de o servir bem, e conseguir fechar um livro trágico com uma nota otimista.

O melhor do livro são os interiores psicológicos do grupo central de personagens — Anna, Vronsky, Levin, Kitty, Dolly e Stepan — e as descrições dos seus encontros que Tolstói consegue literalmente "mostrar" através de palavras. Impressiona por vezes seguir no fluxo da descrição, ver e sentir não apenas a cena, o quadro narrativo exposto, mas tudo aquilo que percorre a mente de cada um dos envolvidos, verdadeiros momentos de puro xadrez de emoção humana.

abril 02, 2016

A arte surge da metanálise?

Ao tentar separar Arte do Design (e Entretenimento) dei comigo a encostar a arte aos seus aspectos metanalíticos, ou seja a uma quasi-obrigatoriedade de reflexão sobre si mesma. Continuo a não me sentir completamente satisfeito com essa implicação, mas hoje ao passar os olhos por vários ensaios vídeo do Nerdwriter, parei no ensaio a propósito de "Las Meninas" (1656) de Velázquez, e mais uma vez a questão ressurge.

"Las Meninas" (1656) de Velázquez

Nerdwriter não traz nada de muito novo a análise do quadro, em termos interpretativos, mas ao fazê-lo em vídeo, reconstruindo as histórias das suas implicações, funciona como se estivéssemos no museu a ser assistidos por um crítico de arte na análise da obra, aliás vai mais longe, porque através da excelência do seu trabalhado de diagramação visual do quadro, dá a ver como não seria possível apenas olhando a tela na parede. A sua análise segue assim o sentido de muitas outras que têm definido esta obra de Velasquez como um autêntico tratado de filosofia da pintura, expondo as razões para tal, na sua capacidade metanalítica, de se definir enquanto questiona o real valor e implicação da sua expressão artística (a pintura). Vejam o ensaio para compreender o foco.

Recorte e diagramação de "Las Meninas" por Nerdwriter

Se me questionou este aspecto, houve ainda um outro que me tocou, sobre o qual tenho também refletido, e que tem que ver com a capacidade narrativa da pintura. A narrativa é uma forma de expressão também associada à pintura, tal como a fotografia, desde logo pelo seu posicionamento face à representação. Mas o que me tenho questionado aqui tem mais que ver com o facto de que um quadro dificilmente consegue conter em si todos os aspectos que dão corpo às necessidades de uma narrativa, desde logo porque lhe falta a dimensão temporal. Ora o que vemos neste vídeo, e podemos ver em praticamente todas as obras pictóricas dotadas de composição, é que a narrativa pode surgir do questionamento que o recetor faz sobre a construção da composição. Não existindo dimensão temporal na obra, ela passa a ser encenada pela mente do próprio recetor, que claramente necessita de possuir informação adicional para poder dar corpo aos seus elementos e deles extrair e construir o objeto narrativo final que se forma na sua imaginação.

Duas questões que me lançam na indagação sobre a arte e seus propósitos, sobre as quais deixo aqui apenas alguns traços que surgem de mais um belíssimo trabalho do Nerdwriter, que vivamente recomendo.

"Las Meninas: Is This The Best Painting In History?" (2016) Nerdwriter


abril 01, 2016

IGN: António Lobo Antunes e Jonathan Blow

Esta semana escrevi para o IGN um texto a propósito de design de jogos, discutindo em concreto os seus aspectos criativos, nomeadamente a fronteira entre a arte e o design. Não se trata aqui de discutir pela milionésima vez a afirmação dos videojogos como arte, mas antes tentar compreender a forma artística que envolve o design de jogos, realizando-se para tal uma comparação com aspectos da dança e da música.


Por outro lado, na especificidade e tendo trabalhado o texto a partir do designer Jonathan Blow, realizo uma aproximação dos seus métodos de trabalho aos métodos do escritor António Lobo Antunes.

Para quem quiser ler, fica a ligação para o IGN, "Arte e Design de Jogos".

março 26, 2016

"O leilão do lote 49"

Queria ler Pynchon, mas sabendo da sua tendência pós-moderna para a fragmentação narrativa, resolvi começar por um dos seus livros menos fragmentados e mais curtos. “O leilão do lote 49” tem apenas 136 páginas, e apesar de procurar constantemente furtar-se à linearidade, mantém uma linha coesa de enredo do início ao fim. As distorções narrativas que Pynchon vai imprimindo surgem mais pela via do constante lançamento de novas questões, às quais não vai dando respostas, perdendo-se assim a tão desejada estrutura de causa e efeito que nos apazigua na leitura do romance tradicional.


Pynchon impressiona, apresenta todo um arsenal formal e de ideias que rapidamente tomam conta de nós, arrebatando-nos para o seu universo. A escrita, apesar de prosa e contadora de histórias, é entrosada e elaborada numa forma a que apenas se costuma aceder na poesia. Aliás, as próprias ideias, por serem trabalhadas num constante confronto entre real e ficcional, parecem muitas vezes mais apropriadas ao poema do que à prosa, redigidas como comédia negra parecem estar constantemente no reino do irreal e do fantasioso.

Se admirei todo este labor, puro virtuosismo técnico, de Pynchon, o objeto final deixa-me um pouco indiferente. Não que precise de um sentido para o que se diz ou procura aludir no livro, mas acredito que assim aconteceu pelo tom satírico e, sim, de algum modo inconsequente do texto. Aliás, enquanto lia recordava “Piada Infinita” (DFW) e “Ulisses” (Joyce), ambos trabalhos imensamente fragmentados, ambos também profundamente satíricos, e ambos provocam reações adversas no meu sentir. No caso de “Piada Infinita” consegui ultrapassar essa minha reação instintiva, porque a sátira é profundamente justificada pelo tema nuclear da obra, contudo “Ulisses” foi um dos poucos livros nos últimos anos que não consegui terminar, lá voltarei, só não sei quando.

Logo e acrónimo centrais no enredo do texto, tal como a organização Tristero

Dito isto, gostei de conhecer Pynchon, mas não sei quando aqui voltarei, muito provavelmente apenas depois de ter ultrapassado Ulisses.

Nova série web: "Makers & Gamers"

A Sony lançou mais uma série web, Makers & Gamers, que promete tornar-se um sucesso junto da comunidade de jogadores, mas não só. Esta nova série tem como objetivo promover a aproximação entre criadores e jogadores, e ilustrar as capacidades de comunicação dos videojogos. De um lado podemos ouvir as intenções dos autores, do outro os efeitos e impactos na recepção pelos jogadores, contribuindo deste modo para melhor compreendermos como funciona o medium. O primeiro episódio é dedicado ao videojogo "Journey" (2012).




Não vou falar muito sobre este primeiro episódio uma vez que já deixei aqui as minhas impressões, imensamente positivas quando o jogo saiu, em 2012. Mas não quero deixar de enfatizar o quão relevante este jogo foi para o meio, algo que fica perfeitamente demonstrado neste pequeno filme de dez minutos. A forma como "Journey" consegue estabelecer conexão emocional com o jogador é sublime, demonstrando todo um claro empenho por parte dos criadores para chegar a essa conexão. Enfatizar ainda que se a arte visual muito contribui para tudo isso, é o design de interação social, ou seja o modo como o videojogo promove a jornada com alguém desconhecido, que eleva a experiência para além do comum videojogo. Como Jenova Chen diz aqui, a transformação emocional é algo profundamente social.

Para quem tenha sentido um interesse particular pela história de Sophia e as experiências de jogo com o seu pai entretanto falecido, recomendo vivamente a leitura do texto Preservação de memórias nos videojogos.

"Makers & Gamers: Journey" (2016) de Jesse Moss

março 22, 2016

“Os Irmãos Karamazov”, da dúvida

Não tenho muito para dizer de novo sobre uma das obras mais estudadas de sempre. Talvez não surja tantas vezes no topo de listas de livros como outras emblemáticas — Guerra e Paz, Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido — mas isso não faz com que represente menos, talvez se deva apenas ao facto de ser uma obra mais simbólica e menos realista ou artística, o que acaba também por a tornar mais apetecível em termos de estudos académicos. A escrita, a estrutura e a história são muito boas, mas não são excepcionais, o que aqui é excepcional é o modo como a ideia central é trabalhada, como se construiu todo um enredo, personagens e ambientes, aparentemente iguais a tantas outras obras, para no seu interior se depositar uma questão.


Porque sentimos necessidade de acreditar em Deus e ao mesmo tempo não conseguimos deixar de o refutar?

Os Irmãos Karamazov” apresenta-se como uma história de parricídio, na qual uma pessoa de poucos escrúpulos, ou nenhuns, tem quatro filhos, um de uma primeira mulher, dois de uma segunda mulher, e um terceiro bastardo e não reconhecido, desprezando-os e despojando-os de potenciais heranças, até que um dia um destes quatro acaba por o matar. O miolo da história acaba por se desenrolar em volta dos 4 irmãos, e da tentativa de perceber de entre eles qual terá sido o verdadeiro assassino, sendo nós levados a acreditar que qualquer um deles o pode ter feito, nem que seja apenas no plano moral.

Dmitri, o mais velho, é o mais humano, pleno de defeitos, sem grandes louvores, mas em oposição é alguém pleno de valores, defensor da dignidade e honra até às últimas consequências. Ivan é o racionalista, aquele que tudo questiona, e que garante que na ausência de Deus tudo é permitido. Por sua vez Aliocha é o contrário de Ivan, nada racional mas verdadeiramente crente na espécie humana e em Deus. Por fim Smerdiakov, o filho bastardo, integra elementos de todos os três, é fraco de saúde, muito humilde, mas também muito inteligente e por isso extremamente racional. Como se depreende destas quatro personagens centrais, o cerne da família Karamazov assenta na contradição de espírito, derivando daqui o adjetivo karamazoviano, pelo facto da complexificação que se germina em redor destes já que nada é linear, tudo tem um contrário. Dmitri é um doidivanas, só pensa em mulheres, mas é dono de uma honra férrea. Por outro lado Ivan e Aliocha, os dois irmãos da mesma mãe, são reverso um do outro. Por fim Smerdiakov, o mais complexo de todos, visto como mero servo, mas capaz de perscrutar o interior da alma de todos os seus irmãos, debatendo-se interiormente sobre o que fazer com o conhecimento que deles absorve.

Toda esta descrição acima só é possível graças ao labor psicológico de Dostoiévski que nos consegue levar junto de tais personagens e fazer-nos sentir como eles sentem, ao que se junta todo o labor filosófico para criar as condições para a pergunta central do texto. Mas sobre isso convido quem ainda não leu a parar aqui a leitura, já que irei abrir o jogo para poder debater o que está em questão no cerne da obra.

À superfície “Os Irmãos Karamazov” é aquilo que descrevi acima, embrulhado numa trama de eventos detectivescos carregados de descrições para aguçar o interesse, contudo no levantar do véu e procurando respostas para alguns quadros menos tradicionais vemos que existe algo mais, por debaixo da camada de quotidiano realista Dostoiévski surpreende-nos com o simbolismo da fé. A obra contém assim dois momentos principais, a parábola do Grande Inquisidor a meio do livro, e o julgamento de Dmitri no final, estes dois eventos apesar de totalmente separados, e contendo discursos sem qualquer ligação aparente, fazem parte da mesma discussão, elevando a força simbólica do texto, tornando a obra, como dizia acima, absolutamente brilhante e obrigatória em qualquer cânone.

A parábola do Grande Inquisidor é uma história contada por Ivan, que surge depois deste questionar: se Deus existe, porque permite a existência do mal? Assim Ivan dá conta de uma hipotética conversa ocorrida no século XVI, em Sevilha, entre o Grande Inquisidor e Jesus regressado à terra. Nesta o Inquisidor acusa Jesus de ter falhado ao não aceitar nenhuma das três tentações do Diabo no deserto (transformar pedra em pão; deixar-se cair do templo e ser salvo por Deus; e tornar-se o senhor da Terra) apenas para garantir a liberdade de arbítrio dos seres humanos, já que desta forma teria transformado a liberdade num peso. Ou seja, não é a evidência dos milagres aquilo que todos procuram para aplacar as dúvidas, porque Jesus não acedeu então? Ser livre de acreditar coloca sobre nós o ónus da evidência.

"Auto de Fe" (1683) de Francisco Ricci

Para o Inquisidor esta liberdade acabaria por nos aprisionar em vez de libertar, e é por isso que manda prender Jesus, dizendo-lhe, os humanos já não precisam de ti, a Igreja desenvolveu as ferramentas necessárias para acabar com o sofrimento, com a dúvida, mostrando e ordenando sobre aquilo em que se deve acreditar, não te queremos por cá a questionar novamente tudo.

Além da crítica à igreja, Dostoiévski toca aqui a essência do ser. Uma vez adquirida a capacidade cognitiva de conhecer e interpretar o real, e na completa incapacidade para chegar à resposta ao porquê da existência, sentimo-nos tocar o vazio que na ausência de objeto torna impossível teorizar, racionalizar e no fundo tomar qualquer decisão ou agir em liberdade. Ao Inquisidor, Jesus responde com um beijo, o amor infinito é a única reposta possível, e capaz de dar conta da dúvida.

Para dar conta desta mesma ideia Dostoiévski fecha o livro com o julgamento de Dmitri, o irmão julgado culpado pela morte do pai injustamente e enviado para a Sibéria para os trabalhos forçados. O júri na impossibilidade de chegar à verdade acontecida, opta por seguir a via do racional e não a do amor ao próximo, teses contrárias defendidas pelo procurador e advogado de defesa. Quando os indícios apontaram a Dmitri, estes foram incapazes de ver para lá das provas circunstanciais, tal como acontece com a pergunta “se Deus existe, porque permite a existência do mal?", fazendo com que ambas conduzam à descrença. Por isso é que apenas Aliocha acredita em Dmitri, já que este é o único que aprendeu a crer, aquele que não se deixa levar pela superficialidade do racional, decidindo em virtude daquilo que sente. Personagem este que é o eleito como principal ao longo do livro pelo narrador e fecha o mesmo numa tentativa de nos mostrar o caminho…

Não estou a dizer nada de novo, mas impressiona ver o alcance deste escritor, como a esta distância teve a clarividência para separar o racional do transcendente, assumindo a fulcralidade da razão mas não esquecendo que esta também pode deturpar a nossa visão. Nem tudo pode ser respondido pela racionalidade dos eventos, e quando assim é precisamos de ser capazes de aceitar outras visões, mesmo que na ausência de evidência (ex. milagres). Não se defende aqui a crença, assim como não se defende a não crença, o escritor navega completamente no limiar entre os dois lados.

Dostoiévski morria quatro meses depois de publicar “Os Irmãos Karamazov”, com 59 anos, dava aqui conta de todo o seu percurso de vida, de toda a intensidade vivida, do questionamento interno, do querer acreditar mas sempre duvidar, da inconstância das ideias e do contraste constante entre as mesmas, sendo tudo isso aquilo que plasmou de modo simbólico nesta monumental obra. Será que tudo se finda no último minuto?


Textos consultados
Depois de terminar o livro procurei saber mais sobre a obra e acabei por ler vários textos, muitos irrelevantes, outros que me ajudaram e colo aqui abaixo. Tendo em conta o carácter simbólico do texto encontrei várias interpretações, bem distintas, e segui as ideias que mais me falaram. Percebo as abordagens que procuram ver no texto a oposição comunismo/capitalismo, percebo as abordagens que se focam no modo como as histórias servem para iludir o real, percebo também aqueles que usam o texto para criticar a igreja, mas não foi por aí que optei por seguir. Senti antes, nomeadamente tendo em conta o historial de vida do escritor, que aquilo que estava aqui em questão era muito mais profundo que isso, era algo individual, que cada um de nós tem de confrontar na solidão do seu interior.

. The Reification of Evil and The Failure of Theodicy: The Devil in Dostoevsky’s The Brothers Karamazov
. The Relation between Dostoevsky and the Characters of The Brothers Karamazov
. The Brothers Karamazov: Theme Analysis
. Why Did Jesus Kiss the Grand Inquisitor?
. The Metaphysical meaning of the Legend
. Book of a lifetime: The Brothers Karamazovby
. The Brothers Karamazov
. The Grand Inquisitor

março 20, 2016

"Macbeth" (2015), do texto ao cinema

Não há muito para dizer sobre uma história que escrita há mais de 400 anos continua tão atual como então, mas diz muito sobre Shakespeare e a sua capacidade para perscrutar o interior da mente humana. Fazer um filme em 2015 depois de tantas encenações, adaptações, filmes e tudo o mais criado em redor do imaginário do personagem, parece mera redundância, contudo não tem de o ser e neste caso não é, nomeadamente pelo uso do texto direto, mas acima de tudo pela excelência dos envolvidos na feitura, desde os atores à realização, produção e cinematografia.





O uso do texto no inglês arcaico de Shakespeare foi alvo de críticas, contudo esquecem essas que a história é sobejamente conhecida, e que não é necessário compreender tudo para compreender a ideia, mas que ao usar o texto tal como escrito o filme ganhou, e muito, em poética. Talvez por isso não seja de admirar que Justin Kurzel tenha procurado dar às restantes vertentes do filme a mesma densidade e harmonia, na tentativa de uma reconstrução do original capaz de ombrear em impacto estético, nomeadamente criando em nós algo, pouco, daquilo que terão sentido aqueles que pela primeira vez assistiram à encenação do texto.





Sim, porque o texto de Shakespeare, apesar de poderosamente introspectivo, só atinge o seu auge quando encenado, e se a encenação teatral é o palco por definição, a sua transformação em filme, nomeadamente nesta visão de Kurzel, não se fica atrás. As ferramentas da literatura são suficientes para dar conta do interior humano, mas não é essa a forma usada por Shakespeare, que escolheu apegar-se ao diálogo, a base da peça teatral, e assim criar uma obra que só se ergue em plenitude quando em palco, quando os diálogos verbalizados se juntam à densidade expressiva do não-verbal dos atores.



Dito mais do que queria dizer, porque iniciei este texto apenas para deixar algumas imagens do filme, por toda a sumptuosidade da cinematografia de Adam Arkapaw, não quero contudo deixar de expressar a enorme admiração sentida por Michael Fassbender e Marion Cotillard, são monumentais na interpretação de Macbeth e Lady Macbeth.

março 19, 2016

A filosofia de “The Witness”

The Witness” (2016) almeja mais do que aquilo que verdadeiramente oferece, contudo não deixa de ser uma obra incontornável do meio, desde logo pelo modo como fusiona arte e tecnologia, ou seja, o mundo audiovisual e o núcleo mecânico do jogo. Assim, se o deslumbre estético é total e quase universal, para quem sinta deslumbramento com modelos, princípios e leis de sistemas, pode dizer-se que fica a um passo do paraíso. “The Witness” parte da base desenvolvida por “Myst”, atualizada por “The Talos Principle”, indo além desses no despojamento narrativo para se concentrar totalmente e só nos sistemas, que por sua vez partem de um “Sudoku” elevado a “Cubo de Rubik”.




Muito do sucesso de “The Witness” assenta inevitavelmente no historial do seu criador e o sucesso obtido com a obra percursora de todo o movimento indie na indústria dos videojogos, “Braid” (2008). Tendo construído toda uma base de seguidores, e também “odiadores”, qualquer jogo que fizesse teria facilmente conseguido sucesso, mas Blow não quis seguir o caminho fácil, e depois de investir 5 anos em “Braid”, resolveu dedicar 7 anos ao desenvolvimento do seu novo videojogo, mais tempo do que a maior parte dos projetos de doutoramento que podemos encontrar pelo mundo fora. Deste modo goste-se ou não, “The Witness” é um legado, uma obra criada com um propósito muito objetivo e capaz de dar conta de si.

The Witness” é uma espécie de metajogo, tão em voga nos últimos anos — "A Beginner's Guide" (2015) ou “The Stanley Parable” (2013) — que procura por meio da metaforização da vida como jogo, questionar o sentido da vida. Para tal os puzzles são aqui símbolos, o abecedário, da linguagem do autor, por meio da qual este expressa as suas ideias. Nesse sentido o mundo audiovisual e os audio logs são meros adereços, que enfatizando a mensagem não são verdadeiramente fundamentais, daí que a história esteja praticamente ausente, já que a forma de comunicação escolhida não é narrativa mas jogo.

Toda a nossa ação em “The Witness” se resume a uma busca constante de respostas (a puzzles) que assentam numa base lógica, matematicamente perfeita, em que nada surge do acaso ou coincidência, fruto de um determinismo mecanicista. E é assim que Blow passa da epistemologia, a ciência que procura compreender a natureza do conhecimento, à metafísica, a ciência que procura compreender a existência, o que numa primeira impressão, e por serem conceitos pouco usuais nos videojogos, reivindicam um lugar de destaque na sua história, mas que como dizia no início deste texto se ficam pela superfície, ainda que os audio logs que encontramos na ilha procurem aprofundar um pouco o assunto:
“The most beautiful thing we can experience is the mysterious. It is the source of all true art and science. He to whom the emotion is a stranger, who can no longer pause to wonder and stand wrapped in awe, is as good as dead — his eyes are closed. The insight into the mystery of life, coupled though it be with fear, has also given rise to religion. To know what is impenetrable to us really exists, manifesting itself as the highest wisdom and the most radiant beauty, which our dull faculties can comprehend only in their most primitive forms — this knowledge, this feeling is at the center of true religiousness.” ― Albert Einstein
Blow segue à letra esta ideia de Einstein, coloca-nos num local magnífico e deixa-nos vaguear em busca de respostas para questões que não compreendemos (puzzles), e de tanto vaguear chegamos às estruturas base do conhecimento que estruturam esse mundo (o simbolismo da linguagem dos puzzles), que em contato com as nossas capacidades cognitivas de aprendizagem, nos permitam então chegar às almejadas respostas. Se tudo isto é perfeitamente elaborado, tal qual um relógio suíço, a minha crítica advém por duas questões filosóficas, ou seja as propostas reducionista e determinista do conhecimento que o jogo expressa.

Começo pela componente determinista que Blow defende ao longo de todo o jogo, que sentencia que tudo tem um sentido, que nada surge do acaso, pressupondo um criador, neste caso o designer mas quando metaforizado nos leva a pensar na existência de um Deus, algo que parece contido nas palavras de Einstein, mas que quando lidas com mais cuidado se percebe não existir ali. Contudo Blow, provavelmente antecipando esta crítica, ou não, vai além da mesma, embora o faça já fora do chamado “jogo principal”, ou seja um puzzle que não é necessário resolver para terminar o jogo, e que dá pelo nome de “The Challenge”. Aí os quadros de puzzles apresentados deixam de ser fixos, sendo elaborados processualmente pela máquina de cada vez que ali chegamos, com base no aleatório (recomenda a leitura de “The Drunkard's Walk” de Leonard Mlodinow), o fundamento que por muito que incomode a nossa existencialmente, é a base do Cosmos.

Se Blow consegue aliviar a crítica ao determinismo que lhe poderíamos assacar, o mesmo não se pode dizer do reducionismo na forma do conhecimento humano tratado. Criar um jogo que requer do jogador um envolvimento sério de quase uma centena de horas, para apenas trabalhar conhecimento imperativo, ou procedural, sabe a pouco. Sendo imensamente relevante, e fundamental na construção do próprio objeto, o videojogo que é fruto de programação computacional, não serve em nada quando fora do seu domínio. Ou seja, com que fundamento conduzo pessoas a aprender todo um sistema complexo e intrincado, exigindo delas quase infinitos recursos de processamento cognitivo, para apenas tratar problemas intrínsecos. Em concreto, tudo aquilo que aprendo sobre os puzzles — unidades, princípios e leis do seu sistema - de “The Witness” servem apenas os puzzles de “The Witness”.





É verdade que Blow tem um objetivo com esta abordagem, de nos levar ao questionamento sobre a construção do conhecimento, mas para isso não precisava de estigmatizar os jogadores, de lhes exigir tempo e reflexão que as pessoas poderiam ter investido na leitura de dezenas de livros que pela sua natureza de conhecimento distinta — geralmente proposicional ou declarativo — lhes seriam muito mais proveitosos.

No fundo, chego ao final de "The Witness" com a mesma crítica que cheguei ao final de “Braid”, Blow é um mestre no design de jogos, mas muito fraco contador de histórias. “Braid” revolucionou toda a mecânica de plataformas, mas quando chegou o momento de dizer alguma coisa com essa revolução, ficou-se pela básica narrativa paralela à jogabilidade, totalmente desconexa da representação. “The Witness”, parecendo não ser tão revolucionário, é bem mais ambicioso, recorrendo ao metajogo para teorizar o fundamento da existência humana, e conseguindo-o estruturalmente peca, mais uma vez, pela total desconexão com o conteúdo ou sentido dessa mesma existência.

Não adianta, acho até que teria sido melhor não entrar por aí porque evitava o pretensiosismo totalmente desnecessário, comparar-se com Thomas Pynchon, em concreto a sua obra "Gravity's Rainbow" (1973). Primeiro e desde logo porque a literatura é uma forma de arte bastante distinta dos videojogos. E segundo, porque para além das diferenças, encontram-se em estados de maturidade das suas linguagens completamente distintos. As propostas de Pynchon, entre muitas outras de quem como ele abraçou o pós-modernismo, surgem como resposta a um estado canónico da narrativa literária. É verdade que Blow também aqui afronta os cânones da indústria, mas não é menos verdade que ainda andamos à procura do cânone narrativo, e enquanto não o tivermos, pretender estar a fragmentar algo que ainda não existe, é no mínimo cómico.

Uma das evidências desta incapacidade de Blow de construir uma história, sintetizar diferentes ideias numa visão sua com princípio, meio e fim e que nada têm que ver com uma abordagem de afronta ao narritivismo, surge na sala de cinema que encontramos na ilha. Aí são apresentados seis filmes, excertos de documentários de James Burke e Richard Feynman, do "Nostalghia" (1983) de Tarkovski, entre outros, que apontam em várias direções, um pouco como os audio logs, mas que acabam por servir de escusa narrativa, na esperança de que sejam os jogadores / leitores / espetadores a construir as suas próprias histórias.


Ainda assim atrevo-me a entrar na discussão de um dos vídeos apresentados, nomeadamente por o considerar central na problemática da abordagem de Blow. No clip de James Burke (vídeo acima) apresenta-se a crença num mundo determinado pela ciência, como se esta tudo pudesse, como se esta fosse uma espécie de nova salvação da espécie, arrogando-se o direito de excluir outras formas de compreensão do real. O mais ridículo do desacreditar das artes, vistas como meras formas interpretativas do real, ilusões sem utilidade, é que são preconceitos com mais de dois mil anos, estão inscritas desde a "República" por Platão, no entanto quando olhamos ao nosso passado, aquilo que resta da nossa espécie, aquilo que a identifica, aquilo que permite individualizar o ser humano e perscrutar o seu verdadeiro ser, está apenas ao alcance da arte, ficando a ciência apenas pela forma, pela equação. De certo modo é isto que acontece com toda a filosofia que Blow tenta desenvolver em "The Witness".

Para fechar, e simplificando, até porque existe algo naïf em toda esta tentativa de Blow, ao almejar responder a toda a problemática do universo, não por o fazer pelo meio dos videojogos, mas por ter fechado tudo sobre um simbolismo inconsequente, acredito que a origem do jogo surge pelo viés da sua formação, as ciências da computação, algo que está presente em múltiplos outros videojogos. Ou seja, mentes que afunilam o mundo em teias conceptuais deterministas, que organizam o mundo em sistemas de sistemas, esquecendo que no mundo real, fora do constructo matemático-computacional, os sistemas são abertos, profundamente variáveis e na maior parte das vezes completamente indeterminados.


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Entrevista com Luís António o diretor de arte de "The Witness"