maio 25, 2019

"Mindfoolness" (2019)

Trago uma curta estreada esta semana na rede que apresenta uma elevada qualidade técnica associada a um twist narrativo com capacidade para impactar fortemente o espectador. Não sendo recomendado a menores ou pessoas mais sensíveis, tem potencial para nos lançar em múltiplas direções de questionamento, desde o valor da arte ao sentido da vida até algumas práticas que procuram oferecer-lhe respostas. "Mindfoolness" (2019) foi criado por um grupo de estudantes e ex-estudantes — Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes — do DeCA/UA, e venceu esta mesma semana o grande prémio do festival Made in DeCA 2019.


O trabalho eleva-se no campo do audiovisual, com nota máxima, nas componentes de Realização e Cinematografia, apresentando uma Montagem e Sonorização boas, mas de menor qualidade, sendo tudo envolvido por uma história original e minimal, trabalhada por meio de uma narrativa no formato de thriller que mantém o espectador colado até ao final do genérico.

Chamo a atenção para a composição de cena e enquadramento, nomeadamente o modo como operam em sintonia com a narrativa. A composição do espaço e objetos comunicam de forma muito eficiente aquilo que a trama pretende, sendo apresentados por meio de um enquadramento ultra-largo que trabalha bem todo esse espaço e labora de forma bastante hábil toda a encenação que mostra e esconde o foco da nossa atenção. Criado o impacto estético, a história desenvolve-se de forma fluída, quase sem necessidade de se esforçar, até que toma as rédeas do filme, tira o tapete ao espectador e obriga-o, de um momento para o outro, a mudar o modelo mental, passando da apreciação estética para a resolução do nó narrativo.

"Mindfoolness" (2019) de Inês Graça, Joana Beja, João Garcia Neto, Rúben Duarte, Ricardo Mendes

maio 21, 2019

Quando é necessário dizer Não

Há cerca de um mês fui convidado para realizar uma palestra no evento Pint of Science que decorre este ano pela segunda vez em Portugal, em várias cidades, incluindo Aveiro. Aquando do convite fiz alguma pesquisa sobre a organização após o que aceitei participar. Entretanto fui confrontado com o facto do evento, organizado na cidade do Porto, estar a promover palestras que defendem o Reiki como terapêutica de tratamento do cancro (ver programa do Porto e vídeo). Este cenário colocou-me face a um dilema: ir ao evento significaria pactuar com aquilo que se promove nessa palestra; não ir, significava não cumprir com a palavra que tinha dado. Após alguma reflexão e face a nenhuma alteração de programa, apesar dos alertas realizados pela comunidade nacional, decidi cancelar a minha participação. Deixo algumas palavras que sustentam a minha atitude, sabendo que não repararão a minha falta, ainda assim espero que contribuam para uma discussão que é preciso continuar a fazer.


A ciência é um domínio frágil, os seus praticantes operam numa base de humildade permanente face ao conhecimento, aceitando por isso o questionamento constante dos seus princípios. Juntamente com isto, atravessamos toda uma era complexa de enorme e facilitado acesso ao conhecimento que em vez de tornar a sociedade mais informada e capaz de lidar com a ciência, tornou-a mais rude e desconfiada, nomeadamente de toda e qualquer fonte de autoridade. "Se tenho acesso ao conhecimento todo por via da internet, não preciso de especialistas para nada, posso saber o mesmo que eles sabem". "Basta-me umas horas de pesquisa e sei tanto como o meu cardiologista, ou como o meu advogado, ou como o especialista em aquecimento global". No fundo, temos na nossa frente aquilo que os teóricos do pós-modernismo vinham defendendo há décadas: uma sociedade de valores e princípios altamente fragmentada, descrente de qualquer autoridade ou meta-narrativas, vivendo numa realidade líquida em contínua e acelerada mutação.

Tudo isto sendo problemático, não o seria tanto se não fosse usado e abusado por políticos sem escrúpulos. Personagens como Trump, Bolsonaro ou os líderes da extrema-direita europeia tornaram-se populares graças a uma atitude de total desrespeito para com toda e qualquer autoridade instituída. Usam o princípio de que não existem certezas, de que existem cientistas que publicaram um ou outro artigo com reservas como se isso fosse suficiente, ou sequer evidência de algo, para atirar mantos de total descredibilização sobre todos os consensos da Ciência, para a coberto dos mesmos poderem promover as suas próprias agendas ideológicas, mas principalmente económicas.


E ainda assim, poderíamos enquanto membros da comunidade, desejar não nos imiscuir da política, que é um meio complexo, feito de ataques continuados, muitos deles pouco refletidos e menos ainda verdadeiramente sentidos, e que por isso mesmo não valeriam o nosso tempo. Contudo, o problema é grave, porque não se trata apenas de políticos à procura de benefício próprio, estas suas agendas têm impactos brutais sobre a sociedade, e até sobre o próprio planeta. Temos hoje milhares de pais a porem em risco milhares de crianças ao não vacinarem e ao apelarem à não vacinação. Temos milhares de pessoas que se colocam em risco e colocam outros em risco ao apelarem ao não tratamento químico de cancros. Temos milhares de pessoas que defendem que vivemos num planeta “plano”, mas pior, defendendo a inexistência de qualquer aquecimento global, usando a simples ideia de que tudo é questionável, e que a ciência não tem resposta para tudo. Claramente que a ciência não tem resposta, nem pretende ter, para tudo, mas as respostas que tem precisam de ser defendidas, e não colocadas à mercê dos ataques de quem não está minimamente habilitado ou sequer interessado na ciência. Assumir que tudo é igual, e todos têm direito à palavra com o mesmo grau de autoridade, deixou de ser uma condição aceitável, correndo o risco de tudo perdermos.

Temos que promover a ciência, temos de a defender, e isso implica tomar posições que por vezes são difíceis. Neste caso, os organizadores do evento no Porto preferiram o caminho mais fácil, defender as escolhas que tinham feito inicialmente, obrigando a que os investigadores ficassem com a escolha mais difícil, dizer que Não.


Notas Adicionais:
A tomada desta decisão foi feita no âmbito de um diálogo aberto com os organizadores do evento na cidade de Aveiro, que acabaram por compreender e aceitar a minha posição, manifestando a sua impossibilidade de atuação dada a autonomia que cada cidade organizadora do evento detém.

Do meu lado, esclarecer ainda que esta minha posição não deve ser lida como fundamentalismo científico, algo contra o qual tenho manifestado por várias vezes a minha posição, como se pode ver no texto que aqui publiquei no final de abril, "SciMed e a humildade em ciência".


Ler mais:
A Ciência não é Crença, Virtual Illusion
O Reiki funciona?, FFMS
Carta aberta à Pint of Science Portugal, Comunidade Céptica Portuguesa

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

maio 18, 2019

O que fazer da Curiosidade?

"Curiosity" permitiu-me conhecer melhor Alberto Manguel, e se numa primeira fase do livro criou em mim enorme admiração pela sua pessoa, à medida que fui avançando na leitura essa admiração foi-se desvanecendo. No final, a maior conclusão que tiro não tem nada de novo, ler muito não chega, ler muito é essencial, mas é preciso aprender a fazer algo com esse muito que se lê. Manguel leu toda a sua vida, é um dos maiores connaisseurs internacionais do cânone literário, mas na hora de criar obra não vai além da compilação daquilo que os outros fizeram. E talvez o maior problema desta obra tenha sido o ter acreditado que podia ir além, que podia criar um género de escrita novo, sair do seu domínio de Editor.


Em "Curiosity" Manguel recorre a uma mescla entre memórias da sua vida e as obras do cânone ocidental que faz desfilar na nossa frente por meio dos eventos da "Divina Comédia" (1320) de Dante. Posso dizer que nas primeiras 100 páginas funciona brilhantemente. Manguel sintetiza imensas visões literárias ao longo dos últimos 2500 anos sobre o que é a curiosidade e a sua importância para a nossa espécie. Contudo depois perde o foco, mesmo utilizando Dante e Virgilio para o guiar no resto da jornada, dedica as restantes 300 páginas a simplesmente vaguear pela literatura mundial, pescando ideias soltas aqui e ali, sem qualquer objeto ou motivo.

Manguel é dono de uma impressionante biblioteca com mais de 30 000 volumes, que tem transportado consigo ao longo da sua vida pelos vários países em que viveu — Israel, Argentina, Canada e França.

No final fica uma enorme sensação de tempo perdido. Claramente é interessante avaliar o que foi dito na literatura sobre um tema, mas é preciso dar sentido a tudo isso, e é aí que Manguel falha. Mais ainda porque Manguel nunca sai da sua área de conforto, a literatura. Dedica-se a discutir temas complexos como a linguagem ou consciência, a partir de obras com milhares de anos e textos literários, atirando borda fora todo o conhecimento humano produzindo ao longo dos últimos 100 anos pela psicologia, linguística e neurociências. No final passa a ideia que a ciência é um objeto estranho para Manguel, e que para si tudo pode ser compreendido por meio da literatura e alguns filósofos e religiosos.

Não posso deixar de apontar o dedo a mim próprio que me aproximei da obra com o intuito de aprender algo específico sobre curiosidade, já Manguel estava apenas interessado em compilar textos em redor da construção de outros textos. Mesmo as suas memórias são meras introduções a cada capítulo, muitíssimo curtas, e sem conexão abrangente com o que se vai discutir depois nas passagens literárias. Por sua vez, as passagens literárias acabam contaminadas por Dante, o que no início resulta interessante, mas rapidamente se torna cansativo por nada acrescentar. Percebe-se que Manguel utiliza a Divina Comédia apenas como estrutura, seguindo talvez o caminho de Joyce colado à Odisseia, mas totalmente incapaz de se apropriar da Comédia, como Joyce se apropriou e soube criar uma Odisseia para Bloom. Aqui não temos qualquer rito de passagem de Manguel, nem sequer da curiosidade, não partimos de lado algum, e menos ainda chegamos a qualquer lugar, como acontece com Dante na sua viagem através dos 3 estágios do além. Temos apenas um conjunto de capítulos que podem resultar interessantes soltos, pelo enorme conhecimento de Manguel, mas completamente incapazes de saciar a curiosidade que o livro prometia discutir e apresentar.

Manguel lembra-me Leonardo Da Vinci, ambos imensamente curiosos, mas apenas focados na busca por mais e mais, não conseguindo nunca parar para refletir, para analisar sobre aonde tudo o que já sabem os pode conduzir. Apenas parece interessar-lhes a novidade constante, sempre insatisfeitos, sempre necessitados de mais, do diferente, para acrescentar peças novas ao que já sabem.

Por fim, se tiverem encontrado, ou procurado, este livro de Manguel para saber mais sobre a curiosidade humana, aconselho antes a leitura de "Curious: The Desire to Know and Why Your Future Depends On It" (2014) de Ian Leslie.

maio 11, 2019

Nazismo: ouro e livros

Por mais que acreditemos saber já o suficiente sobre a Segunda Guerra Mundial, nunca saberemos tudo, é impossível, e acabamos sempre por nos surpreender sempre que lemos ou acedemos a novas histórias desses tempos, que alargam o espectro da maldade muito para além dos horizontes por nós já trilhados. A história que trago, nunca a tinha ouvido, porque ao pé de tantas outras, parece menor, não tem números impressionantes, aconteceu pela calada, e rapidamente foi silenciada por todos, mas não deixa de me impressionar pelo nível de dolo implícito.

Rua do Gueto Judeu de Roma (2018)

A 8 de setembro 1943 os nazis ocuparam Roma. Dos 8 mil judeus que aí viviam pouco mais de mil ficaram na cidade no Gueto de Roma, estabelecido em 1555. Neste encontrava-se a Biblioteca della Comunità Israelitica recheada com mais de 7 mil livros raros ou únicos, datados desde o século XVI.

No dia 26 de setembro 1943, o comandante da Gestapo em Roma anunciou que se não lhes fosse entregue 50 Kg de ouro, 200 famílias seriam deportadas. No dia 28 setembro ao meio-dia, o prazo dado, os 50 Kg apenas conseguidos graças ao contributo de toda a cidade de Roma, foram entregues.

No dia 14 de outubro 1943, menos de um mês depois, os 7 mil livros da Biblioteca della Comunità Israelitica foram levados, carregados em duas carruagens e conduzidos alegadamente para Alemanha. Estas duas carruagens nunca voltariam a ser encontradas, tal como todo o seu conteúdo, até hoje.

No dia 16 de outubro 1943, dois dias depois, os militares alemães cercaram e selaram o gueto. Cerca de 1030 judeus foram presos e deportados para Auschwitz. Apenas 16 sobreviveram.



Nota: Pesquisa realizada por via da Wikipédia, confirmada por meio de alguns artigos científicos, seguindo o rasto dos 50 kg de ouro, mencionados no livro “A História” (1974) de Elsa Morante.

maio 04, 2019

Talento ou motivação para criar?

Quando uma filha (14) ganha um concurso ficamos contentes, imensamente alegres por ela, mas quando ganha um concurso a nível nacional de escrita (criativa em inglês), que descobrimos apenas que ela participou quando soubemos que ganhou, além de nos fazer sentir felizes, questiona-nos: como e porquê? Não podendo deter-me no artefacto, foi escrito na hora do concurso em resposta ao tema e à mão e por isso não o pude ainda ler, detenho-me então sobre o seu percurso, não meramente escolar, mas essencialmente no ambiente que lhe foi proporcionado. Muito rapidamente me dou conta de algo que já há algum tempo vinha desmontando sobre a criação de talentos, não basta o ambiente social, nem sequer o investimento e trabalho árduo. Existe algo mais.


Nos últimos anos tenho-me dedicado a tentar compreender o modo como se criam os chamados talentos, no sentido de compreender a motivação e envolvimento humanos. Trabalho com media interativos, e por isso tenho como objeto central da minha investigação compreender o modo como o ser humano se envolve ou engaja com a realidade e os outros, descobrir o que é necessário para convencer alguém a agir, a sair da sua passividade do mero consumir para interagir. Dos estudos que fui lendo, notei uma ênfase enorme na necessidade de esforço e trabalho, relatados em análises de grandes nomes das mais diversas áreas, desde o Cristiano Ronaldo a Pele, passando por Kournikova, mas também Avicii ou Lady Gaga, passando pelas estrelas criativas do cinema romeno Cristian Mungiu ou Cristi Piu, ou inovadores tecnológicos como Bill Gates e Steve Jobs, ou ainda nomes maiores como Mozart ou Proust [1, 2, 3, 4].

A ideia que passa, no final de entrarmos nestes universos de desmontagem académica dos processos de formação de talento, é de que é tudo criado por nós, que existe uma fórmula que podemos seguir para desenvolver qualquer talento, a ponto de podermos concluir que pode ser atingido por qualquer ser-humano desde que se esforce para tal. Mas em todos esses estudos fui sempre apontando um detalhe, que parece menor, mas é fundamental, a motivação intrínseca. Aquilo que nos move internamente. Não estou a falar do célebre “jeito”, menos ainda “dom”, mas de motivação para investir horas diárias a chutar numa bola, a programar, ou a escrever, porque todos os exemplos dados acima tiveram isso, nenhum deles foi formatado para ser o que é, foram eles que foram sempre além daquilo que o ambiente lhes pedia, porque queriam mais. Ou seja, não nascemos com um dom para ser cantores ou escritores, mas nascemos com inclinações que nos predispõem a sacrificar tudo o resto em nome daquilo que mais gostamos.

O exemplo que tenho em casa mostra bem isso. Claramente que é uma miúda privilegiada, com acesso a centenas e centenas de livros espalhados por toda a casa, assim como centenas de DVD e videojogos, ao que se acrescentam vários serviços de conteúdos online na televisão, consolas e computador. Mas tem as suas inclinações que a separam totalmente do irmão (10), que tem acesso exatamente ao mesmo entorno material e social. Adora cinema e séries mas não gosta de jogos de mestria ou abstratos, é boa aluna, mas não é brilhante, não se colocando ao lado das suas colegas que correm as pautas a cincos. Se os mando continuamente ler aos dois, já que os ecrãs são a sua maior perdição, ela vai lendo vários livros ao longo do ano, enquanto ele parece estar sempre a fazer provas de superação sempre que vai ler, a única coisa que vejo capaz de agarrar o seu foco, até agora, tem sido os jogos, digitais ou físicos.

Ela não lê desenfreadamente, pois por uma qualquer razão só gosta de ler quando vai para a cama à noite. Ainda ontem lhe perguntava pelo Harry Potter, só leu até ao 5º volume, por outro lado, viu os 8 filmes provavelmente mais de meia-dúzia de vezes. Do mesmo modo, leu ainda apenas os primeiros quatro livros do Game of Thrones, mas está quase a acabar a série. É alguém que adora histórias, independentemente do medium. Começou a ver longas-metragens completas da Disney aos 2 anos, enquanto o irmão, já com 10 anos, continua a perder o interesse nos filmes antes de chegarem ao fim. Quando era mais pequena levava-a a eventos com performers que contavam histórias e ela deliciava-se. E isto é talvez aquilo que vem inscrito na sua motivação, o universo das histórias, contadas, visualizadas, escritas e imaginadas. Não fomos nós em casa que lhe dissemos que as histórias eram relevantes, é algo que a atrai, que a motiva, que puxa pela sua curiosidade e a faz mover. Agora, claramente que precisa de alguém que a vá guiando que lhe mostre a diversidade criativa existente, mas mais do que isso, que existe algo para além do mero consumo, que ela também pode ser parte desse mundo de criação, e isto tem sido algo para o qual a mãe tem dado o maior contributo cá em casa. Entretanto, do que conseguimos perceber, tem vindo a dar os seus passos, mas tudo no segredo do seu quarto e dos seus cadernos pessoais, desconhecendo nós que qualidades ou fragilidades possui, mas a julgar por este concurso, parece estar a dar alguns frutos.

Desta pequena súmula volto a retirar o essencial daquilo que considero ser o papel principal da Escola, ajudar as crianças a encontrarem o seu próprio filão interior. O que gostam, como se vêem, o que os move e demove. São muitas as disciplinas que se ensinam na escola, e eles não precisam de ser bons em todas, menos ainda excelentes, e por isso talvez devessem ser ainda mais as disciplinas, as áreas abordadas, dada a amplitude de possibilidades de realização que o mundo complexo em que vivemos nos proporciona, ou pelo menos abrir-se mais o leque em termos de valências extra-curriculares. É por isso que além do que a escola oferece, lhe proporcionamos ainda o acesso a escolas de dança (ballet) e música (orgão). Acredito que é na frequência da multidisciplinaridade que as crianças e jovens poderão encontrar o seu modo, a sua força intrínseca, criar o seu espaço de ação interior e exterior, e virem a ser capazes de agir no seio dos outros de modo consequente.

Deixo ainda uma nota de agradecimento à escola e aos professores portugueses, que a sociedade teima em desprezar, em apontar o dedo atirando farpas de que tudo está sempre igual a quando por lá passaram. Mas a escola de hoje é diferente, porque os professores de hoje têm uma formação muitíssimo superior à que tinham os nossos professores. São muitas, imensas as atividades que todos estes professores criam e gerem ao longo do ano em cada escola, de Norte a Sul, desde os concursos de escrita criativa, a debates argumentativos, a construção de robôs, e modelação e impressão 3D, passando por programação de jogos, simuladores, jornais escolares, reportagens, olimpíadas de matemática, experiências, audições, intercâmbios, exposições, etc. etc. Claro que a maior parte de tudo isto está nas mãos dos professores individualmente, são eles sozinhos que retiram do tempo da sua família para dedicar sábados e fins de dia para que os alunos tenham mais do que aquilo que vem inscrito nas matrizes estandardizadas de conteúdos. Provavelmente precisamos de mudar essas matrizes, precisamos de uma matriz menos sobrecarregada e de fazer dos projetos individuais dos professores projetos de escola, e julgo que de certo modo é isso que está a ser feito com a chamada Autonomia e Flexibilidade Curricular, aguardemos pelos seus frutos. E bem-hajam.


[1] O Talento é Sobrestimado, 2012
[2] Outliers, 2011
[3] Código do Talento, 2014
[4] Necessidades e Realização Pessoal, 2018

abril 30, 2019

SciMed e a humildade em ciência

Entro na rede à procura de clínicas para fazer um exame de endoscopia, encontro uma perto de casa, entro e vejo que fizeram um vídeo explicativo do processo, acabo de ver o vídeo e como sempre faço, talvez por deformação profissional, vou ao YouTube ver de onde vem o vídeo, quantos o viram, comentaram, e que vídeos o YouTube me sugere mais. Surge um tal de "Dr. Lair Ribeiro - Ozonioterapia", não faço ideia do que seja, mas pelo título parece mais uma medicina alternativa. Começo a ver, invisto vários minutos e começo a pensar que o YouTube se tornou na maior arma de charlatanice da história. Pego no nome do senhor e faço pesquisa, nos primeiros cinco resultados aparece-me uma página do SciMed que me diz que o senhor, médico brasileiro, esteve recentemente em Portugal a debater com Rui Unas no Maluco Beleza. Em dúvida, entro no vídeo do Unas, vejo que se trata de uma entrevista de uma hora e meia, fico boquiaberto. Passo os olhos pelos comentários ao vídeo, só elogios ao senhor Lair!!! Volto ao artigo do SciMed, intitulado "Lair Ribeiro é um Charlatão – Análise Crítica às Suas Afirmações no Programa Maluco Beleza" no qual o médico João Júlio Cerqueira se dispõe a desmontar as falácias de Lair ao longo de um artigo longuíssimo (18 páginas). Se começo concordando, pensando em partilhar o texto para louvar o exemplo e esforço de desmontar falácias, quanto mais vou lendo mais incomodado me vou sentindo, já perto do final só sinto um trago amargo por cada novo parágrafo, até que bato com os olhos nos comentários dos leitores, uma enxurrada de ataques ao João em defesa de Lair, já com discussão xenófoba Brasil-Portugal pelo meio...


O sr. Lair pelos vistos perdeu-se no caminho da medicina, já que em tempos foi um médico de valor, inclusive investigou e publicou quase uma centena de artigos científicos, mas num certo momento da sua carreira algo lhe terá acontecido, porque abandonou a ciência, e começou a dedicar-se "à salvação dos mais necessitados" por meio das medicinas alternativas. Não sabemos se teve alguma experiência paranormal, ou se foi mera vítima da gula charlatã. Mas se o senhor é hoje um charlatão, não deixa de ter grande número de seguidores, tal como tem Edir Macedo, Olavo Carvalho ou Jordan Petersson. São pessoas dotadas de grande carisma, que acreditam estar imbuídas de uma missão, ou então são apenas pessoas despudoradas, capazes de tudo em nome de poder, fama e proveito económico.

Dito isto, não é difícil compreender que se movem ânimos intensos a favor e contra estas personagens. Não são apenas os seus defensores que se jogam na frente e dão o corpo em sua defesa. Todos aqueles que todos os dias trabalham em prol da sociedade, sentem-se de algum modo injustiçados por indivíduos que por graça do seu carisma contribuem apenas para destruir aquilo que vai dando tanto trabalho a criar, e por isso quando podem alinham-se também na primeira fila do pelotão, prontos a fuzilar. O João apresenta-nos um texto de puro fuzilamento. Em defesa do João podemos dizer que apresenta evidência, que desmonta os argumentos contrapondo com factos, reportando a estudos da comunidade internacional, que tornam claro quem tem razão, ou quem está mais próximo da verdade. Contudo, todo esse trabalho é destruído pelo tom do discurso, que por vezes conta mais do que o teor do conteúdo, mais ainda se tratando de esgrima argumentativa. E não adianta falar em falácias, ou conhecer as comuns falácias argumentativas, sem comunicação apropriada as ideias não se sustentam.

Começa logo na imagem usada para o artigo que dá o mote para a chacota que percorre todo o resto do texto. O João ainda começa por dizer que vai fazer uma “análise crítica”, mas logo a seguir inicia com termos como “missa habitual” seguido de “paletes de mentiras”, e ao longo de todo o texto, aqui e ali, vai como que encostando a ponta da faca da espingarda à barriga de Lair — “quem percebe o mínimo de medicina”, “ser evangelizado pelo Lair Ribeiro”, “é uma treta”, “tretólogo”, ”crendice”, “está tão gasto que dói”, “cheirar a mofo“ — ou até puro ad hominem disfarçado com “oligofrenia” e “culto oligofrénico”. Mas vai mais longe, embevecido pela sua luta, e vontade de fuzilar, leva tudo na frente cometendo erros graves como dizer: “Nenhum cientista que se preze cita livros para justificar posições.” Posso até conceder que na sua área não usem, mas a sua área não é toda a ciência. E mais, atacar assim o livro, enquanto objeto central do conhecimento, acaba por só levantar dúvidas à sua argumentação, mais ainda de todos aqueles que não trabalham com ciência e nem sequer sabem o que é um paper. Acrescentando por fim que o João acusa o Lair de se autocitar, vangloriando o Eu em vez da ciência, e depois acaba por ele próprio autocitar-se ao longo do texto várias vezes.


Chegado ao final, pergunto-me: o que retira o João de todo este trabalho, são horas e horas que estão ali (de análise de vídeos, desmontagem de argumentos, composição de imagens e diagramas, pesquisa e escrita)? É capaz de se sentir realizado porque despejou o saco, ventilou, pôs cá para fora toda a irritação de ver a ciência, e o seu trabalho, maltratados. Mas o João já se perguntou se aqueles que seguem o Sr. Lair deixam de o seguir depois de ler o João? A julgar pela discussão nos comentários ao texto do João, é fácil perceber que não. Para que serve então tudo isto?

O que me apraz dizer é algo que não é novo, que fazem falta nos cursos de medicina disciplinas que trabalhem a empatia dos médicos, que os ajudem a colocar-se no lugar do outro, neste caso teria sido muito útil ao João, perceber que ele não está a escrever para o seu Eu. Mas talvez mais importante do que isso, e já que vivemos tempos em que o Japão (já voltou atrás) e o Brasil (espero que volte atrás) querem acabar com os cursos de Filosofia, seria importante que todos os alunos de Medicina, mas não só, tivessem disciplinas de Filosofia, porque a Humildade Científica é o valor mais importante de qualquer aprendizagem científica.

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.

abril 23, 2019

Às pessoas do Drama falta Ciência

"As Pessoas do Drama" (2017) pode ser lido como continuação de "Impunidade" (2014) ou remake, a continuidade não é perfeita, existem vários elementos narrativos que não oferecem suporte à continuidade, ainda assim pode tentar-se a aproximação. Dizendo isto apenas, já sabem o que vos espera, ainda que sendo um trabalho muito menos violento, mais focado, mas também talvez por isso mais repetitivo, fez-me sentir falta de mundo. O mundo que habitamos é vasto, denso e complexo e no entanto para Cancela, dois romances resumem tudo a meia-dúzia de personagens alienados, sofrendo todos das mesmas patologias do foro mental. Eu tentei, li vários textos sobre o livro, muitos deles pareciam escritos por quem nem sequer o tinha lido, mas chegado ao final, a convicção de que não é um bom livro é grande, embora admita que possa ter falhado na leitura, mas é o que sinto agora.


A obra recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela 2018, segundo o júri "pela leitura crítica da História e da Cultura europeia na sua relação com a cultura árabe, através de uma temática poderosa (a culpa, a impunidade, o drama, o olhar, o incesto, a tensão e a violência familiares), e de uma revisitação de personagens e de mitos do nosso património cultural ocidental"." Bem, devem ter lido um livro que eu não li. Sim a Cultura Europeia está em destaque, temos Antiga Grécia (Antígona), temos Itália (Roma), Espanha (Badajoz e Cordoba) e Portugal (Alentejo, Elvas e Lisboa). Mas Cultura Árabe, a sério? Porque existe um personagem secundário marroquino, que passa por espanhol, mas porque é mudo, não fala uma língua, todos lhe dizem que é de parte nenhuma?

Quando terminei de ler "Impunidade" senti-me defraudado. Mais de metade do livro tinha sido passado a tentar interpretar algo, quando apenas a 1/3 do final Cancela resolve tirar o tapete. Desta vez Cancela termina o livro, e só na nota final que define os personagens, tal como nas peças de teatro, é que percebemos quem é quem. É um jogo vil. Das duas vezes optou por manipular o leitor, não disse ao que vinha, quis jogá-los para o meio da tragédia, obrigá-los a sentir, para depois revelar o que se passava. A isto chamamos manipulação. Hitchcock foi um dos seus maiores mestres, mas Hitchcock não brincava com temas destes, e menos ainda se repetia. Chegar ao final de "As Pessoas do Drama" e reencontrar o incesto como o segredo que tudo explica, é como ir ao cinema ver o último filme de M. Night Shyamalan, e chegar ao final e descobrir que afinal o personagem estava morto desde o início.

Por outro lado, escrever quase 300 páginas sem nunca revelar quem é quem é obra, um verdadeiro tour-de-force, ainda que conseguido à custa de muita redundância, e paciência do leitor, que perto do final já em desespero deixa sequer de querer saber quem são todos aqueles personagens que na frente dele se movem. Mas chegar ao fim e ver a mesma resposta dada no romance anterior, é anti-climático, desolador. Se existe algo que o autor quer dizer sobre o tema que escreva um ensaio, agora usar o romance para rodear, tornear a questão parece-me de mau gosto. Porque o texto não é inocente. Cancela não está propriamente a escrever um livro para chocar e vender, ele usa a escrita para afirmar um ponto de vista, tal como diz:
"É algo a que me proponho enquanto projecto de escrita e de literatura: cada livro tem de merecer a atenção do leitor. Deve dar-lhe algo em troca daquilo que exige. E deve dar-lhe tanto mais quanto maior é o que exige. Não tem de ser fácil ou imediato, mas deve ser intelectual e esteticamente gratificante. Deve acrescentar algo à experiência do leitor."  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Cancela quer ampliar a nossa experiência da realidade, e a melhor forma que encontrou para fazer foi escrever dois livros seguidos sobre o incesto? Muito sinceramente, a mim parece-me mais sentido de missão:
“Se há alguma coisa que possa ser a função das artes na actualidade é a capacidade de experimentar os valores. Aquilo que não é legítimo no plano político ou no plano social é desejável no plano artístico. Se a arte não é um espaço de experimentação, de encostar o mundo aos seus próprios limites, então não sei para que serve a arte.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Não sendo legítimo, é desejável na arte. Concordo. Mas a arte não é mera experimentação do que é ilegítimo, a função da arte é exatamente a de quebrar os tabus da sociedade, de a fazer abrir-se e aceitar o que moralmente vai sendo questionado. Repare-se no que diz ainda:
"a literatura é um extraordinário organizador de experiência e um espaço de construção da nossa própria identidade. O autor constrói-se através do processo de escrever, é a escrita que suporta a construção da sua identidade.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Ou seja, o texto não é mera ficção, existe algo no seu interior que move Cancela. Não me move realizar aqui qualquer psicologia, menos ainda psicanálise. Interessa-me antes compreender o que livro tem para dizer, e faço-o também porque é o próprio autor que questiona o silêncio de quem o lê, o que me leva a falar, já que confesso que chegado ao final, senti mais vontade de atirar o livro para o monte e esquecê-lo, juntamente com o livro anterior e o seu autor.
"Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.” Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
E afinal o que se retira desta leitura? Como é que a minha experiência do real se altera ao ler esta obra? Na verdade alterou-se apenas no meu respeito por quem escreve bem, e tem um enorme talento na construção de texto e trama narrativa, que deixou de acreditar que essas condições são suficientes para alguém criar obras relevantes. Algo que me custa ainda mais num autor nacional. Não é apenas a questão do incesto, foram vários os momentos ao longo da leitura em que estaquei a questionar o suporte científico do que se apresenta. Temos um filha que renuncia aos pais adoptivos, para se tornar uma alma vagante apenas porque é adoptada? Que potencialmente se tornaria um ser alienado porque é fruto da consanguinidade, apesar de ter vivido toda uma vida normal até descobrir que era adoptada? Como se os pais biológicos fossem a razão de tudo, e 16 anos de educação, desde o dia em que se nasceu, tivesse tido impacto nulo naquele ser? Esta é toda uma visão retrógrada sem suporte no que sabemos hoje sobre o modo como se edifica o ser-humano. A biologia define muito do que somos, mas não é uma cruz que se carrega desde que se nasce até que se morre.

abril 20, 2019

A importância de “Antígona”

“Antígona” (-442) é a parte final de uma trilogia que se inicia com “Rei Édipo” (-427) a que se segue “Édipo em Colono” (-406), ou seja, a última parte, mas a primeira a ser escrita por Sófocles (-497 — -405). Assim, se a primeira parte ganhou repercussão no nosso imaginário contemporâneo deve-o não só à hábil estrutura narrativa, capaz de prender o leitor e agitar as suas emoções do início ao final, mas principalmente a Freud por ter inventado um complexo incestuoso, que nunca existiu, já que Édipo só descobre que tem uma relação com a própria mãe depois de com ela ter casado. “Édipo em Colono” funciona como episódio intermédio, contribuindo para aumentar o universo dramático, nomeadamente do seu espaço, como das personagens fundamentais, pondo em cena o fim de Édipo, estando Sófocles perto da sua própria morte, e dando corpo às duas percentagens centrais de “Antígona”, Antígona e Polinices.

Recorte de "Antigone donnant la sépulture à Polynice"(1825) de Sébastien Norblin [ver Galeria]

Se o “Rei Édipo” nos choca pelo conflito com a natureza, pelo incesto, Antígona agarra-nos pelo conflito entre o indivíduo e o coletivo. Não admira que Antígona tenha sido a primeira peça, e uma das primeiras peças de Sófocles, é muito mais liberal, centrada nos valores sonhadores da autodeterminação, enquanto Rei Édipo é quase uma aceitação tácita do determinismo que sepulta o livre-arbítrio.

Temos uma Antígona que questiona a lei, desafia o governador, o rei Creonte, aceitando a morte em troca da defesa dos seus princípios, o direito de enterrar o irmão. Podemos ler na vontade de Antígona apenas o cumprimento dos desejos dos deuses, e do seu irmão expresso em “Édipo em Colono”, de que se sepultem os mortos sob terra, mas isso é apenas um pretexto dramático. O que temos é, Antígona, uma mulher respeitada por toda a sociedade a questionar uma ordem do governador, da autoridade, provocando um conflito na sociedade, que por ter em tanta consideração Antígona, e por aquilo que pede não lhes parecer indigno, a coloca face a um dilema, aceitar ou não aceitar a vontade de Antígona. Este conflito é ainda mais ampliado com a entrada em cena de Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona. Habilmente, Sófocles não dá espaço à emocionalidade básica da historieta do amor cego, antes aproveita para captar do confronto pai-filho, a mesma problemática da auto-determinação do indivíduo, entrando aqui no território sagrado do “Honrarás Pai e Mãe”.

A peça questiona assim, sem rodeios, a autoridade daqueles que se dispõem a dispor das vidas dos outros, seu povo ou seus filhos. Deve um cidadão deixar de se afirmar, de se edificar, enquanto ser humano individual e livre, apenas para cumprir os desígnios de um líder, que o é temporariamente. E um filho? Deve ele submeter-se a todas as vontades de um pai, apenas porque dele nasceu? Com que direito podemos pôr e dispor das vidas dos nossos filhos (cf. “Uma Educação”, 2018)?

Refletindo agora, esta questão vai ao coração do Rei Édipo, dando a parecer que Sófocles quis aprofundar o dilema daquilo que somos e do poder que detemos para determinar o que somos. Poderemos, mesmo pelas supostas leis da natureza, anti-incesto, condenar Édipo? Quanto daquilo que somos depende de nós? dos outros? da natureza? Temos mesmo acesso a um livre-arbítrio?

Tendo-o ou não, devemos, não, acredito que temos a obrigação de nos edificar, de trabalhar para o que é justo, que não podendo ser escrito como lei, por nenhum rei ou governante, por nenhuma sociedade, nem por nenhum pai ou mãe, já que o que é justo é emanado da moral que se escreve momento a momento pela própria evolução da civilização, podendo apenas basear-se no princípio basilar que suporta todos os ditames filosóficos e religiosos desde sempre, sendo hoje reconhecida como Regra Dourada: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”