março 28, 2018

Ao cinema não basta querer emular os videojogos

King Arthur: Legend of the Sword” (2017) é um filme de Guy Ritchie o que se evidencia desde as primeiras sequências dada a sua tendência para colocar a forma na frente do conteúdo, nomeadamente em termos de montagem, composição visual e ritmo. Contudo julgo que desta vez se excedeu ao tentar descaradamente fundir discursos contemporâneos da moda — as séries de tv, mas principalmente os videojogos — para agradar em particular ao público mais jovem, dominante no consumo dos conteúdos audiovisuais, mas a julgar pelo desastre em bilheteira nem a esses conseguiu agradar.




Temos o mito, da espada na pedra, carregado com fantasia à lá “Lord of the Rings” e “Game of Thrones”, mas ao contrário destes, não temos história nem personagens. Artur não sabe quem é, não quer saber, nem tem razões para querer, assim como não parece munido de qualquer motivação, vontade ou desejo, simplesmente existe para que o filme tenha um foco humano. Os restantes são adereços, igualmente desprovidos de vida, nem Jude Law consegue salvar algo que não tem pés nem cabeça. Sim, nos videojogos blockbusters os personagens também são pouco desenvolvidos, mas quem disse que um videojogo era um filme?


Por outro lado temos uma banda sonora, por Daniel Pemberton, de excelência que tudo vai colando por meio de bons leitmotivs sonoros que adocicam o nosso interesse, ao que se juntam momentos altos de grande impacto visual, por meio de sequências de cinema virtual em que o cinema dá lugar à animação de VFx. Contudo tudo isto acaba por criar um conjunto de sequências que poderíamos desfrutar em qualquer âmbito sem necessitar do filme, simplesmente para apreciar a beleza do virtuosismo técnico e criativo. São sequências em que o cinema deixa de o ser para assumir mero caráter de cinemático, a cola à estética dos videojogos é muito alta, tanto que em vários momentos pensei estar num videojogo e não num filme.




Ritchie impressiona com o calibre explosivo da forma, a velocidade da montagem e a composição constante in-your-face, tudo no filme parece gritar pela nossa atenção, ao mesmo tempo que nada parece realmente valer essa atenção. Os personagens parecem ter sido retirados de um "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (1998) ou "Snatch" (2000) e enfiados à pressão num mundo medieval, não se conseguindo nunca vislumbrar qualquer Cavaleiro da Távola Redonda e menos ainda um Rei Artur. A demonstrar que não chega produzir obras de impacto audiovisual forte, que por mais intenso que o labor seja, e mesmo que consiga manter o nosso olhar e ouvidos presos à tela, continuamos a precisar de personagens humanos para nos fazer sonhar, para conseguirmos criar fábulas que perdurem. O cinema é acima de tudo drama, narrativa encenada, já um videojogo conta com outros atributos, nomeadamente jogabilidade e interatividade, que não têm lugar num filme.

março 26, 2018

Livro: “O Dom” (1938)

Não é um livro fácil e as razões para tal são várias — a estrutura é multilinear e descontínua; a forma é poética e de vocabulário rico mas escrito como torrente descritiva; e o contexto exigido é não só enorme como distante da maioria dos leitores contemporâneos. Não acontece muito, ou quase nada, em “O Dom”, muita nostalgia relatada por emigrantes russos fixados num espaço que é a cidade de Berlim e que tal como o espaço de Dublin, em “Ulisses” (1922) de Joyce, serve a Nabokov para agregar a estrutura fragmentada. Tudo parece sustentar-se num processo de regressão afetiva e na sua descrição por recurso a uma estilística de embelezamento máximo, completamente colada a Proust. Digamos que Nabokov, dotado de enorme virtuosismo, resolveu criar uma obra capaz de homenagear dois dos seus autores favoritos, mas a homenagem não se fica por aqui já que o tema do livro é nada menos que a Literatura Russa do século XIX, ou seja, a homenagem estende-se a Puchkin, Gogol, Tchékhov, Turgeniev, Tchernichevski entre muitos outros. Deste modo, para se poder iniciar algum envolvimento com a leitura desta obra convém conhecer algo destes autores, assim como deter algum conhecimento sobre o antes e o depois da Revolução Russa de 1917. No caso do antes, alguns livros destes autores já dão muitas pistas mas recomendo sobretudo "Guerra e Paz" de Tolstói.


Não conhecia todos os enunciados, faltava-me Puchkin e Tchernichevski, e por isso são os livros que se seguem, embora sejam dois autores em pólos opostos, ou seja, se Puchkin é o grande pai das letras russas, Tchernichevski é não só desconhecido fora da Rússia, como é aqui totalmente ridicularizado. Mas deixarei o meu comentário sobre o capítulo inteiro que se lhe dedica para quando acabar de ler o livro de Tchernichevski, que entretanto já comecei e em poucas páginas deu para quase compreender Nabokov. Digo quase porque tenho de confessar que me custou ler Nabokov, um dos meus autores de referência, num discurso de crítica ad hominem. Aliás, não é por acaso que o capítulo não foi publicado aquando da primeira edição da obra em 1938. Ainda que perceba a qualidade muito fraca de Tchernichevski, só consigo compreender esta reação de Nabokov pelo caráter político que o livro de Tchernichevski adquiriu, ou porque o próprio Nabokov exerce uma crítica constante mesmo a si próprio, como podemos ver no seguinte diálogo (Nabokov não gostava de Dostoievski e era admirador de Flaubert):
“eu tenho gostos diferentes, hábitos diferentes; o seu Fet, por exemplo, não posso suportá-lo, e por outro lado sou um ardente admirador do autor de O Duplo e de Os Possessos, a quem você parece disposto a faltar ao… Há muito em si que não gosto, o seu estilo de São Petersburgo, a sua tara gaulesa, o seu neo-voltaireanismo e o fraco por Flaubert…” (p.342)
As fotografias de Nabokov recordam-me sempre Hitchcock mas também a personalidade que ambos pareciam possuir — de estarem sempre prontos a pregar uma partida a alguém!

Existe um enredo amoroso no livro a que Nabokov faz referência no prefácio, diga-se semi-explicativo da obra, mas é um romance imensamente subtil, ainda que venha dar, em parte, resposta ao título. A essência do livro assenta no processo descritivo do mundo aos olhos de um jovem autor russo, recentemente emigrado para Berlim, à procura de se afirmar enquanto escritor, e nesse sentido, apesar de Nabokov dizer nesse prefácio que não é Fyodor, é ele quem ali vemos representado. Mais uma aproximação a Proust, que descreve o mundo através dos olhos de Marcel sem nunca dar conta de qualquer ligação com este. Aliás, na primeira parte o tom é bastante próximo do livro autobiográfico de Nabokov, “Fala Memória”, que só viria a escrever anos mais tarde. E já agora, a meio do livro acontece algo no mínimo estranho, ou talvez não, que é uma descrição breve do enredo de “Lolita” (1955), seguida de uma referência do protagonista que me obrigou a parar e ir verificar datas, dizendo “É estranho, pareço lembrar-me dos meus trabalhos futuros”. Ou seja, o romance existia muitos anos antes na cabeça de Nabokov.

Para se poder entender este texto, já disse que conhecer os autores acima é relevante mas é também relevante lerem mais sobre a obra — a sua data de criação, a vida de Nabokov, a sua fuga da Rússia, a política do país — e para tal recomendo vivamente o livro de Yuri Leving “Keys to the Gift: A Guide to Vladimir Nabokov's Novel”. Leving criou um compêndio das múltiplas abordagens possíveis à interpretação mas não é preciso lerem tudo, basta que leiam as entradas que mais vos interessarem. As chaves apresentadas por Leving vão desde a criação e publicação da obra ao contexto histórico do país e da literatura, passando pela análise da estrutura — altamente detalhada nos seus constituintes de título, enredo, narrativa, cenário, personagens, tema — ou do estilo, forma e método, ou ainda da receção crítica nas diferentes épocas, e muito mais. Digo que não é preciso ler tudo, porque o texto de Nabokov está tão carregado de símbolos e subtextos que tentar compreender tudo está apenas ao alcance de um labor intenso, fazendo deste uma boa obra para a realização de trabalhos académicos no campo da literatura.

Deixo uma breve explicação estrutural. O livro começa com um capítulo de contextualização da vida de Fyodor em Berlim, que aos poucos nos vai dando conta da sua vida passada em São Petersburgo, dos amigos deixados e dos novos entretanto criados. Nesta primeira fase Fyodor só escreve poemas. No segundo capítulo Fyodor recorda o pai, que tal como o pai de Nabokov morreu quando este tinha cerca de 25 anos, o capítulo é intenso e belo, e segundo os críticos segue o estilo de Pushkin. No terceiro capítulo temos uma mudança de espaço e o encontro com a amada, a escrita é menos embelezada mas mais escorreita, o estilo mudou novamente porque agora é Gogol que Nabokov nos dá. O quarto é o tal capítulo banido, não segue propriamente Tchernichevski, já que a abordagem é profundamente satírica, mas é completamente diferente de tudo o que veio antes e virá no último. Por fim, voltamos ao nosso heróis Fyodor e a Zina, com o mundo a desejar recompor-se e a querer criar espaço para que o espírito do artista possa florescer.

O livro termina mais uma vez homenageando Proust, já que é dado a entender que o livro que lemos será o que Fyodor escreveu, e tal como em Proust cria-se uma urgência por voltar ao início e reiniciar a leitura, reler tudo com um novo olhar capaz de ler mais dentro das múltiplas camadas que protegem o sentir de Nabokov em “O Dom”, já que é inevitável sentirmos ao longo de toda a leitura que muito do que vamos lendo é-nos vedado, não só por falta de referências, mas também porque o próprio texto trabalha num modo auto-referencial muito joyciano.

Sobre a profundidade da análise da psicologia humana, algo caro a Nabokov, um estudioso da psicologia e muito crítico da fantochada de Freud, veja-se o seguinte descrito do que responde Fyodor a um potencial crítico do seu livro:
“Ao princípio queria escrever-lhe uma carta a agradecer, sabe, com uma referência comovente ao meu pouco mérito e assim por diante, mas depois pensei que dessa forma iria introduzir um odor humano intolerável no domínio da liberdade de opinião. E além disso, se escrevi um bom livro, era a mim que devia agradecer e não a si, tal como você deve agradecer a si próprio e não a mim por compreender o que é bom, não é verdade? Se nos pomos com vénias um ao outro, então, logo que um pare, o outro sentir-se-á magoado e ir-se-á embora vexado.” (p.339)
No final questiono-me se o título português é o melhor, mas por mais que procure, as interpretações são tantas que não é possível dizer muito, a não ser talvez que o título em inglês dá-se melhor às múltiplas leituras. No inglês (“The Gift”) pode significar Dom mas pode significar também Prenda, e se o nosso título atira imediatamente ao virtuosismo do escritor, o inglês permite ainda apontar para a homenagem à Literatura Russa, funcionando este livro como uma prenda de Nabokov em modo de despedida, já que este seria o seu último livro escrito em russo.

março 22, 2018

Livro, 'Wonderland' (2016)

"Wonderland" segue a fórmula criada por Steven Johnson nos seus livros anteriores, nomeadamente os mais recentes, dedicados ao historiar da ciência e criatividade — "The Invention of Air" (2008), "Where Good Ideas Come From" (2010) ou "How We Got to Now" (2014). Se retira o encanto de se ser surpreendido, não deixa de funcionar bem, as competências de Johnson enquanto contador de histórias são de grande excelência, ao que se acrescenta a quantidade de investigação e trabalho que coloca na feitura de cada livro que nos permite retirar muito da sua leitura. Neste novo livro Johnson deteve-se à volta de uma componente da atividade humana — o brincar — que continua a ser olhada como menor, procurando compreender o que nos conduz para essa atividade a partir de uma análise substancialmente rica sobre eventos imensamente relevantes da nossa história que não teriam acontecido sem a nossa vontade, desejo ou necessidade de brincar.


A edição em capa dura é muito boa, com bastantes ilustrações e papel de excelente qualidade.

Para abrir o livro Johnson apresenta a sua primeira grande história na qual demonstra a relevância do livro "The Book of Knowledge of Ingenious Mechanical Devices" escrito em 1206, e que serviu muitos anos depois na criação de tecnologias de suporte aos motores de combustão e barragens, e que não passava de um livro descritivo de brinquedos e sistemas de diversão para elite de Bagdade. A partir daqui, Johnson apresenta seis capítulos, cada um dedicado a uma área distinta — moda, música, paladar, ilusões, jogos, e espaços públicos — nos quais vai usar a mesma técnica de repescar eventos da nossa história para demonstrar o impacto e a relevância do brincar e do entretenimento na evolução e progresso da nossa civilização.

Páginas do livro "The Book of Knowledge of Ingenious Mechanical Devices" de 1206. Mais info.

Os tópicos e os eventos vão-se sucedendo, funcionando como pequenas aulas de história bem ilustradas que nos surpreendem e agarram o interesse do início ao fim. Desde o surgimento da cor púrpura, rara e apenas acessível à elite; ao surgimento e particularidade do cultivo da baunilha (necessitava de uma região particular onde cresciam um grupo particular de abelhas) ao impacto do algodão na moda e na criação das rotas de escravos; às especiarias que Vasco da Gama trouxe para adoçar o paladar da elite europeia, criando um tempo em que o seu peso valia mais do que o mesmo em ouro; passando pelo surgimento dos mercados aos centros comerciais; dos parques temáticos aos grandes parques naturais; das tavernas aos bares; dos teclados de música aos teclados dos nossos computadores; do Panorama ao Imax; do surgimento dos jogos com bolas de borracha na América do Sul à indústria mundial de borracha; e ainda do primeiro videojogo ao IBM Watson, ou ainda sobre o impacto do café nas nossas vidas:
“Caffeine likely played some role in the great expansion of intellectual and industrial activity that Europe witnessed in the eighteenth century, at the exact moment that coffee and tea became staples of the European diet, particularly in England and France. (The Europeans effectively swapped out a depressant — the default daytime beverage of alcohol — for a stimulant en masse, with predictable results.) Certainly caffeine was a crucial ingredient in easing the workforce of the first industrial towns into the regimented schedules of factory time.” (p.248)
Os exemplos são fortes e servem bem a causa de Johnson, o que não invalida que possamos levantar algumas questões. Nomeadamente porque aquilo que Johnson faz é pegar em casos específicos e conduzi-los para a teorização que pretende demonstrar. Cada um destes casos serviria outras justificações, já que são todos dotados de grande multivariância nas suas variáveis dependentes. nesse sentido, talvez o mais interessante surja mesmo no final do livro, quando Johnson se apresta a explicar porque partiu para todo este levantamento, porque diga-se não era preciso um livro inteiro para o fazer, um artigo científico daria conta do que ele pretendia dizer, e que era:
“The surge of dopamine that accompanies a novel event sends out a kind of internal alarm in your mind that says: Pay attention. Something interesting is happening here. Bone flutes, coffee, pepper, the Panorama, calico, Babbage’s dancer, dice games, the Bon Marché—beneath all the surface differences between these objects, one common characteristic unites them all: they were surprising when they first appeared. We were drawn to them compulsively because they offered novel experiences, tastes, textures, sounds. Illusions took our visual predictions about the spatial arrangement of objects in the world and confounded those expectations in startling ways. Spices offered exotic new flavors that our tongues had never experienced before. One of the defining characteristics of games—as opposed to, say, narrative—is precisely the fact that they turn out differently every time we play them; games are novelty machines. That’s what makes them fun (and sometimes addictive). All these forms of escape and amusement provided a “novelty bonus” to the brains that first experienced them.” (p.282)
Não colocando em dúvida esta conclusão, aliás defendendo-a de certo modo no meu trabalho à volta do brincar e jogar, tenho de dizer que o método seguido é muito pouco científico, e que existem outras abordagens que podiam servir melhor o objetivo. Por exemplo Dutton em "The Art Instinct" (2009) traça objetivos muito próximos, no caso aplicados à arte, mas fá-lo partindo da seleção sexual de Darwin construindo toda uma lógica dedutiva capaz de sustentar as suas conclusões. E repare-se que a interrogação de Johnson não é assim tão diferente, no sentido em que tanto a arte como o brincar adulto, não oferecem nada de útil ao ser-humano, ou seja são praticamente injustificáveis do ponto de vista evolucionário. E Johnson até apresenta uma explicação plausível — a necessidade assenta na curiosidade humana, na nossa infinita sede de novo — o problema é que Johnson limita-se a atribuir isso à produção de dopamina no nosso cérebro. Ora isso não chega, porque desde logo o facto da dopamina ser descarregada em cada um destes momentos só pode acontecer por razões evolucionárias. Ou seja, algo ocorreu que conduziu a que aqueles de nós que brincavam e sentiam prazer com isso (tinham descargas de dopamina) foram mais bem sucedidos que os outros que não o faziam. E se isso é fácil de ver nos dias de hoje num mundo industrializado a alta velocidade, que retribui mais e melhor aqueles que são mais criativos, nem sempre assim terá sido nas eras passadas. Ou talvez não, teremos nós sempre recompensado melhor quem era mais imaginativo e criativo?

março 18, 2018

Servidão Humana (1915)

“Servidão humana” foi publicado em 1915, sendo muito bem recebido pelo público e crítica, algo que se manteve até aos dias de hoje. Não raros são os leitores que lhe atribuem nota máxima, figurando mesmo em algumas listas de melhores obras ou de cânones clássicos. Aceitando a relevância e compreendendo o efeito que o livro produz, tenho no entanto algumas objeções a apontar, nada que faça desmerecer o destaque da obra, são mais questões que o texto evocou em mim e partilho para reflexão.  (Estas minhas objeções acabariam por, no decorrer da produção desta resenha, transformar-se em reconhecimento pela obra de Maugham.)

Acabei por ter de comprar a versão eBook da Asa, já que a edição em papel que tinha — coleção Mil Folhas do Público — apresenta um tamanho de letra completamente ilegível. Estamos a falar de uma edição que consegue colocar em 540 páginas o que as edições normais colocam em 700.

Começo pelo tom, já que ele é talvez um dos maiores catalisadores do impacto no sentimento dos leitores. Maugham, aqui o personagem Philip, apresenta-se na primeira pessoa, relatando a sua vida desde criança até à idade adulta, abrindo o seu coração a nós com total franqueza, mas acima de tudo explanando toda a sua vida por meio de um filtro de grande humildade. E se os eventos e as personagens são vistas pelos olhos humildes de Philip, que só vê pelo lado certo da moral, sem julgamento dos outros, apelando à razão para desculpar o erro e a maldade, a escrita de Maugham, simples, sem floreados ou recursos estilísticos, ainda que notando-se o labor de depuração da mesma, contribui em muito para que esse sentimento de franqueza e humildade impregne toda a nossa experiência de leitura.

Este tom não é alheio ao facto de “Servidão humana” ser um romance autobiográfico, ainda que nem tudo corresponda exatamente à realidade, mas na generalidade é um relato de uma vida. Maugham não tinha um pé boto mas gaguejava, e mais importante, os seus pais morreram quando ele era criança, tendo ido viver com o seu tio, tal como Philip. Maugham não foi para Paris para se tornar artista da pintura como Philip, mas tornou-se artista da escrita, o que ajuda a explicar as dúvidas que pairam sobre Philip durante todas as suas tentativas de se tornar um artista de primeira, e não um mero pintor mediano. Quanto à França, nasceu na embaixada inglesa em Paris, esteve na primeira grande guerra mundial em França ao serviço da Cruz Vermelha, e voltaria inúmeras vezes a França onde acabaria por morrer. Por outro lado, antes dessa viagem para Paris, Philip passa um ano na Alemanha, tal como Maugham passou na realidade.

Aliás, esta primeira parte até aos 20 anos é o melhor do livro para mim, não só porque nos dá a ver a criança que cresce sozinha, sem pais e num seminário, mas porque chegado à idade de tomar decisões verificamos que temos uma pessoa que mesmo não sabendo o que queria sabia o que não queria. Foi Philip (e Maugham) quem disse ao tio que não queria continua a estudar para padre e saiu do seminário por sua própria vontade, apesar de não haver muito dinheiro para outras carreiras alternativas. Foi Philip (e Maugham) quem foi um ano para Alemanha estudar literatura, e depois se cansou e regressou a casa. Depois foi (e Maugham) estudar para contabilista em Londres, e no final de um ano voltou a cansar-se e a retornar para casa. Seguido por mais 2 anos em Paris, a estudar pintura, desistindo também, e retornando a casa praticamente sem dinheiro. Voltando então por fim para Londres para se dedicar à escola de medicina, tendo-se formado já perto dos 30 anos. Se para alguns isto pode parecer um desperdício, para mim foi o melhor do relato, já que deu conta de alguém que incessantemente se procurou a si mesmo. Não existe nada mais difícil do que nos encontrarmos, tanto que considero essa a maior função da escola. E por falar nela, Maugham destrói completamente a mesma ao longo de todo o livro, não de modo frontal, mas subtilmente, basta ler nas entrelinhas, e analisar o seu percurso. Para fechar a comparação, Maugham não terminou o curso de medicina aos 30, mas aos 23, contudo depois do curso passou por várias profissões até decidir aceitar-se como escritor.

Passada esta primeira parte chegamos ao miolo do livro no qual me desliguei de Philip. Mas para entrar nessa discussão preciso de trazer um novo dado sobre Maugham que talvez introduza mais ambiguidade do que esclarecimento, mas é inevitável, e é o facto deste ser homossexual. Tal como Proust, viveram numa época em que não o poderiam assumir, e os seus escritos acabam por funcionar como trapaça dos seus verdadeiros sentires, nomeadamente nos romances que descrevem entre os seus alter-egos e as raparigas. Contudo julgo que Maugham sofreu mais com esta questão, pelo menos a julgar pelo modo como tudo isso surge aqui representado. Aliás, a ponto de alguns críticos lerem no pé boto de Philip, não a gaguez de Maugham mas a sua homossexualidade.

Assim o problema com que me defrontei a meio do livro surgiu na relação entre Philip e Mildred. Philip desenvolve uma paixão doentia por Mildred que não mais o largará para o resto da vida. Diga-se que é esta paixão que acaba dando força ao título da obra, e isso afastou-me também. A certa altura pensei mesmo que o livro não passava de mais um romance de cordel, relatos de paixões assolapadas, que se transformam no fim último das vidas dos seus personagens. E por isso cheguei a dizer no Goodreads que me apeteceu jogar o livro pela janela. Mas mantive a leitura e é verdade que o livro avança não estagna aí e é mesmo capaz de tornar-se ainda mais amargo que a parte inicial, ainda que termine classicamente bem.

Detenho-me um pouco mais em Mildred para explicar que o caso me ocupou algum tempo. A descrição da relação é de total masoquismo, já que Mildred não gosta de Philip, enquanto este se transforma no cãozinho que tudo faz para agradar à dona, mesmo após abandono crasso, volta uivando de felicidade. E vai mesmo ao ponto de magoar outras pessoas, foi aí que desliguei da personagem, por sentir que tinha ultrapassado a linha. No entanto, agora enquanto escrevo, parece-me ver outra realidade por detrás daquelas linhas. Atente-se na descrição corporal que Maugham nos faz de Mildred:
“O corpo dela era tão magro que era quase possível ver-lhe o esqueleto. O peito era liso como o de um rapaz. A boca, de lábios finos e sem cor, era feia e a pele tinha um leve tom esverdeado.”
Ou seja, Maugham não pode estar aqui a falar de uma mulher, ele está a falar de um homem. Por outro lado, atente-se numa outra declaração de Maugham ao seu sobrinho:
“Eu tentei persuadir-me a mim mesmo que era três quartos normal e apenas um quarto homossexual, quando afinal era exactamente o contrário.” W. Somerset Maugham, (Maugham, Robin 1970)
Ou seja, não será Mildred em vez da sua grande paixão (que não se reconhece na vida de Maugham) antes uma representação dos homens da sua vida, aqueles por quem se apaixonou, acreditando que não devia? É que existe um problema claro na descrição de Mildred que não vi ainda ser discutido que o facto de ela não apresentar um único traço positivo. Mesmo o severo tio, acaba por mostrar o seu lado positivo. Em Mildred tudo é mau, desde a aparência ao comportamento, pela mentira, engano e traição constantes, ao desprezo pela tia e até ao desprezo pela filha. Tudo é tão terrível e no entanto Philip não consegue deixar de olhar para ela como algo que deseja. Ou seja, até que ponto Midlred representa a sua angústia por preferir homens a mulheres, tendo sido educado para ver nessa preferência o pecado, o mal?

Como tudo está representado de modo a dar sentido aos sentires do autor mas também de modo a ser aceite pela sociedade, mascarando para o efeito os seus mais verdadeiros desejos, torna-se difícil saber o que exatamente queria dizer Maugham. Por outro lado, permite que cada pessoa veja nos eventos e conflitos aquilo que mais se pareça com a sua própria vida. Aliás, é isso que muitos dos leitores referem, o facto do livro passar muito rente aos seus quotidianos. Repare-se como o título é, segundo Maugham, baseado na seguinte frase de Espinosa — “Chamo servidão à impotência do ser humano para governar ou restringir (as suas) emoções”, e como ela pode dar conta de tantos dos problemas que assolam cada um de nós.


[*** Spoilers ***]

Confesso que na leitura procurei compreender o masoquismo de Philip/Maugham na base da falta do afeto dos pais que partiram antes do tempo, do tio austero incapaz da menor emoção, da deficiência do pé/gaguez, mas nada disso me pareceu suficiente, e menos ainda oferecer o direito de magoar outras pessoas. No entanto, agora que leio o texto e as personagens de um modo distinto, tudo se encaixa diferentemente. A personagem Norah, que se tinha apaixonado por Philip sendo largada sem mais, apenas porque Mildred, abandonada por um outro com uma gravidez indesejada, resolve voltar para Philip, foi um baque enorme para mim, algo completamente inaceitável na personagem. Uma pessoa dotada de razão, e Philip é alguém profundamente racional, nunca cederia, não esqueçamos que toda a sua humildade e incapacidade de magoar quem quer que fosse. Contudo, agora o que leio é que Norah aceitou a natureza de Philip/Maugham, e não era para outra mulher que ele voltava, ele era reclamado pela sua natureza homossexual, e contra essa, Norah uma personagem de grande elevação, sabia que não adiantaria lutar, e por isso sai de cena sem mais.

Estranho como não consegui compreender isto na leitura, e como isto não surge nas discussões mais genéricas sobre o livro (acredito que existam recensões académicas a aprofundar tudo isto). Vi tantas pessoas identificarem-se com algo com o qual não me conseguia propriamente identificar, a paixão avassaladora que tudo leva na sua frente, quando afinal não era a paixão, era algo mais profundo, ainda que isto não nos distancie do velho problema da luta entre a emoção e a razão. Porque diga-se Maugham terá passado grande parte da vida nas lutas desse dualismo. Não nos esqueçamos que casou com uma mulher e teve uma filha. Ele acreditou que a homosexualidade era algo que podia controlar, e graças à sua humildade deve ter conseguido sujeitar-se a levar a vida que todos à sua volta levavam. Mas a natureza humana não é mera paixão, o fogo que arde sem se ver é efémero, mas a natureza da homossexualidade não é paixão, mera emoção, como Maugham tentou definir a partir de Espinosa, é algo muito mais profundo, e este livro acaba a mostrar isso mesmo.

Terminando, “Servidão Humana” não é aquilo que muitos nos venderam, de ser um livro sobre a razão de viver, nem sequer é sobre aquilo que Maugham disse, de ser um compêndio das filosofias que tinha construído até aí, ou talvez seja, mas agora vejo que é muito mais do que isso, é um grito a partir do seu sentir mais íntimo. Repare-se como até mesmo a citação constante do evolucionismo de Darwin que serve para definir a tal ausência de fundamento da vida, deve ser lido antes como a refutação do cristianismo que penaliza o desejo e criminaliza a homossexualidade. E mais ainda, como o Darwinismo retira das costas de Maugham a culpa de ter nascido assim, justificando a sua incapacidade de torcer a sua natureza para se fazer entrar dentro dos preceitos morais da religião.

"Laocoön" (1604-1614) de El Greco. Greco coloca Laocoon, o troiano que tentou avisar Tróia daquilo que se escondia no Cavalo dos gregos, com Toledo no fundo. 

Claro que tudo isto acaba passando e Maugham porque não podia ser frontal, se o tivesse sido provavelmente este livro não teria sido um romance, e certamente não um romance de enorme sucesso, e acaba criando uma fachada de vitória e júbilo no final, com direito a casal satisfeito com o mundo “tal como ele devia ser”. Julgo que este final que no livro serve para dar conta de um Philip que triunfou na vida e conseguiu atingir o equilíbrio esperado dele, acaba por servir para dar conta do ambíguo sentimento de Maugham sobre si próprio. Atentemos em dois detalhes: Sally, a namorada final, não reage de forma muito natural, parecendo mais uma personagem de cera, dotada de todas as qualidades morais que a sociedade prezava, mas estranhamente distante de todos e mesmo de Philip; e segundo, Philip faz uma escolha final, resolve ficar com Sally por receio de a ter engravidado, já que a sua vontade era viajar para Toledo para conhecer as pegadas de El Greco, um dos artistas mais individuais de sempre, e que alguns historiadores etiquetam como homosexual. No fundo, Maugham está aqui a dar conta da sua ambiguidade, já que numa fase inicial da sua vida namorou com raparigas, e depois casou com uma mulher, e só a partir do meio da sua vida passou então a partilhar, abertamente, a intimidade exclusivamente com homens.

[*** Fim de Spoilers ***]


Cheguei a pensar retirar uma estrela pelo que Philip tinha feito, mas depois de ter escrito este texto, não consigo. A escrita de Maugham é boa, não deslumbra com virtuosismo, mas mantêm-nos presos ao livro todo o tempo ao longo da enorme quantidade de páginas que perfazem o mesmo, o que dá bem conta da sua qualidade. Por outro lado, é um relato que marca a nossa história, vai ao fundo do âmago daquilo que sente quem tem de passar todo o tempo escondido por detrás de uma fachada a ponto de já não conseguir distinguir essa fachada de si mesmo.

março 10, 2018

Conhecimento: abstraído, individualizado e emocionalizado

A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.


Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.” 
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.” 
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”

Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.


A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”

março 03, 2018

Journal of Digital Media & Interaction

Não faltam revistas científicas no mundo, por isso de todas as vezes que pensei criar uma nova, particularmente ao longo dos últimos cinco anos, questionei-me sempre se valeria a pena, se era mesmo necessária, se não existiriam já espaços suficientes onde publicar toda a investigação que se vai fazendo nas áreas em que tenho trabalhado. Porém, desta vez esse projeto avançou, motivado pelo facto de ter mudado de instituição no final do ano passado, e pelo facto do grupo que vim encontrar, apresentar uma especificidade a nível nacional que mesmo no campo internacional encontra ainda poucos espelhos. Claro que para que um projeto destes avançasse no terreno, dada a sua exigência, seria preciso existirem mais pessoas com a mesma vontade, um centro de investigação interessado no mesmo — Digimedia — mas em particular uma colega, a Lídia Oliveira, que desde a primeira hora se mostrou totalmente disponível para levarmos este projeto por diante. Assim, a nova revista científica internacional que agora torno pública — Journal of Digital Media & Interaction — não acaba aqui, antes começa. Não faltam ideias a mim e à Lídia para o futuro da mesma, veremos até onde nos conduz, ou até onde a conseguiremos nós conduzir.


Falei da especificidade científica e por isso devo aqui explicitar a mesma, ainda que esta se encontre há muito inscrita na matriz científica da Universidade de Aveiro como área de "Ciências e Tecnologias da Comunicação", designação académica daquilo que foi em tempos a Multimédia, depois os Novos Media, seguido dos Media Interativos e que hoje tende para a designação de Media Digitais. O Scope da revista contribui para elucidar essa especificidade, definindo a abordagem como transdisciplinar, dadas as exigências que o campo apresenta. Não se trata apenas de trazer para o seio da discussão diferentes colegas, munidos de diferentes abordagens científicas, mas de cada um de nós laborar a construção de conhecimento baseado em teoria e empiria proveniente de diferentes áreas. No caso, o foco nasce da junção de duas áreas por força da evolução tecnológica: de um lado os Media, enquanto mediadores de comunicação e informação; e do outro o Design, enquanto construtor da interação entre os media e os utilizadores. Para o efeito precisamos assim de convocar para além dos Estudos dos Media e do Design de Interação, a Comunicação, a Interação Humano-Computador, os Estudos Culturais, o Design, a Psicologia, a Sociologia e as Ciências da Informação. Como facilmente se poderá entender, uma abordagem deste tipo abre um território infindável de domínios, que pode ir desde os videojogos às aplicações nos campos da saúde e educação, passando pela televisão interativa, a cibercultura, a computação física, ou o design inclusivo. Neste sentido, as áreas de interesse listadas na revista, representam apenas a ponta do icebergue daquilo que esperamos poder vir a discutir nas páginas desta nova revista.

Como uma revista não existe per se, menos ainda uma revista científica, interessa aqui dar conta do mais importante deste anúncio, e que é a nossa primeira Chamada de Artigos estar aberta até ao dia 30 de Abril de 2018. Quem submeter agora, habilita-se a publicar naquele que servirá de nº1 a esta revista. Para já ainda não temos ISSN, porque este só é atribuído depois de publicado um primeiro número, por se tratar de uma publicação periódica. Relativamente à indexação, todos os que sintam alguma reticência, posso assegurar-vos que o nosso objetivo, tanto meu como da Lídia, é indexar a revista nos principais serviços internacionais no mais curto espaço de tempo, tendo perfeita noção do trabalho que isso implica. Aliás, nesse mesmo sentido elegemos o Inglês como língua principal de trabalho da revista, mantendo no entanto aberta a possibilidade de publicar artigos em português, francês e espanhol.

Peço-vos então que partilhem o CFP e deem a conhecer o Journal of Digital Media & Interaction, e claro, submetam os vossos artigos.

fevereiro 28, 2018

A Educação Sentimental (1869)

Tinha ficado algo apreensivo aquando da minha resenha de “Madame Bovary” (1856), mas aceitei que o problema fosse meu. Assumi que a obra tinha surgido numa fase embrionária do realismo na literatura, que tinha obrigado Flaubert a inovar e a abrir caminhos sem pauta para se orientar, e que por isso teria de ser condescendente por estar a quase dois séculos de distância. Mas ao chegar ao final de “A Educação Sentimental”, esta minha abordagem já não serve, porque passados 15 anos, Flaubert não alterou em nada os problemas que eu tinha sentido face a "Madame Bovary".


Só em parte consigo entender que Proust e Kafka se tenham deliciado com Flaubert. Sim a escrita tem momentos muito bons, existe uma organização frásica muito boa, capaz de gerar bom ritmo, de adocicar a leitura, a ponto de fazer toda a experiência fluir muito naturalmente. Por outro lado, e agora, no final destes dois livros, percebo que Flaubert terá sido um indivíduo com problemas obsessivos, centrado sobre si e sobre a sua arte, incapaz de lidar com o social. E é por isso que apesar de eu não ver proximidade temática, entre Proust e Kafka com Flaubert, eles por sentirem problemas ao nível dos de Flaubert, terão lido nas entrelinhas. Mas fosse apenas este o meu problema com a obra, e aceitaria Flaubert sem problemas, o problema é que ao contrário deles, Flaubert não foi capaz de criar uma obra autónoma.

Ou seja, “Madame Bovary” e “Educação Sentimental”, seguem ambos a mesma formula, com uma variação apenas, num temos uma mulher, no outro um homem. Isto parece ridículo, mas foi exatamente isto que senti no final dos dois livros. **** SPOILER **** Temos dois personagens, Emma e Frederic, ambos apenas centrados sobre si, nos seus amores, totalmente insensíveis à restante sociedade, desde a própria família, aos amigos, até mesmo aos próprios filhos. E se já me tinha chocado com o desenho da relação entre Emma e a sua filha Berthe, Frederic vai muito mais longe, roçando o desumano. Ter um filho e não querer saber, podemos até aceitar que se trata de alguém apenas focado em si, mas ver o filho morrer nos braços, e estar apenas preocupado com o facto da amada ir partir para outra cidade, é tão aberrante que não tenho palavras para descrever **** FIM ***.

Acabei por ter de ir confirmar que Flaubert nunca casou, nem nunca teve filhos, e para além disso, afirmava ser "antinatalista", já que considerava não querer "transmitir a ninguém os agravos e as desgraças da existência”. Lido assim, parece profundo, apesar de ser aquilo que quase todas as pessoas que conheço, e que não querem ter filhos, dizem. O problema, é que para alguém supostamente tão reflexivo sobre a existência humana, escreveu dois livros, os que li, de uma superficialidade atroz. Tanto Emma como Fréderic vivem as suas vidas sem pensar em absolutamente mais nada nem ninguém, a não ser nos seus amores, nos seus desejos, na sua própria felicidade. Como se para viver bastasse apenas amar alguém, isto claro desde que caísse na conta uma renda mensal para não ter que trabalhar e poder viver apenas a pensar no tal amor.

Flaubert criticou "Os Miseráveis" (1862) de Victor Hugo por ser um romance condescendente para com todas as classes da sociedade, pois fez bem, já que acabou a fazer o seu oposto. Aliás, quem tinha razão era mesmo Henry James, a quem Flaubert não conseguiu enganar:
"Aqui, a forma e o método são os mesmos que em "Madame Bovary"; a competência estudada, a ciência, e a acumulação de material, são ainda mais impressionantes; mas o livro, esse numa única palavra, está morto." (Henry James)
Como se isto não bastasse, o livro apresenta vários problemas de organização da ação e dos personagens, que fazem com que não poucas vezes as cenas não apresentem ligação entre si, ou não seja possível compreender totalmente o que o autor pretende ao colocar os personagens a dizerem certas coisas. Isto é mais um problema de edição, mas acredito que Flaubert com todas as suas idiossincrasias, tenha impedido que esse trabalho fosse feito sem o seu total controlo, e por isso o livro que temos é o que ele terá permitido que tivéssemos.

Dito tudo isto. Não dou por perdido o tempo que gastei a ler “Madame Bovary”, já “A Educação Sentimental” dispensava.

fevereiro 24, 2018

Sobre o ensino da Arte

Elkins, muito provavelmente, sofria do chamado "síndrome do impostor" quando escreveu o livro "Why Art Cannot Be Taught" (2001), diagnóstico meu. Ou seja, sentia-se incapaz de interiorizar os seus feitos enquanto professor, incapaz de dar conta dos resultados do seu trabalho com os seus alunos, daí que a frustração tenha resultado neste livro. E digo isto no passado, porque passando pelo seu site, percebemos que, em parte, mudou depois de opinião. Talvez o facto de o livro não ter sido muito bem recebido na altura, por exemplo a sua própria Universidade (a School of the Art Institute of Chicago) recusou-se a publicar o manuscrito, o tenha levado a refletir sobre o que queria realmente dizer quando o escreveu, já que o livro espremido, não diz nada.


Não posso dizer que o livro não vale sequer o seu custo, vale, os dois primeiros capítulos em que Elkins discorre sobre a história das escolas de artes ao longo dos últimos séculos, e discute as questões em redor dos currículos nucleares, são muito interessantes, ocupando quase toda a primeira metade do livro. O problema surge, na segunda parte, quando Elkins olha para o presente daquilo em que se tornou a escola superior de artes, tecendo considerações sobre a sua atual inconsequência, manifestando-se totalmente incapaz de propor qualquer alteração. Estando tudo mal, segundo Elkins, não há nada que possamos fazer, resta-nos continuar a fazer de conta que estamos a ensinar!
“The idea of teaching art is irreparably irrational. We do not teach because we do not know when or how we teach.” (p.189)
Ora existem aqui vários problemas de base: a confusão, propositada ou não, entre processos técnicos e criatividade; a ausência de conhecimento sobre os processos cognitivos; e a ausência de conhecimento sobre os processos sociais criativos.

O primeiro ponto é talvez o mais relevante já que está na base desde logo do próprio título. Se olharmos a arte do ponto de vista do resultado, enquanto produtora de artefactos expressivos e originais, então claramente não é possível ensinar arte a ninguém, desde logo porque estes resultados, enquanto tais, não dependem apenas dos criadores, mas também da interpretação dos recetores dos mesmos. Por exemplo, o mercado da arte que todos conhecemos, e que vende obras por valores incalculáveis não se regula pela avaliação dos objetos em si, mas antes pela avaliação de um conjunto de críticos/colecionadores que atribuem valor ou não a uma obra. Quando muito, poderíamos ensinar os artistas a comunicar ideias de modo a garantir o interesse desses colecionadores, seguindo as mesmas lógicas que utilizamos no ensino da criação de entretenimento ou de publicidade. Mas se queremos ensiná-los a ser diferentes, a quebrar convenções, a subverter o status quo, aí entramos num território bastante mais complexo, para o qual podemos, de modo metafórico, abrir janelas, mas não podemos apresentar o caminho, já que ele é individual e construído no tempo conjuntamente com a sociedade.

Mas o ensino de arte não tem de ser isto, apesar de ter sido neste sentido que convergiu ao longo do último século, nomeadamente depois da revolução modernista, como fica evidenciado na apresentação das várias escolas de ensino de artes. Compreendendo quem ainda defende esta visão da, e consequente ensino da arte, tenho dúvidas em aceitá-la, exatamente por aquilo que fica demonstrado neste livro de Elkins, já que conduz o ensino a um beco sem saída, como ilustra Clowes abaixo:

"If you must go to art school" (1991), in Eightball 7, de Daniel Clowe. (Elkins, 2001:87)

Neste sentido, a criação artística é um processo, como qualquer outro processo aplicado, que carece de conhecimento especializado, e é esse conhecimento, as técnicas, que o ensino pode ensinar. Com isto não se defende aqui um ensino profissionalizante a um nível superior, mas defende-se que apenas com muito conhecimento e domínio técnico se pode chegar à superação e consequente subversão. Como diz Saramago:
“A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe-lhe ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer. (…) Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escrita será clara. (…) A escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.” 
José Saramago (2003)
As regras são a técnica que se pode ensinar, mas também o ouvir e o pensar, o crescer enquanto indivíduo consciente do mundo que o rodeia. E é no mínimo caricato, para não dizer algo pior, que Elkins tente comparações entre a Arte e a Física, e venha falar de testes que dão conta do que efetivamente o aluno aprendeu, e não olhe para as outras artes mesmo ao lado das Visuais, tais como a Música ou a Dança. Sendo a avaliação nesses ramos tão subjetiva como é em qualquer outra arte, não deixa de conter um enorme espaço para a objetividade, que é assegurada pelo corpo de praticantes da mesma. A distinção entre um performer medíocre e um bom é discernível com critérios objetivos, claro que já não poderemos dizer o mesmo, entre um muito bom e um excelente. Mas aqui eu questiono, e onde no mundo em que vivemos, é que isso é possível de ser distinguido? Mesmo no campo da ciência, quando submeto uma proposta de investigação para financiamento, a avaliação que é realizada sobre a mesma, desde que ela atinja os tais parâmetros mínimos objetivos de qualidade, é profundamente subjectiva.

Mas isto é confundir a realidade com o ensino. A educação não foi inventada para criar seres profissionais, prontos a debitar aquilo que as sociedades necessitam. A educação existe para acelerar o processo de adaptação às realidades, e acima de tudo para garantir as mesmas hipóteses, em termos cognitivos a todos, mas é apenas isso. Depois cabe a cada indivíduo encontrar-se, definir-se, e destacar-se. Por isso não cabe a um curso superior criar um artista, tanto como não cabe criar um médico ou um advogado, que só podem afirmar sê-los, depois de cumprirem uma série de requisitos no mundo real, exterior à rede de segurança proporcionada pela escola.

Daí que afirmar, “It does not make sense to try to understand how art is taught.” (p.190) é não só ridículo, mas acima de tudo uma acomodação àquilo que se tem, mesmo não concordando com o que se tem. Desde logo não podia ser dado exemplo pior a um aluno, de artes ou qualquer outra área, do que dizer-lhe que “não vale a pena”. Por outro lado, é a demonstração de que Elkins nunca parou um minuto para estudar matérias fora do seu próprio domínio. Porque não faltam trabalhos no domínio da Educação, mas mesmo que não quisesse entrar por aí, se tivesse pelo menos tentado compreender os seres-humanos com quem tem de lidar todos os dias, ou seja a psicologia dos seus alunos, teria estudado um pouco sobre ciência cognitiva, procurando perceber de que é feita a motivação humana, assim como as diferenças entre talento, inspiração e trabalho, e teria conseguido ver um mundo completamente diferente. No fundo, em vez de ter passado todo o tempo a questionar a arte pela arte, devia ter parado para ouvir, ler e questionar a realidade que o rodeia.

fevereiro 21, 2018

Divina Comédia (1320)

Apenas 50 anos após a sua morte, Florença que tinha exilado Dante (1265-1321), resolveu reganhar consciência e como tributo criar o Departamento de Estudos da Divina Comédia, oferecendo o cargo de diretor a Giovanni Boccaccio, poeta que tinha já escrito uma biografia sobre Dante (1357). Depois disso nada mais seria igual, a influência de Dante iria estender-se no espaço e no tempo, influenciando criações em todos os media e artes, como nenhuma outra obra, talvez rivalizada apenas pela própria Bíblia. Dante foi perseguido em vida, mas imortalizado na sua morte.

Tradução de Vasco Graça Moura na Quetzal; tradução de Hernani Donato da Cultrix; e o livro com todas as pranchas criadas por Gustave Doré.

Não é hoje muito relevante compreender os problemas de Dante em Florença já que as razões se prenderam com os clãs familiares da época e a relação entre a igreja e os governos. Mas é importante compreender que a Divina Comédia, escrito em exílio, funciona como uma espécie de resposta a todos aqueles que o perseguiram, uma vez que vão sendo amiúde distribuídos pela jornada encetada, do Inferno ao Paraíso, passando pelo Purgatório. Talvez não tenha sido fácil para muitos, ler no texto, escrito na língua comum, o Toscano e que viria a servir de base ao Italiano de hoje, acessível a toda a população letrada e não apenas a elite, os pecados e os potenciais castigos esperados. Num tempo, ainda muito dominado pela obscuridade, ver plasmado num conjunto de linhas a descrição daquilo que os esperava após a morte, terá tido o seu efeito. Mas talvez mais interessante, é que esse efeito, talvez pensado por Dante, foi muito para além dos seus alvos e tempo, nos séculos que se sucederam, mesmo com o Renascentismo e depois o Iluminismo, Dante continuou a pairar sobre nós, e isso é em parte aquilo que mais me intrigou ao longo de toda a leitura, e que procurei tentar perceber, tanto a partir do texto como de leituras adicionais.

"Os círculos do Inferno de Dante" (1481) de Sandro Botticelli 

"Inferno" (1826) por William Blake

Mas antes de entrar nessa discussão, quero dar conta de forma muito sucinta do impacto que já referi acima, mas referindo alguns exemplos. Assim a originalmente intitulada “Comedia”, seria rebatizada de “Divina Comédia” por Boccaccio, especula-se que muito por influência da terceira parte, o Paraíso, de que falarei a seguir. No século seguinte, nada menos que Sandro Botticelli (1481) desenvolverá o primeiro grande conjunto de ilustrações para a “Divina Comédia”. Depois, Geoffrey Chaucer, que tal como Dante, se tornaria pai de uma das línguas de hoje, no caso o Inglês, com a sua obra “The Canterbury Tales” (1483), não só traduziria como reconheceria nas suas obras a influência de Dante. Depois em 1667 seria a vez de John Milton confrontar diretamente a obra a de Dante com o seu grande poema épico “Paraíso Perdido”. Balzac também não se coibiria de batizar a sua série de romances sociais como “A Comédia Humana” (1850), numa clara referência à Comédia. Depois William Blake faria mais um conjunto de ilustrações para a Divina Comédia (1826), mas a sua morte impossibilitaria terminar o trabalho iniciado, contudo esse mesmo seria retomado por Gustave Doré (1861) que viria a oferecer à obra uma ilustração por canto, e de tal forma relevante, que nos dias de hoje se torna quase indissociável da Comédia. Ainda no século XIX a música faria grandes homenagens, com "A Sinfonia de Dante" por Liszt (1856) e "Francesca da Rimini" de Tchaikovsky (1876). Já no século XX, Salvador Dali (1950) não poderia passar sem realizar uma tentativa de ilustrar a Comédia, e por fim não poderia deixar de citar, a fantástica escultura a “Porta do Inferno” por Auguste Rodin (1917).

“Porta do Inferno” (1917) de Auguste Rodin

Contudo o reconhecimento não se limita às artes. Fora delas, na própria ciência, Dante foi reconhecido, e pode-se dizer mesmo que pode ter servido de motor a algumas das principais ideias da Renascença italiana, existindo quem associe o pensamento de Galileu Galilei à Divina Comédia. A verdade é que lendo a obra, por várias vezes nos deparamos com ideias sobre a realidade baseadas em ciência e não mero senso comum, desde a Terra esférica, à força da gravidade, passando pela astronomia, e até o próprio método experimental. Isto demonstra várias coisas, primeiro que a idade média, ainda que aqui tardia, não foi as trevas que durante muitos anos se venderam e que tiveram de esperar pela Renascença para voltar à vida. Por outro lado, Dante cita abundantemente Aristoteles e vários outros pensadores gregos e romanos, ou seja a sua formação estava muito longe de se encerrar por um véu teológico, como por vezes a obra parece querer fazer crer.

Dante Alighieri

Aliás, tenho de dizer que talvez aquilo que mais me impressionou na leitura de Dante, foi a avidez com que referenciava autores e criadores, das artes, ciência e teologia. Aliás, veja-se desde logo o facto de Dante iniciar a sua jornada pelo Inferno pela mão de ninguém menos do que o poeta do grande épico da Roma Antiga, Virgilio, com quem vai dialogando trazendo para dentro da sua obra factos da história de Roma. Mas são inúmeras as citações, e por isso a certa altura questionava-me sobre algo que já me fui questionando nesta minha senda pela leitura dos clássicos, e que tem que ver com a proximidade entre o discurso académico e o discurso das obras clássicas imortais. São raras as obras que perduraram, que não referenciaram quem veio antes de si. Se numa primeira impressão podemos ficar com aquela ideia do senso comum, de que o autor está apenas a dar espaço à vaidade de mostrar que conhece, na verdade é muito mais do que isso, sendo homenagem, é mais, porque é antes o reconhecimento do conhecimento e civilização até ali construída. É identificação com as ideias e mundo dos que nos precederam, para a partir deles ir mais longe. O conhecimento só se eleva assente nos ombros daqueles que nos precederam. É por isso que é importante estudá-los, lê-los, conhecê-los. Não se cria no vazio, ou cria, mas nunca teríamos chegado até ao ponto civilizacional em que nos encontramos, se cada um de nós, tivesse sempre reiniciado o processo do zero.

Por isso não admira ler Cervantes, Shakespeare, ou Virgilio, ou ainda Marco Aurélio e Montaigne, ou mais recentemente Dostoiévski, Tolstoi, Vitor Hugo, Emile Zola, Proust, Mann, ou Pessoa, e ver como eles não têm pudor em homenagear quem serviu para que se elevassem acima do que existia. E por isso também não admira que Dante seja referenciado por T.S. Eliot, E.M. Forster, Jorge Luis Borges, Primo Levi, Samuel Beckett, Bret Easton Ellis, David Fincher, Stephen King ou Dan Brown. Dante tornou-se referência obrigatória para quem precisa de referir o lugar do inferno, e por isso o seu nome viria a assumir a forma de adjetivo, para qualificar tudo aquilo que ao inferno diz respeito.

"Purgatório" (1960's) de Salvador Dali

"Se7en" (1995) de David Fincher

Esta referência ao inferno por Dante, ou melhor, a omnipresença de Dante nas referências ao inferno, fizeram com que a certa altura acreditasse que Dante poderia ter sido o grande responsável pela criação de tal figura, ou pelo menos no instigador das imagens horrendas que o inferno possui no imaginário ocidental, mas não é assim. Dante baseia-se no conhecimento da altura, existiam vários relatos teológicos que se apresentavam como descrições factuais daquilo que seria o inferno, o purgatório e o paraíso. Aliás, nas minhas pesquisas encontrei mesmo uma visualização desse mesmo inferno, que não dista muito daquilo que Dante nos viria a dar, criada para uma enciclopédia medieval, a “Hortus Deliciarum” (1195) (ver imagem abaixo), por uma mulher, a abadessa Herrad de Landsberg. Já não surpreende ver mulheres surgirem na frente de muitos homens, tem sido já neste século que temos vindo a descobrir a história de grandes mulheres deixadas na obscuridade — ex. Ada Lovelace, Hedy Lamarr ou Katherine Johnson. Neste caso Landsberg vivia com a sua ordem enclausurada num convento, usando esta enciclopédia para o ensino.

"Inferno" (1195) por Herrad de Landsberg

Voltando ao texto, mas antes ainda primeiro ao processo de leitura, para poder dar conta da experiência da obra. Comecei pela tradução de Vasco Graça Moura, mas ao fim de poucas páginas parei, não pela dificuldade de leitura apenas, mas por ter percebido que não se pode ler Dante sem ler primeiro um conjunto de outras obras. Dante viaja ao inferno pela mão de Virgilio, desse modo é obrigatório ler antes a “Eneida”, a obra maior de Virgilio. Por outro lado, a Eneida é um relato baseado no pós-guerra de Tróia, de modo que se torna obrigatório ler antes também a "Ilíada" e a "Odisseia". Seria interessante ler ainda algumas tragédias gregas de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, já que elas acrescentam bastante à mitologia de Homero, mas não o fiz, e como já tinha lida a "Odisseia", li então a "Ilíada" e "Eneida", e voltei a Dante. Ao chegar de novo à Comédia, fui confrontado com o facto de ter lido a “Eneida” na tradução portuguesa mais comum, dos colegas da Faculdade de Letras de Lisboa, e que está em prosa. Resolvi então procurar traduções em prosa da Comédia, já que as em verso que tinha visto eram bastante inferiores à de Moura. Foi assim que encontrei a belíssima tradução do escritor brasileiro, Hernâni Donato, para a Cultrix, de 1979, que acabou por me abrir as portas a Dante de uma forma que não encontrei em mais nenhuma outra tradução.

Em termos académicos, a tradução de Moura é irrepreensível, e para quem quiser estudar a obra em profundidade, não existe alternativa, até porque a obra vem no formato bilingue, com o texto original lado a lado. Mas para quem quiser entrar no mundo de Dante, experimentar a sua imaginação, Donato faz um belíssimo trabalho. Moura faz uma tradução excepcional, totalmente colada ao original, usando inclusive português arcaico, e acima de tudo, mantendo a “terça rima” (ABA, BCB, CDC, DED) de Dante. Ora o problema, para além do vocabulário arcaico, é que a rima usada por Dante acabou por condicionar, se assim quisermos dizer, o conteúdo em virtude da forma. Ou seja, a economia de texto exigida pelos versos, aliada ao facto de Dante estar a apontar o dedo a figuras conhecidas, conduziu Dante a construir um texto que vai mascarando ideias, nomeadamente pelo minimalismo, que deixa de fora da compreensão quem não detenha uma base de contexto sobre a obra e o autor. E é essa contextualização que Donato faz muito bem na conversão para prosa, não apenas com notas de rodapé, mas na reconstrução dos sentidos do texto. Por outro lado, a versão de Moura consegue um tom muito mais próximo de Dante, algo a que Donato claramente foge. Na leitura de Moura, sentimos a rispidez, o cru e vulgaridade que Dante quis denotar pelo uso da língua comum, o italiano. Já Donato, acaba por embelezar bastante o texto, mantendo as três partes sempre num mesmo tom, prazeiroso e muito acolhedor, mas igual. Ainda para ajudar à leitura, comprei também o livro das ilustrações de Gustave Doré, que fui usando apenas quando terminava cada livro, para poder confrontar o que tinha lido e sentido, com as visualizações proporcionadas por Doré que de certo modo acabam funcionando como sínteses de cada canto.

Dito tudo isto, de que fala afinal a Divina Comédia? Julgo que isso não tem nada de novo, é sobejamente conhecido, mas aqui fica. A obra está dividia em três livros, com 33 cantos cada um, à exceção do primeiro que tem mais um que serve de introdução, perfazendo os 100 cantos. O primeiro livro retrata o Inferno, e é o mais conhecido, assim como o mais popular, tanto para quem lê, como para quem acusa a influência de Dante. O relato é muito direto, vamos pela mão de Dante, que pela sua vez vai pela mão de Virgilio, ao longo dos vários círculos que constituem o Inferno, e no qual vamos encontrando as figuras mais macabras, sendo que Dante não se coíbe de listar quem da sua realidade ali vai encontrando. Dante não morreu, a sua descida ao Inferno, deve-se ao facto de ir atrás da sua amada, Beatrice, que morreu. Por isso Dante é um ser-vivo que se passeia pelo mundo dos mortos gerando muita interrogação e má-disposição nalguns dos membros desse mundo que vai encontrando.

"Beata Beatrix" (1870) de Dante Gabriel Rossetti

No segundo livro descemos/subimos (pela inversão esférica do mundo) ao Purgatório e é onde vamos encontrar um novo conjunto de personagens também reais, que aguardam pela sua conversão ou purga dos pecados. É neste livro que Dante ilustra os 7 Pecados Capitais, ou vícios — Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Inveja, Preguiça e Soberba — que estão dispersos por cada círculo do Purgatório. Este livro é menos envolvente que o primeiro, porque menos claro no que pretende dizer, até porque os personagens estão em trânsito, e existe muita indefinição.

No último livro, chegamos ao Paraíso, o fim da viagem, agora já não com Virgilio, mas pela mão de Beatrice que nos leva à presença de algumas das figuras mais relevantes de Roma e da história cristã —São Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, Carlos Magno, Trajano, Constantino, alguns apóstolos, Adão — até ao estágio final do encontro com Deus. Por isso dizia acima, que o acrescento de Divina ao Comédia, por Bocaccio fazia todo o sentido. Neste livro sentimos o aspeto teológico muito presente, mas ao mesmo tempo uma espécie de liberação de Dante, como se os questionamentos lançados iluminassem o caminho, e tornassem mais claro o propósito não só da viagem, mas do todo.

Da minha experiência retiro essencialmente o sentimento de proximidade com a História que o livro me proporcionou, e que não tinha sentido tanto com Homero, apesar de ter sentido com Marco Aurélio. Durante a leitura senti como se viajasse no tempo, como se as linhas que tinha na mão fizessem parte de um tempo remoto, e eu tivesse o enorme privilégio de aceder por meio delas a esse tempo. A leitura funcionou em certa medida, como quando visitamos um monumento histórico, com séculos de história e nos sentamos ali por um pedaço de tempo, a imaginar o que teriam pensado e vivido as pessoas que por ali passaram séculos ou milhares de anos antes de nós. Como se as pedras nos pudessem transmitir parte dessa História, vidas passadas, mas contudo plasmadas em pedras trabalhadas, e aqui nas palavras de Dante, escritas há 700 anos.

"O Empíreo" (1861) por Gustave Doré 

Como disse no início, Dante é um dos poucos imortais, e explicar porquê não é fácil, porque estão implicadas imensas variáveis, não é apenas o texto, é também a sua forma, a língua escolhida, o momento da sua escrita, a região em que foi escrito, e depois tudo o que foram dizendo aqueles que lhe sucederam. Contudo acredito que para além de tudo o que já disse acima, o facto de ter escrito sobre um tema que a todos toca de muito perto, e tê-lo feito com tanta naturalidade, ainda que contaminado de muitas ilusões impostas pelas lógicas religiosas, contribuiu para que todos os que vieram depois dele, se tivessem interessado em saber o que tinha para nos dizer. Ler hoje Dante já não se faz para encontrar respostas, mas não deixa de nos ajudar a compreender de onde viemos, nomeadamente para todos os que fazem parte da sociedade ocidental marcada pela matriz cristã.

Ligações
Dante Worlds (U. Texas)
Digital Dante (U. Columbia)
World of Dante
Dante in Popular Culture
Dante Alighieri (Wiki Italiana )
Divine Comedy
A Divina Comédia (tradução prosa online)