março 18, 2018

Servidão Humana (1915)

“Servidão humana” foi publicado em 1915, sendo muito bem recebido pelo público e crítica, algo que se manteve até aos dias de hoje. Não raros são os leitores que lhe atribuem nota máxima, figurando mesmo em algumas listas de melhores obras ou de cânones clássicos. Aceitando a relevância e compreendendo o efeito que o livro produz, tenho no entanto algumas objeções a apontar, nada que faça desmerecer o destaque da obra, são mais questões que o texto evocou em mim e partilho para reflexão.  (Estas minhas objeções acabariam por, no decorrer da produção desta resenha, transformar-se em reconhecimento pela obra de Maugham.)

Acabei por ter de comprar a versão eBook da Asa, já que a edição em papel que tinha — coleção Mil Folhas do Público — apresenta um tamanho de letra completamente ilegível. Estamos a falar de uma edição que consegue colocar em 540 páginas o que as edições normais colocam em 700.

Começo pelo tom, já que ele é talvez um dos maiores catalisadores do impacto no sentimento dos leitores. Maugham, aqui o personagem Philip, apresenta-se na primeira pessoa, relatando a sua vida desde criança até à idade adulta, abrindo o seu coração a nós com total franqueza, mas acima de tudo explanando toda a sua vida por meio de um filtro de grande humildade. E se os eventos e as personagens são vistas pelos olhos humildes de Philip, que só vê pelo lado certo da moral, sem julgamento dos outros, apelando à razão para desculpar o erro e a maldade, a escrita de Maugham, simples, sem floreados ou recursos estilísticos, ainda que notando-se o labor de depuração da mesma, contribui em muito para que esse sentimento de franqueza e humildade impregne toda a nossa experiência de leitura.

Este tom não é alheio ao facto de “Servidão humana” ser um romance autobiográfico, ainda que nem tudo corresponda exatamente à realidade, mas na generalidade é um relato de uma vida. Maugham não tinha um pé boto mas gaguejava, e mais importante, os seus pais morreram quando ele era criança, tendo ido viver com o seu tio, tal como Philip. Maugham não foi para Paris para se tornar artista da pintura como Philip, mas tornou-se artista da escrita, o que ajuda a explicar as dúvidas que pairam sobre Philip durante todas as suas tentativas de se tornar um artista de primeira, e não um mero pintor mediano. Quanto à França, nasceu na embaixada inglesa em Paris, esteve na primeira grande guerra mundial em França ao serviço da Cruz Vermelha, e voltaria inúmeras vezes a França onde acabaria por morrer. Por outro lado, antes dessa viagem para Paris, Philip passa um ano na Alemanha, tal como Maugham passou na realidade.

Aliás, esta primeira parte até aos 20 anos é o melhor do livro para mim, não só porque nos dá a ver a criança que cresce sozinha, sem pais e num seminário, mas porque chegado à idade de tomar decisões verificamos que temos uma pessoa que mesmo não sabendo o que queria sabia o que não queria. Foi Philip (e Maugham) quem disse ao tio que não queria continua a estudar para padre e saiu do seminário por sua própria vontade, apesar de não haver muito dinheiro para outras carreiras alternativas. Foi Philip (e Maugham) quem foi um ano para Alemanha estudar literatura, e depois se cansou e regressou a casa. Depois foi (e Maugham) estudar para contabilista em Londres, e no final de um ano voltou a cansar-se e a retornar para casa. Seguido por mais 2 anos em Paris, a estudar pintura, desistindo também, e retornando a casa praticamente sem dinheiro. Voltando então por fim para Londres para se dedicar à escola de medicina, tendo-se formado já perto dos 30 anos. Se para alguns isto pode parecer um desperdício, para mim foi o melhor do relato, já que deu conta de alguém que incessantemente se procurou a si mesmo. Não existe nada mais difícil do que nos encontrarmos, tanto que considero essa a maior função da escola. E por falar nela, Maugham destrói completamente a mesma ao longo de todo o livro, não de modo frontal, mas subtilmente, basta ler nas entrelinhas, e analisar o seu percurso. Para fechar a comparação, Maugham não terminou o curso de medicina aos 30, mas aos 23, contudo depois do curso passou por várias profissões até decidir aceitar-se como escritor.

Passada esta primeira parte chegamos ao miolo do livro no qual me desliguei de Philip. Mas para entrar nessa discussão preciso de trazer um novo dado sobre Maugham que talvez introduza mais ambiguidade do que esclarecimento, mas é inevitável, e é o facto deste ser homossexual. Tal como Proust, viveram numa época em que não o poderiam assumir, e os seus escritos acabam por funcionar como trapaça dos seus verdadeiros sentires, nomeadamente nos romances que descrevem entre os seus alter-egos e as raparigas. Contudo julgo que Maugham sofreu mais com esta questão, pelo menos a julgar pelo modo como tudo isso surge aqui representado. Aliás, a ponto de alguns críticos lerem no pé boto de Philip, não a gaguez de Maugham mas a sua homossexualidade.

Assim o problema com que me defrontei a meio do livro surgiu na relação entre Philip e Mildred. Philip desenvolve uma paixão doentia por Mildred que não mais o largará para o resto da vida. Diga-se que é esta paixão que acaba dando força ao título da obra, e isso afastou-me também. A certa altura pensei mesmo que o livro não passava de mais um romance de cordel, relatos de paixões assolapadas, que se transformam no fim último das vidas dos seus personagens. E por isso cheguei a dizer no Goodreads que me apeteceu jogar o livro pela janela. Mas mantive a leitura e é verdade que o livro avança não estagna aí e é mesmo capaz de tornar-se ainda mais amargo que a parte inicial, ainda que termine classicamente bem.

Detenho-me um pouco mais em Mildred para explicar que o caso me ocupou algum tempo. A descrição da relação é de total masoquismo, já que Mildred não gosta de Philip, enquanto este se transforma no cãozinho que tudo faz para agradar à dona, mesmo após abandono crasso, volta uivando de felicidade. E vai mesmo ao ponto de magoar outras pessoas, foi aí que desliguei da personagem, por sentir que tinha ultrapassado a linha. No entanto, agora enquanto escrevo, parece-me ver outra realidade por detrás daquelas linhas. Atente-se na descrição corporal que Maugham nos faz de Mildred:
“O corpo dela era tão magro que era quase possível ver-lhe o esqueleto. O peito era liso como o de um rapaz. A boca, de lábios finos e sem cor, era feia e a pele tinha um leve tom esverdeado.”
Ou seja, Maugham não pode estar aqui a falar de uma mulher, ele está a falar de um homem. Por outro lado, atente-se numa outra declaração de Maugham ao seu sobrinho:
“Eu tentei persuadir-me a mim mesmo que era três quartos normal e apenas um quarto homossexual, quando afinal era exactamente o contrário.” W. Somerset Maugham, (Maugham, Robin 1970)
Ou seja, não será Mildred em vez da sua grande paixão (que não se reconhece na vida de Maugham) antes uma representação dos homens da sua vida, aqueles por quem se apaixonou, acreditando que não devia? É que existe um problema claro na descrição de Mildred que não vi ainda ser discutido que o facto de ela não apresentar um único traço positivo. Mesmo o severo tio, acaba por mostrar o seu lado positivo. Em Mildred tudo é mau, desde a aparência ao comportamento, pela mentira, engano e traição constantes, ao desprezo pela tia e até ao desprezo pela filha. Tudo é tão terrível e no entanto Philip não consegue deixar de olhar para ela como algo que deseja. Ou seja, até que ponto Midlred representa a sua angústia por preferir homens a mulheres, tendo sido educado para ver nessa preferência o pecado, o mal?

Como tudo está representado de modo a dar sentido aos sentires do autor mas também de modo a ser aceite pela sociedade, mascarando para o efeito os seus mais verdadeiros desejos, torna-se difícil saber o que exatamente queria dizer Maugham. Por outro lado, permite que cada pessoa veja nos eventos e conflitos aquilo que mais se pareça com a sua própria vida. Aliás, é isso que muitos dos leitores referem, o facto do livro passar muito rente aos seus quotidianos. Repare-se como o título é, segundo Maugham, baseado na seguinte frase de Espinosa — “Chamo servidão à impotência do ser humano para governar ou restringir (as suas) emoções”, e como ela pode dar conta de tantos dos problemas que assolam cada um de nós.


[*** Spoilers ***]

Confesso que na leitura procurei compreender o masoquismo de Philip/Maugham na base da falta do afeto dos pais que partiram antes do tempo, do tio austero incapaz da menor emoção, da deficiência do pé/gaguez, mas nada disso me pareceu suficiente, e menos ainda oferecer o direito de magoar outras pessoas. No entanto, agora que leio o texto e as personagens de um modo distinto, tudo se encaixa diferentemente. A personagem Norah, que se tinha apaixonado por Philip sendo largada sem mais, apenas porque Mildred, abandonada por um outro com uma gravidez indesejada, resolve voltar para Philip, foi um baque enorme para mim, algo completamente inaceitável na personagem. Uma pessoa dotada de razão, e Philip é alguém profundamente racional, nunca cederia, não esqueçamos que toda a sua humildade e incapacidade de magoar quem quer que fosse. Contudo, agora o que leio é que Norah aceitou a natureza de Philip/Maugham, e não era para outra mulher que ele voltava, ele era reclamado pela sua natureza homossexual, e contra essa, Norah uma personagem de grande elevação, sabia que não adiantaria lutar, e por isso sai de cena sem mais.

Estranho como não consegui compreender isto na leitura, e como isto não surge nas discussões mais genéricas sobre o livro (acredito que existam recensões académicas a aprofundar tudo isto). Vi tantas pessoas identificarem-se com algo com o qual não me conseguia propriamente identificar, a paixão avassaladora que tudo leva na sua frente, quando afinal não era a paixão, era algo mais profundo, ainda que isto não nos distancie do velho problema da luta entre a emoção e a razão. Porque diga-se Maugham terá passado grande parte da vida nas lutas desse dualismo. Não nos esqueçamos que casou com uma mulher e teve uma filha. Ele acreditou que a homosexualidade era algo que podia controlar, e graças à sua humildade deve ter conseguido sujeitar-se a levar a vida que todos à sua volta levavam. Mas a natureza humana não é mera paixão, o fogo que arde sem se ver é efémero, mas a natureza da homossexualidade não é paixão, mera emoção, como Maugham tentou definir a partir de Espinosa, é algo muito mais profundo, e este livro acaba a mostrar isso mesmo.

Terminando, “Servidão Humana” não é aquilo que muitos nos venderam, de ser um livro sobre a razão de viver, nem sequer é sobre aquilo que Maugham disse, de ser um compêndio das filosofias que tinha construído até aí, ou talvez seja, mas agora vejo que é muito mais do que isso, é um grito a partir do seu sentir mais íntimo. Repare-se como até mesmo a citação constante do evolucionismo de Darwin que serve para definir a tal ausência de fundamento da vida, deve ser lido antes como a refutação do cristianismo que penaliza o desejo e criminaliza a homossexualidade. E mais ainda, como o Darwinismo retira das costas de Maugham a culpa de ter nascido assim, justificando a sua incapacidade de torcer a sua natureza para se fazer entrar dentro dos preceitos morais da religião.

"Laocoön" (1604-1614) de El Greco. Greco coloca Laocoon, o troiano que tentou avisar Tróia daquilo que se escondia no Cavalo dos gregos, com Toledo no fundo. 

Claro que tudo isto acaba passando e Maugham porque não podia ser frontal, se o tivesse sido provavelmente este livro não teria sido um romance, e certamente não um romance de enorme sucesso, e acaba criando uma fachada de vitória e júbilo no final, com direito a casal satisfeito com o mundo “tal como ele devia ser”. Julgo que este final que no livro serve para dar conta de um Philip que triunfou na vida e conseguiu atingir o equilíbrio esperado dele, acaba por servir para dar conta do ambíguo sentimento de Maugham sobre si próprio. Atentemos em dois detalhes: Sally, a namorada final, não reage de forma muito natural, parecendo mais uma personagem de cera, dotada de todas as qualidades morais que a sociedade prezava, mas estranhamente distante de todos e mesmo de Philip; e segundo, Philip faz uma escolha final, resolve ficar com Sally por receio de a ter engravidado, já que a sua vontade era viajar para Toledo para conhecer as pegadas de El Greco, um dos artistas mais individuais de sempre, e que alguns historiadores etiquetam como homosexual. No fundo, Maugham está aqui a dar conta da sua ambiguidade, já que numa fase inicial da sua vida namorou com raparigas, e depois casou com uma mulher, e só a partir do meio da sua vida passou então a partilhar, abertamente, a intimidade exclusivamente com homens.

[*** Fim de Spoilers ***]


Cheguei a pensar retirar uma estrela pelo que Philip tinha feito, mas depois de ter escrito este texto, não consigo. A escrita de Maugham é boa, não deslumbra com virtuosismo, mas mantêm-nos presos ao livro todo o tempo ao longo da enorme quantidade de páginas que perfazem o mesmo, o que dá bem conta da sua qualidade. Por outro lado, é um relato que marca a nossa história, vai ao fundo do âmago daquilo que sente quem tem de passar todo o tempo escondido por detrás de uma fachada a ponto de já não conseguir distinguir essa fachada de si mesmo.

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