fevereiro 11, 2016

“Ruído Branco”, escrever para pensar

Demorei a escrever sobre este livro porque me obrigou a alguma reflexão mais elaborada, já que por um lado sentia que estava perante um trabalho de escrita e aprofundamento cultural de relevo, mas por outro sentia muitas reticências face à essência daquilo que nos queria dizer o seu autor. Li várias críticas de quando saiu em 1985, li mais algumas à edição comemorativa dos 25 anos de 2010, mas não consegui extrair muito mais do que aquilo que tinham sido as minhas impressões positivas, encontrei pouco esforço de interpretação de algumas das ideias que atravessam o livro. Aproveitei então o Goodreads para ler algumas críticas mais atuais, distanciadas no tempo, por quem como eu não leu o livro quando saiu, e assim totalmente despegado de memórias e nostalgias, e comecei a encontrar aqui e ali, alguns pontos negativos em consonância com as minhas dúvidas. Mas foi ao ler uma entrevista de DeLillo à Paris Review de 1993, que comecei a compreender a razão das minhas impressões.


De forma sintética, e abstraindo do enredo que nos faz virar as páginas, “Ruído Branco” procura respostas para as ansiedades contemporâneas, nomeadamente as produzidas pela velocidade e abundância de mensagens introduzidas pelos media na paisagem diária em que vivemos. Para produzir esta crítica DeLillo cria um mundo a partir de uma pequena cidade americana, na qual seguimos um professor universitário, especializado em Estudos de Hitler. Como rapidamente se depreende esta especialização é o foco da sátira de DeLillo, servindo de ponte para o questionamento final que nos propõe, a angústia do Medo de Morrer.

Capa da edição comemorativa dos 25 anos de "White Noiseda Penguin.

O romance está dividido em três grandes blocos — o primeiro de crítica dos media; o segundo do impacto dos media sobre o modo como vemos a realidade; e o terceiro como tentativa de explicar o que tudo isso representa. A primeira parte é a mais bem conseguida, tanto no conteúdo como na escrita, a erudição das metáforas e uma impressionante capacidade para escalpelizar ações e comportamentos num modo incisivo. A segunda parte é dedicada à ação mas numa lógica concentrada que nos permite aproximar mais da intimidade das relações da família do personagem principal. Por fim, a terceira parte é a mais simbólica, abandonam-se as descrições e a ação, e é tudo focado na explicação dos porquês, com recurso a algum devaneio filosófico.

As primeiras questões que me surgiram tiveram que ver com o facto de trabalhar especificamente na grande área de Estudos dos Media o que me torna mais sensível ao conteúdo. Falo especificamente do momento em que o livro é escrito, há 30 anos, e toda a crítica que foi produzida antes e depois sobre os mesmos problemas identificados aqui por DeLillo. Não tendo nada de errado a apontar, surge-me como um discurso um pouco saturado, mesmo nos anos 1980 já o era, as principais obras de McLuhan são dos anos 1960. Embora tenhamos de admitir que foi nos anos 1980 que a cultura popular se hegemonizou, e por via dos media de massas assumiu ascendente sobre a realidade. Aliás, daí a catalogação de uma nova era, a da pós-modernidade, nomeadamente pela via da tal hiperrelidade, como bem definiram Baudrillard ou Eco, em que o real deixa de existir porque substituído pela realidade criada pelos media.
" — Eles estão a tirar fotografias de gente a tirar fotografias." p. 20
“— Compreendi finalmente que este meio de comunicação social [a televisão] é uma força primordial no lar americano. Fechado, independente do tempo, contido em si mesmo auto-referenciado. É como se, mesmo ali, no meio da nossa sala, um mito estivesse a nascer, algo que fosse já do nosso conhecimento, de uma forma onírica e pré-consciente.” p. 68
De certo modo parece-me que o livro envelhece menos bem, apesar de ser ainda contemporâneo por vezes sobressai como crítica/sátira de uma era já longínqua. Talvez aqui o problema não seja sequer de DeLillo, mas antes da velocidade que se imprimiu à sociedade, nomeadamente por via das tecnologias de comunicação que transformaram drasticamente os media e a nossa relação com os mesmos, e tudo nos pareça já tão distante. Ainda assim gostei de ler, e não foi por aqui que me surgiram impressões menos positivas.

As minhas dúvidas ou incómodos surgem na terceira parte do livro, quando DeLillo entra no modo explicativo, e faz a sua proposta de teorização sobre a crise humanista criada pelos media, em que o acessório se tornou central, em que o mesquinho, o irrelevante ou insignificante passou a dominar o real, e a dominar os interesses das nossas vidas. Para Delillo isto explica-se como modo de fuga ao Medo da Morte. Seria uma tentativa de alheamento de si, de concentração no exterior de nós mesmos, para olvidar os nossos anseios. Diga-se que não discordo completamente desta ideia, muito do cinema e literatura de puro entretenimento que produzimos hoje tem esse desígnio como objetivo, esquecermo-nos de nós mesmos, escapar ao real que nos restringe a liberdade. A minha dúvida, e mesmo contestação à premissa é que não acredito que isso tenha qualquer relação com o Medo da Morte, desde logo porque se essa fosse a condição, então cada um de nós procuraria antes aproveitar o máximo possível antes de morrer, e não investir o tempo em futilidades para esquecer, para apagar o resto do tempo que nos resta por cá.

Verifiquei depois mais algumas referências de textos académicos que a proposta a que Delillo chega é, admitido por ele, influenciada por um texto de grande sucesso dos anos 1970, “The Denial of Death”, e que encaixa totalmente aqui em termos de argumento. Não vou dizer mais nada sobre esse livro, para além do que disse na resenha que lhe fiz logo depois de ter terminado “Ruído Branco”. Dizer apenas que é um texto sem valor na atualidade do conhecimento científico, e que tenho pena que o escritor se tenha deixado enredar por tal argumentação. Apesar disso, e enquanto romance, já que não se trata de um livro científico, DeLillo consegue manter todo o nosso interesse até ao final, assim como a nossa admiração pela forma como vai montando a argumentação com alguns casos e diálogos verdadeiramente lancinantes.

Posto isto quero agora ligar tudo com a entrevista de DeLillo, e explicitar um pouco daquilo que retiro de toda a experiência de leitura e reflexão de “Ruído Branco”, começando desde logo pela primeira pergunta sobre a razão pela qual DeLillo começou a escrever
"Eu queria aprender a pensar. A escrita é uma forma concentrada de pensar. Eu não sei o que penso sobre determinados assuntos, ainda hoje, até me sentar e tentar escrever sobre eles. Talvez eu estivesse à procura de formas mais rigorosas de pensar." [DeLillo à Paris Review]
Foi esta frase que me fez compreender “Ruído Branco”, que passei a ver como ensaio, à lá Saramago, em que uma determinada ideia lhes surge à mente e recorrem à escrita para a compreender, dar-lhe sentido e significado. A semelhança com Saramago termina aqui, já que DeLillo é muito mais orgânico, menos estruturado, mais próximo de Faulkner, como ele próprio gosta de afirmar. Aproximei-me de DeLillo porque esta revelação vai de encontro ao que faço com muitos dos textos que crio não científicos, nos quais começo com uma ideia e a meio do texto dou por mim a pensar algo completamente diferente, encadeado pela exploração mental dos diferentes conceitos que vão aflorando à consciência. O que me ajuda a compreender como se pode partir da discussão sobre os media e chegar ao medo da morte, e mais ainda, como ao longo do tempo pós-escrita, e de novas escritas, vamos vendo as nossas ideias mudar. Ou seja, não assumo aquilo que DeLillo aqui escreveu, como o seu modo único de ver a realidade, mas antes o modo como a viu na altura em que escreveu este livro, apenas isso.

Não menos interessante, e que me aproximou um pouco mais da sua pessoa, foi a resposta à questão sobre a fase da vida em que tinha começado a ler, DeLillo surpreendentemente revela que em criança só lia banda desenhada, e que só começou a ler mais seriamente a partir dos 18 anos. Não me poderia ter identificado mais, embora a minha identificação termine aqui, já que fiquei depois embasbacado pensando na elevada qualidade do seu trabalho, e no como tinha na minha frente mais um exemplo do modo como o talento se constrói, que não nasce, mas também não tem de ser condicionado desde o berço.

“Ruído Branco” tem alguns problemas de conteúdo, muito fruto do tempo em que foi escrito, mas enquanto romance, obra artística, continua intacto, dono de uma escrita soberba capaz de abrir pequenos orifícios na realidade e conduzir-nos pelo seu interior na tentativa de nos ajudar a compreender, perscrutando por dentro.

Motion designer: Danny Yount

A Adobe Create criou um pequeno filme sobre Danny Yount, um dos mais brilhantes designers de genéricos a surgir depois de Kyle Cooper. Vale a pena ver, pela qualidade do resumo, mas acima de tudo pela enorme simplicidade, humildade e autenticidade de Yount.






Young tornou-se conhecido com os genéricos de Six Feet Under, Kiss Kiss Bang Bang e RocknRolla desde então criou a sua própria produtora a Prodigal Pictures e dezenas de genéricos para alguns dos filmes mais caros de Hollywood, tendo ganho vários Emmys que guarda numa básica prateleira Ikea.

Young dá algumas pistas sobre o modo de entrar na indústria, nomeadamente fala do sentido de oportunidade que surge num momento limitado e que precisa de ser aproveitado. De qualquer modo podem ver no site da sua empresa aquilo que neste momento conta e o que se procura neste domínio em termos de competências.

"The Film Before the Film - Title Designer Danny Yount" (2015) Adobe Create


Mais sobre este tema:
Off Book: "The Art of Film and TV Title Design"
Histórias do Title Design

fevereiro 09, 2016

Vertigem audiovisual

Parece fácil, parece ad hoc, coincidências suportadas por processamento computacional, mas não, é muito pouco disso, é muito trabalho, muito tempo investido no desenvolvimento de sensibilidade capaz de captar e editar assim. É a primeira vez que aqui trago trabalho de Leonardo Dalessandri que segue uma linha de filmes web desenvolvida por criadores como Matty Brown e Jason Silva, e que podemos apelidar de vertigem audiovisual.





Esta abordagem estética caracteriza-se essencialmente pela velocidade e ritmo imprimido por via da montagem, assim como pela alternância entre planos gerais e planos de pormenor, socorrendo-se ainda de artifícios como a câmara lenta, acelerada e reversa. A experiência constrói uma espécie de pequena janela para uma realidade nova, que se consome em poucos minutos deixando uma impressão profunda, que perdura como uma essência de perfume.

Deixo apenas um dos filmes de Leonardo Dalessandri, Watchtower of Turkey, mas aconselho vivamente uma visita ao seu Vimeo, no qual destaco a recente colaboração com Jason Silva em "Captains of Spaceship Earth" (2015), pelo texto de Silva sobre os efeitos dos media.

"Watchtower of Turkey" (2014) de Leonardo Dalessandri

fevereiro 06, 2016

“Frankenstein: ou O Prometeu Moderno”

É um clássico, não porque fez melhor mas porque fez primeiro. Mary Shelley cria todo um universo a partir das preocupações da época em que vivia — eletricidade, ciência e industrialização — e cria algo completamente novo, um rasgo de pura criatividade que se veio a tornar num ícone dos mundos de ficção.

Ilustração do interior de capa da 3ª edição

Como texto é muito acessível, e os símbolos vão surgindo de forma explícita, desde logo com o subtítulo — “O Moderno Prometeu” — e o colocar da “criatura” a ler o “Paraíso Perdido” de John Milton. Ou seja, Shelley é muito direta no que pretende dizer com a sua obra, dedicando-se essencialmente à construção da hipótese que nos serve de ambiente de reflexão. Esta hipótese, no fundo dar vida a partes de corpos mortos, surge na senda dos anseios desse tempo que rodeavam a electricidade e a energia das células nervosas descobertas por Luigi Galvani. A ciência estava no seu auge, nomeadamente com a sua aplicação em crescendo na industrialização e automatização da atividade humana.

A narrativa segue todo um padrão romântico, também do seu tempo, com tendências góticas. O humano é aqui o centro do mundo, e em seu redor tudo é dramático e trágico, a noite e o negro perseguem os personagens, e a insanidade toma facilmente conta das emoções, tudo isto serve de pressão psicológica para fuga na ânsia do fim dos medos, nem que isso implique a própria morte.

Frankenstein” é uma crítica do seu tempo, mas sobreviveu ao mesmo porque foi além, apontando problemas e levantando questões que se nos continuam a colocar hoje — o que é o ser humano? que responsabilidades temos para com os outros?. Mais recentemente estas mesmas questões retomaram toda a relevância com o surgimento dos robôs e da inteligência artificial, tornando o romance de Shelley numa obra novamente atual e relevante. Por isso não admira que o livro seja hoje uma das obras de ficção mais estudadas nas Universidades americanas.

Para quem viu vários dos filmes, nomeadamente os grandes clássicos dos anos 1930 da Universal Pictures, o imaginário criado tem pouco que ver com o que se pode aqui ler. A primeira vez que, via cinema, me aproximei da ideia aqui contida foi na versão de 1994 de Kenneth Branagh com Robert de Niro no papel da “criatura”, intitulado “Mary Shelley's Frankenstein”, que como o próprio título indica, pretendia voltar à fonte e fazer um filme o mais próximo possível da ideia original de Shelley.

fevereiro 02, 2016

“Guerra e Paz”

Escrito entre 1863 e 1868, o projeto nasce como simples crónica sobre a revolução aristocrática dos anos 1850, evolui para um projeto de análise histórica da campanha de Napoleão na Rússia em 1812, acabando por se transformar num monstruoso projeto sobre a vida humana. Podemos dizer que o resultado do projeto final, o livro “Guerra e Paz”, nos  oferece três diferentes obras numa só: a) o romance à volta das famílias russas aristocráticas; b) o relato histórico sobre a guerra contra Napoleão; e c) a análise filosófica do sentido da guerra, consequentemente da vida. Aproveitando esta categorização assim farei os meus breves comentários sobre o texto.



a) O Romance

Neste campo Tolstói não nos dá nada de novo, apesar do realismo, e do drama próprio ao género, raramente nos arranca do lugar, nos surpreende ou prende a respiração. O romance atravessa os dilemas comuns de cinco famílias da aristocracia do século XIX, com as suas querelas por heranças, casamentos de fachada e de manutenção de riqueza, com os amores impedidos, impossíveis ou de consanguinidade, mas a “faca e o alguidar” não entra aqui, mesmo quando na relação com a guerra, da saída dos familiares ou das invasões do inimigo, Tolstói nunca aproveita o fácil que seria puxar a lágrima, ou impressionar com a aspereza, dureza e frieza próprias da vida em guerra, das faltas, da insegurança ou do frio, dos desaparecidos ou mortos em combate. Existem alguma cenas marcantes, como o exemplo inesquecível de Andrei pegando na bandeira logo no início, mas não está aqui o foco do autor.

Tolstói pretendia algo diferente, procurava dar conta de algo que se estava a transformar na sociedade, algo que acabaria por se ligar à guerra de Napoleão, a Revolução Francesa. Daqui começaram a surgir as elevações do povo, mas mais do que isso, para a camada aristocrática que estudava e refletia sobre a realidade, que tinha feito os estudos lá fora, tinha lido Rousseau, era tempo de mudança. Era tempo de repensar a propriedade privada, de repensar a escravatura, os direitos humanos, de repensar o Estado e as suas leis. E é isto que surge no centro do romance, ainda que de algum modo vá sendo camuflado pelo romanesco das relações, mas sempre que pode, e fá-lo imensas vezes, colocar Andei ou Pierre a falar, tudo isto vem ao cimo, e faz-nos refletir sobre o tipo de sociedade que existia nessa altura. De certo modo faz-nos pensar sobre a razão de ter surgido Napoleão.

As várias famílias acabam por dar conta de diferentes perspetivas sobre a sociedade, apesar de todas aristocráticas (condes e condessas), estavam todas em situações diferentes, acabando por estabelecer premissas e objetivos distintos. O centro inevitavelmente acaba por rodar à volta de Pierre, um filho bastardo que chega à aristocracia por mero acaso, e é no seu encalço que passamos o resto do romance, vendo muito daquilo que era a Rússia e do que foi a guerra, por meio do seus olhos. Alguém desprendido que por várias vezes tenta recompor-se mas que pela vicissitudes da vida, do acaso e coincidência, acaba por cair e voltar a cair. Tolstói faz isto imensamente bem, conseguindo estabelecer uma clara ligação entre o leitor e Pierre.

Por outro lado, tudo isto é acompanhado por um espírito crítico, que paira sobre o texto do próprio Tolstói, desde a igreja à política, à hierarquia militar, à medicina, aos académicos, à maçonaria, ao jornalismo, nada escapa, tudo é apresentado com direito a contraditório, mas na maior parte do tempo sucumbindo ao desejo reformador de Tolstói que está aqui claramente ao serviço de um desígnio, como veremos já a seguir.

b) O Relato Histórico

Guerra e Paz é assumidamente escrito com um espírito de missão, Tolstói procurava dar uma nova visão da História, estava claramente insatisfeito e sentia-se incomodado com os vários volumes escritos por académicos que relatavam a campanha de Napoleão na Rússia como um verdadeiro passeio, sem sofrer qualquer afronta por parte das forças russas. Daí que os 4 volumes sejam dedicados a discorrer sobre a História, mas não apenas a História como se contava, mas antes dando uma nova versão, ao mesmo tempo que criticava a ciência por detrás das análises históricas até então escritas, o que daria origem à terceira via deste livro, e de que falarei a seguir.

A História descreve Napoleão como o génio militar, e Tolstói sentiu-se profundamente incomodado com tal. Deste modo Guerra e Paz acaba por apresentar, além do romance, uma nova visão do embate de 1812 entre Alexandre I e Napoleão, colocando o general russo, Kutuzov, na frente, enaltecendo feitos pouco conhecidos ou reconhecidos, e assim trazendo orgulho ao povo russo. Não admira que esta obra se tenha tornado digna de honras de monumento para os russos. Ela é um monumento em si, épica, mas é-o ainda mais para o povo que viu nascer e morrer Tolstoi.

Para o comum leitor, a união do romance à História é fundamental na criação do espaço e universo narrativo. No final da leitura, dificilmente se fica com a mesma ideia do século XIX, sentimos os nossos horizontes crescer, e compreendemos melhor o que se passou com Napoleão, embora neste caso concreto tivesse gostado de ver Tolstói ir mais longe. Tolstói porque tinha algo a provar, que o faria na terceira via do livro, acaba por não reconhecer a origem de Napoleão, nem dos escritos que o suportavam, os "autores" por detrás da Revolução Francesa, o que teria sido muito interessante. Por outro lado, ao assumir que o leitor detém esse conhecimento, obriga a procurar e a querer saber mais quem tenha aqui algumas lacunas. Deste modo acaba por tornar Guerra e Paz uma obra praticamente obrigatória em termos da cultura geral europeia, embora não seja uma obra que se possa obrigar à leitura, dada a sua complexidade.

c) A Análise Filosófica 

Esta foi talvez a vertente do livro mais criticada desde o seu surgimento, tendo mesmo levado Tolstoi na 4ª edição em 1873 a cortar quase toda esta análise do livro, algo que foi apenas reposto mais tarde pela mulher em 1886 para 5ª edição, a que hoje normalmente lemos. Um dos elementos mais marcantes desta edição aparece como segunda parte do Epílogo, em 35 páginas inteiramente dedicadas à reflexão sobre a Ciência da História e à vida em si. Diga-se que são 35 páginas um tanto obsessivas, Tolstoi procura convencer-nos por todos os meios, detalhando ao pormenor o seu argumentário, mas desta forma acaba tornando-se excessivamente complexo, afastando muitos leitores. Em algumas críticas chega-se mesmo a recomendar os leitores a arrancar o epílogo, para diminuir o tamanho e peso, mas principalmente para não se ter de atravessar aquilo que para alguns é a parte mais árida do romance.

Percebo que assim seja para quem vem à procura de romance, mas Guerra e Paz não seria o que é sem as suas três partes. Para quem consiga seguir o raciocínio de Tolstói é recompensado no final, sendo capaz de sentir o que ele sente. Sim, ele é nestes momentos mais pregador que artista, aliás existem dois momentos no meio do livro em que o narrador abandona a terceira pessoa, e sentimos claramente Tolstói a falar connosco, a dizer-nos o que pensa sobre os factos históricos, sobre os erros de leitura, e sentimos que ele ja não está a escrever uma história, mas a dar uma aula carregada de impressões pessoais, ainda que de algum modo sustentadas. Tolstói não se limita a escrever sobre um assunto que leu, faz uso da sua experiência pessoal na Guerra da Crimeia (1853-1856), assim como de imensa pesquisa no terreno, chegando a incluir mapas de correção dos campos de batalha no livro.

Antes de entrar na discussão histórica quero frisar algum dos devaneios que vão surgindo ao longo do livro da parte de Andrei e Pierre, com perspetivas sobre a vida bastante negras, nas quais podemos encontrar facilmente paralelos com Schopenhauer, filósofo que Tolstói admirava, claro que não se fica pelo mero seguimento, notamos mesmo ao longo do livro uma evolução das perspetivas mais negras, um amadurecimento. Claramente que o seu desânimo com a sociedade, a aristocracia e o tratamento dado às pessoas do campo afetou muito o mundo de Tolstói, ele que fundou várias escolas especificamente para quem não tinha acesso à educação na Rússia.

Mas o cerne da filosofia apresentada por Tolstói com o culminar no Epílogo dá conta da discussão em redor do determinismo e acaso. A discussão surge a Tolstói por vida da demonstração de que não é um homem, neste caso Napoleão, que pode mudar o mundo, que é preciso um movimento, que são precisas massas, e que essas não se movem à vontade de uma só voz. Esta luta começa logo no início do livro, mas agudiza-se no final, com Tolstói a dar conta de uma ciência incapaz de nos dar a conhecer a História, por se concentrar apenas nas figuras de proa, esquecendo as massas, as pessoas reais que fizeram a História. Esquecendo a imensidão de variáveis que contribuem para cada evento, em que tudo tem uma causa e um efeito, e que cada efeito afecta a causa seguinte, num sucedâneo que provoca aquilo que mais tarde reconhecemos como História.
"Para estudar as leis da história, temos de mudar completamente o objeto da observação, deixar em paz os czares, os ministros e os generais, passando a estudar os elementos heterogéneos, infinitesimais que dirigem as massas.” p. 298, III
“Se dispusermos de uma grande série de experiências, se as nossas observações incidirem incessantemente nas relações de causa a efeito nos actos humanos, então estes actos apresentam-se tanto mais necessários e tanto menos livres quanto mais ligarmos os efeitos às causas.” p. 397, IV
Daqui chegamos à grande dualidade entre Liberdade e Necessidade, que no fundo serve a oposição, livre-arbítrio e determinismo. De um lado, a liberdade total pode apenas existir na nossa consciência, enquanto a necessidade existe na razão (no espaço, tempo e causalidade). A luta entre liberdade e necessidade é permanente, não podendo nós viver apenas num dos lados.
“Assim, para imaginarmos um acto humano sujeito tão-só à necessidade sem a mínima dose de liberdade, seríamos obrigados a admitir o conhecimento de um número ‘infinito’ de condições espaciais, um período ‘infinitamente’ grande de tempo e uma série de causas ’infinita’.
Para podermos imaginar um homem completamente livre, não sujeito à necessidade, deveríamos imaginá-lo sozinho, ‘fora do espaço, fora do tempo e não dependendo de qualquer causa’.” p.401, IV



Conclusões

Tolstói não considerava Guerra e Paz um romance e Gustave Flaubert concordava dizendo que o livro estava cheio de repetições e demasiada filosofia, com o que concordo em parte. Só não concordo que não continue a ser um romance, porque o romance não tem uma forma, é antes aquilo que quisermos fazer dele, mas claro que é muito mais fácil para mim dizer isto em 2016.

Na realidade, Guerra e Paz opta por uma forma do tipo “edutainment”, um trabalho que ao mesmo que entretém (romance), educa (história e filosofia), e nesse sentido é um trabalho enormemente conseguido. Este tipo de abordagem híbrida não pode almejar ao mesmo tipo de uma obra consagrada a um domínio apenas. Ou seja, um romance focado no romance, pode ir muito mais longe no drama e emoção, na envolvência da nossa atenção e captação dos nossos sentires. Por outro lado um tratado filosófico sobre estes temas, vai muito mais ao fundo da essência do que Tolstoi faz aqui, mesmo com a sua repetição obsessiva do tema, porque acaba faltando-lhe espaço para a exposição metodológica. O mesmo acontece com a componente histórica, em que muito do contexto do cenário de 1812 fica de fora. De qualquer modo, Tolstoi consegue juntar os três discursos e não só tocar-nos como abrir-nos os horizontes históricos e filosóficos, e é isso que tem mantido esta obra relevante ao longo de tantos anos.

Estilisticamente a inovação, e dificuldade de leitura, advêm por esta abordagem tripartida, já que em termos de escrita temos um texto bastante fluído, numa lógica realista, com um bom vocabulário mas nada demasiado exigente. O primeiro tomo é dedicado à apresentação dos personagens, é um bocadinho mais chato na progressão mas é amplamente compensado pelo segundo e o terceiro nos quais temos o desenvolvimento do romance e História, com algumas interessantes digressões filosóficas, já no quarto entra novamente num ritmo mais descritivo, de fechamento de pontas, tornando-se menos envolvente, embora o epílogo redima e nos ponha num estado profundamente reflexivo sobre tudo aquilo que acabámos de ler.

Apesar de vivamente recomendado, não é um livro que sinta, pelo menos no imediato, vontade de reler. É um livro magnífico, capaz de nos fazer ver o mundo de uma forma diferente, mas que sofre um pouco com a progressão ocorrida no seio da ciência e filosofia. Entre Tolstói e Proust, julgo não haver lugar para dúvidas no que toca ao prazer da leitura de Proust, ainda que em termos de assunto e conteúdo seja imensamente mais rico Tolstói.


Lev Tolstói, (1869), Guerra e Paz, Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Editorial Presença (2005), 4 volumes, p. 1697 

janeiro 31, 2016

Os 10 mais vistos de 2015

Só agora consegui recolher os 10 textos mais lidos/vistos aqui. Foi um ano calmo, principalmente no primeiro semestre publiquei pouco, talvez por isso não existam tantos textos a concorrer pelo top dos mais vistos como nos anos anteriores. De qualquer modo aponta temas interessantes que fui trazendo aqui ao longo do ano que terminou. Acaba por ser refrescante voltar a ver todos estes textos e imagens e pensar sobre o que conduziu à sua criação, assim como especular sobre o que terão pensado as pessoas que os leram.

1. A visceralidade da imagem em movimento, Maio

2. O desastre anunciado no design da Apple, Novembro

3. Pensar como um Designer, Março

4. Creativity Inc., Fevereiro

5. Sistemas de ensino distribuído por James Paul Gee, Março

6. Way to Go, uma viagem interativa sensorial, Abril

7. A vontade de ser (e recriar o) humano, Junho

8. Propósito da vida segundo Isaac Asimov, Fevereiro

9. Toca Boca e o design de interação, Março

10. Logicomix, Julho

janeiro 30, 2016

Composição cinematográfica

Em 15 minutos, no ensaio audiovisual "Composition In Storytelling", Lewis Bond dá uma aula completa de composição visual cinematográfica. Mais de uma centena de filmes desfilam em poucos minutos na nossa frente dando conta da diversidade e riqueza que constitui a palete visual do cinema para contar histórias.


Não tenho muito a acrescentar ao que é dito no ensaio. A composição visual é uma arte complexa porque apesar de se dar à padronização é da sua constante capacidade para surpreender que advém o grande envolvimento. O plano nunca visto, a diagonal, em sequência, com travelling, aberto, conjugado, etc. etc. tudo aquilo que cada criador consiga fazer da matéria plástica para passar a idea que pretende. Deixo uma ligação para um outro trabalho, do Nerdwriter, a propósito da composição de molduras, que analisa In the Mood for Love em profundidade e que vale a pena ver de seguida.


"Composition In Storytelling" (2016) de Lewis Bond 

Aproveito também para aqui partilhar um excerto do filme "Les Ailes" (1927) que começou a circular na web no final do ano que passou e que já surge aqui citado, e que mostra um inovador travelling em profundidade, raramente visto no cinema antes do surgimento das facilidades criadas pelo CGI.


Deixo a imagem abaixo extraída do ensaio que dá conta de alguns dos elementos a ter em conta no momento da composição que como refere Bond podem ser designados como influenciadores da expressividade de uma imagem composta. E no seguimento deixo a homenagem composicional de Gravity a 2001.

"To compose an image is to create an everlasting metaphor. Cinema in its purest form is visual storytelling, and the best cinema can tell a story through something as simple as the arrangements of an image."


janeiro 29, 2016

A intensidade da busca de Marco Aurélio

As "Meditações" foram escritas sob a forma de diário, sem qualquer intenção de publicação, e desta forma mais do que comunicar com o outro, Marco Aurélio procurava encontrar-se a si mesmo. Como o oleiro que molda peça atrás de peça em busca do ideal total, Marco Aurélio tecia considerações sobre a realidade que vivia e as leituras que fazia, colocava-as em confronto, gerava questões e procurava respostas. Foi esta abordagem, possibilitada por uma curiosidade incessante, que tornou Meditações num livro capaz de sobreviver a 2 milénios de história, mantendo-se até hoje completamente atual.


Diga-se que a atualidade de Meditações tem mais que ver com a biologia do que com a filosofia, ou seja, mais do que dar conta da durabilidade das ideias aqui debatidas, o facto de elas debaterem a essência da vida (nos seus aspectos racionais, sociais e emocionais), e o facto da configuração que permite vida no planeta praticamente não se ter alterado, faz com que grande parte das ideias aqui discutidas mantenham toda a sua aplicabilidade. Ao longo da leitura não poucas vezes damos por nós a surpreender-nos com a mesquinhez, as necessidades, as veleidades e desejos que ocorriam então tal como continuam a ocorrer hoje. Se os ensinamentos presentes em Meditações são relevantes, embora pertencentes a um quadro filosófico mais amplo — o estoicismo —, hoje não menos relevante é a comparação entre o pensamento e forma de estar em 180 e agora passados 2000 anos.
Whatever this is that I am, it is flesh and a little spirit and an intelligence.” [Livro 2]
Our life is what our thoughts make it.  [Livro 4]
Apesar de romano, Marco Aurélio fundamenta toda a sua discussão no pensamento grego que nesta altura tinha já quinhentos anos de existência. Por isso não parte do vazio, nem terá nada de muito novo para dizer, já que grande parte dos ideais aqui debatidos provêm de toda uma corrente filosófica que parte de Zenão (-300), passa por Cicero (-100) e Seneca (0) até chegar a Marco Aurélio (180). Aquilo que torna Meditações único é na verdade a sua forma, o traço intimista e confessional que confere ao relato um carácter de profunda honestidade e humildade, garantindo ao conteúdo uma marca mais intensa de autenticidade.

Diga-se que o estoicismo não era propriamente uma abordagem filosófica que pudesse exercer, à partida, grande atração sobre alguém com tanto poder e acesso a tudo, como um imperador. O movimento roçava o religioso, embora defendendo a construção de conhecimento pela razão, professava uma doutrina de princípios duros, rotulando o prazer como inimigo da sabedoria, a virtude como a única forma de chegar à felicidade, e a negação da sensorialidade incluindo toda a dor, física ou mental. Deste modo ler as palavras de alguém tão poderoso, falando para si mesmo, buscando forças e justificativas para controlar o ímpeto humano, é no mínimo sedutor, mas acima de tudo profundamente inspirador.
"Men seek retreats for themselves, houses in the country, sea-shores, and mountains; and thou too art wont to desire such things very much. But this is altogether a mark of the most common sort of men, for it is in thy power whenever thou shalt choose to retire into thyself. For nowhere either with more quiet or more freedom from trouble does a man retire than into his own soul."[Livro 4]
"The mind which is free from passions is a citadel, for man has nothing more secure to which he can fly for refuge and for the future be inexpugnable. He then who has not seen this is an ignorant man: but he who has seen it and does not fly to this refuge is unhappy." [Livro 8] 
"The happiness and unhappiness of the rational, social animal depends not on what he feels but on what he does; just as his virtue and vice consist not in feeling but in doing." [Livro 9]
Meditações acaba por resultar numa espécie de código de conduta para a “nobreza de espírito”, pelo que professa assim como pela frontalidade e humildade com que professa, não admirando que ao longo dos séculos tenha servido de inspiração a muitos homens de estado preocupados com o dever e o servir.


Nota: Dado o carácter algo aforístico do livro, pululam na web dezenas de supostas citações de Marco Aurélio que não o são.

janeiro 28, 2016

Pyongyang, quando o real não chega

Esta semana escrevi para o IGN um texto sobre a diferença entre contar histórias baseadas na realidade e na fantasia, defendendo que o facto de basear as histórias numa “verdade”, não as torna mais relevantes. O que digo aí não podia assentar melhor no problema com que me deparei ao ler "Pyongyang: A Journey in North Korea", um livro de banda desenhada escrito por Guy Deslile, no qual relata os dois meses que passou na Coreia do Norte a trabalhar num filme de animação.


Pyongyang” revela-se uma espécie de obra voyeurista, tal câmara escondida, em que a objetiva era o olho do autor, e o gravador as suas memórias. Como tal funciona muito bem, a obra dá conta da vida diária dos habitantes daquela cidade, do que é possível aí ver e visitar enquanto cidadão estrangeiro, e em parte do que aquelas pessoas pensam sobre determinadas temas. Tem valor enquanto registo que reporta um real pouco conhecido, dá conta de um fluxo temporal num espaço concreto, mas fica-se por aí.

"Verdade e Fantasias nas Histórias", texto escrito esta semana para o IGN

Pyongyang” não tem história, porque é apenas descrição do dia-a-dia de quem passou dois meses num local. O arco é apenas delimitado pelo dia de chegada e dia de partida, não havendo sequer o esforço de esboçar um climax. Mas se fosse apenas esse problema, menos mal, poderíamos dizer que estávamos perante uma tentativa de documentar o que se viu. Contudo o que temos não é um relato neutral, é um relato enviesado pela cultura de quem olha, por acaso a minha (ocidental), mas que nem sequer crítica chega a ser, menos ainda interpretativa, fica-se antes pela mera chacota, não dos líderes mas dos seus cidadãos, um desrespeito que chega por vezes a roçar a xenofobia.

Não se trata aqui de defender o regime, esse é irrelevante nesta discussão, trata-se de ser capaz de compreender o real, e isso implica muito mais do que descrever edifícios, regras, proibições, atrasos tecnológicos, requer capacidade para compreender as pessoas com que se interage, compreender a vida que o sistema como um todo germina. Mas para isso era preciso que o autor fosse dotado de mais mundo, das ferramentas necessárias ao estabelecimento de comparações que lhe iriam abrir horizontes para a interrogação e o questionamento. De outro modo, ficamo-nos por um conjunto de piadas, algumas de gosto duvidoso.

Quanto ao traço não ajuda muito, serve e segue o relato, no seu tom vulgar e despretensioso, conseguindo talvez como melhor feito dar conta do vazio e da descaracterização que constitui o panorama da cidade de Pyongyang.

janeiro 26, 2016

Compreender os falhanços

Este livro, To Forgive Design: Understanding Failure (2012), trata um tema crítico da atividade humana, “a falha”, o estudo e análise do modo como falhamos na realização das nossas ações. O livro foca-se na engenharia, nomeadamente civil e mecânica, mas o ponto ilustrado serve qualquer outra engenharia, serve o design, serve toda a atividade criativa, acabando por servir toda a atividade humana. Mais serviria se o autor tivesse conseguido focar-se nessa essência como promete o título, não o conseguindo perdeu o livro e perdemos nós.


Esta questão da falha tornou-se um tópico central dos estudos sobre criatividade na última década, contando com um livro dedicado ao tema por Sarah Lewis, “The Rise: Creativity, the Gift of Failure, and the Search for Mastery” (2014), foi também amplamente discutido por Catmull no “Creativity Inc.” (2014), sendo tópico de imensos artigos e até motivo de uma exposição artística, "Permission to Fail”, que termina este mês nos EUA.

A vantagem de Petroski é que não se interessou pelo tema agora, antes já tinha publicado “To Engineer Is Human: The Role of Failure in Successful Design” em 1985. O autor refere o facto do livro ter mantido procura a razão pela qual resolveu escrever este novo. Não tendo lido o livro de 1985, acredito, pela resenha do mesmo, que avançou pouco, nomeadamente naquilo que o título prometia, a formulação de conhecimento. Alguns dos exemplos que aparecem na resenha do livro anterior servem mais uma vez a discussão aqui, tendo-se acrescentado exemplos relevantes como a queda das Torres Gémeas em 2001, o acidente do poço de petróleo aberto durante meses debaixo do mar pela BP em 2010, ou entrando um pouco no design industrial o problema do iPhone 4 com a receção.

Podemos dizer que “To Forgive Design: Understanding Failure” falha, o que acaba por ser irónico. Mas ao manter-se quase todo o tempo colado à descrição dos acidentes, é verdade que Petroski vai à essência da falha de cada acidente reportado, mas isso não chega para um livro, menos ainda para um livro que pretende elencar a essência do conceito. Não basta dar exemplos, dissecá-los, dar mais exemplos, mais detalhados, mais suportados, mais focados. Quando se constrói conhecimento, é necessário olhar para o todo e retirar daí conclusões, sintetizar ideias, focar mas também criticar, sustentar a descrição mas também sustentar o conceito, e isso pouco acontece aqui.

Diga-se que este problema tinha surgido exatamente da mesma forma em “The Rise”. Nessa altura referi que era um problema de conhecimento tácito, ou seja o ato de falhar precisa de ser experimentado, tornando complicado o problema de expressar o mesmo por palavras. Contudo depois de ter lido mais este livro sobre o tópico, julgo que o problema é mais evidenciado pelo parágrafo com que abri o texto, o facto da falha estar presente em toda a ação humana, tornando difícil a sua conceptualização sem entrar por discussões abstracts e filosóficas que acabam por acrescentar pouco. No fundo o modo como Petroski e Lewis fazem o seu trabalho, despejando descrições de dezenas de casos, acaba por ser a única forma de chegar à sua essência, o problema é que para isso precisávamos de ter livros sobre falhas em cada domínio.

E era isso mesmo que pensava ao ler este livro. Porque razão fazemos tantos livros sobre Casos de Sucesso quando o modo como as pessoas aprendem efetivamente é a partir dos casos de falhanço? Existe aqui um certo paradoxo que é querermos emular os melhores, os que não falharam, sem compreender onde estão os problemas que provavelmente se vão atravessar na nossa frente, e que só poderemos conhecer a partir dos exemplos de quem os enfrentou.