janeiro 28, 2016

Pyongyang, quando o real não chega

Esta semana escrevi para o IGN um texto sobre a diferença entre contar histórias baseadas na realidade e na fantasia, defendendo que o facto de basear as histórias numa “verdade”, não as torna mais relevantes. O que digo aí não podia assentar melhor no problema com que me deparei ao ler "Pyongyang: A Journey in North Korea", um livro de banda desenhada escrito por Guy Deslile, no qual relata os dois meses que passou na Coreia do Norte a trabalhar num filme de animação.


Pyongyang” revela-se uma espécie de obra voyeurista, tal câmara escondida, em que a objetiva era o olho do autor, e o gravador as suas memórias. Como tal funciona muito bem, a obra dá conta da vida diária dos habitantes daquela cidade, do que é possível aí ver e visitar enquanto cidadão estrangeiro, e em parte do que aquelas pessoas pensam sobre determinadas temas. Tem valor enquanto registo que reporta um real pouco conhecido, dá conta de um fluxo temporal num espaço concreto, mas fica-se por aí.

"Verdade e Fantasias nas Histórias", texto escrito esta semana para o IGN

Pyongyang” não tem história, porque é apenas descrição do dia-a-dia de quem passou dois meses num local. O arco é apenas delimitado pelo dia de chegada e dia de partida, não havendo sequer o esforço de esboçar um climax. Mas se fosse apenas esse problema, menos mal, poderíamos dizer que estávamos perante uma tentativa de documentar o que se viu. Contudo o que temos não é um relato neutral, é um relato enviesado pela cultura de quem olha, por acaso a minha (ocidental), mas que nem sequer crítica chega a ser, menos ainda interpretativa, fica-se antes pela mera chacota, não dos líderes mas dos seus cidadãos, um desrespeito que chega por vezes a roçar a xenofobia.

Não se trata aqui de defender o regime, esse é irrelevante nesta discussão, trata-se de ser capaz de compreender o real, e isso implica muito mais do que descrever edifícios, regras, proibições, atrasos tecnológicos, requer capacidade para compreender as pessoas com que se interage, compreender a vida que o sistema como um todo germina. Mas para isso era preciso que o autor fosse dotado de mais mundo, das ferramentas necessárias ao estabelecimento de comparações que lhe iriam abrir horizontes para a interrogação e o questionamento. De outro modo, ficamo-nos por um conjunto de piadas, algumas de gosto duvidoso.

Quanto ao traço não ajuda muito, serve e segue o relato, no seu tom vulgar e despretensioso, conseguindo talvez como melhor feito dar conta do vazio e da descaracterização que constitui o panorama da cidade de Pyongyang.

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